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A crítica genealógica de Michel Foucault às governamentalidades do liberarismo

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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA POLÍTICA

NEI ANTONIO NUNES

A CRÍTICA GENEALÓGICA DE MICHEL FOUCAULT ÀS GOVERNAMENTALIDADES DO LIBERALISMO

Florianópolis – SC 2012

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A CRÍTICA GENEALÓGICA DE MICHEL FOUCAULT ÀS GOVERNAMENTALIDADES DO LIBERALISMO

Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em Sociologia Política da Universidade Federal de Santa Catarina como parte dos requisitos para a obtenção do Grau de Doutor em Sociologia Política.

Orientador: Prof. Dr. Ricardo Virgilino da Silva

Florianópolis – SC 2012

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Dedico estas páginas, primeiramente, ao meu sogro, Oadir Cherem – In memoriam. E também a minha esposa, Adriana, e aos meus filhos, Vinícius e Sofia, que, assim como eu, vivenciaram as experiências da ausência e do desterro.

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Ao término dessa etapa reconheço que não menos importante que o resultado final da pesquisa foi toda a trajetória que realizei. Vejo, hoje, que a “travessia” desse percurso no doutorado em Sociologia Política da UFSC foi uma espécie de ascese não só intelectual, pois envolveu toda a minha vida e nela várias pessoas à volta. Muitos foram os companheiros durante estes tempos, nem sempre fáceis, porém marcados pelo transbordamento e expansão da vida. Não posso deixar de mencioná-los e assim, singelamente, agradecê-los.

Às instituições:

Programa de Pós-graduação em Sociologia Política da Universidade Federal de Santa Catarina (PPGSP), pela oportunidade de realizar a pesquisa de doutorado;

Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq), pela concessão da bolsa de doutorado – condição necessária para a realização da investigação;

Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal do Ensino Superior (CAPES), pela concessão da bolsa de estágio doutoral no exterior;

Departamento de História e Estudos Políticos e Internacionais da Universidade do Porto (UP), por ter disponibilizado os meios essenciais para o bom desenvolvimento da pesquisa no exterior.

Às pessoas:

Prof. Dr. Ricardo Virgilino da Silva, pela orientação, mas também pela confiança e amizade;

Prof. Dr. Manuel Loff, pela orientação, apoio e zelo durante todo o período do estágio de doutorado no exterior;

Funcionários da secretaria da Pós-graduação em Sociologia Política, Albertina, Fátima e Otto, sempre acessíveis.

Amigos: Alexandre Vieira (companheiro de reflexão e “caminhada”), por sua generosa e constante presença no decorrer de toda essa trajetória; André Leite, Eduardo Silva e Dimas Monteiro (“cavaleiros do apocalipse“), pela solidariedade constante; Marcelo Alves, pela confiança e os momentos aprazíveis partilhados nas disciplinas; professores Alexandre Vaz e Selvino Assmann, pela valiosa interlocução; professor Mauri Heerdt (Pró-reitor de Ensino e Pesquisa da UNISUL) pelo apoio e incentivo; casal Marcelo Cherem e Vanesa, Alice Cherem, Daniela Bunn, Ana Aquini e Eliete, por estarem sempre próximos.

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Nada escrever jamais o que eu mesmo não produza e, modesto, dizer à minha altiva musa: ‘Seja do teu pomar - teu próprio pomar - o que tu colhas, embora fruto, flor, ou simplesmente folhas.’

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O objetivo principal deste trabalho é explicitar/analisar A Crítica genealógica de Michel Foucault às governamentalidades do liberalismo. No primeiro capítulo, procuramos realizar uma discussão metodológica e, desse modo, evidenciar o instrumental genealógico do teórico francês, dando ênfase à explicitação das categorias centrais na compreensão das práticas de governo do liberalismo e do neoliberalismo. Buscamos, desde o início, sublinhar o caráter crítico do projeto genealógico. No segundo capítulo, visamos apresentar/discutir o advento das práticas de governo. Primeiramente, na cultura antiga, com o aparecimento do poder pastoral como governo das almas, e depois, a partir do século XVI, com a emergência da razão de Estado como forma de governo político dos homens. No terceiro capítulo, discutimos os traços centrais da governamentalidade liberal moderna: a) o aparecimento e a consolidação do mercado como instância de verdade e não como domínio exclusivo da jurisdição (veridicção do mercado); b) a questão da limitação do domínio do poder público (limitação do poder público pelo cálculo da utilidade governamental); c) o problema do equilíbrio europeu e das relações internacionais (posição da Europa como região de desenvolvimento econômico ilimitado em relação a um mercado mundial). Em seguida, analisamos o inventário genealógico do longo processo de transformação da arte liberal de governo e, assim, a emergência da governamentalidade neoliberal. No estudo das governamentalidades do liberalismo procuramos enfocar a articulação da tecnologia liberal com a biopolítica. Tendo em vista que a problematização das formas de governamentalidade transcende a discussão do liberalismo moderno e do neoliberalismo, discorremos no quarto capítulo sobre as modalidades de governo ético-político para além da experiência liberal.

Palavras-chave: Genealogia. Crítica. Governamentalidade. Liberalismo. Neoliberalismo.

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The aim of this work is to describe and analyze Michel Foucault’s Genealogical Critique to the governmentality of the liberalism. The first chapter offers a methodological discussion and thus, highlights the genealogical instrumental of this French theorist, emphasizing the explicitness of central categories on the process of understanding the governance practices of liberalism and neoliberalism. We sought, from the beginning; emphasize the critical nature of the genealogical project. In the second chapter, we aim to present / discuss the advent of governance practices. First, as government of the souls, by the emergence of pastoral power, in the ancient culture. Then, from the Sixteenth Century, by the emergence of the reason of the state as a form of political government of men. In the third chapter, we discuss the central features of modern liberal governmentality: a) the emergence and consolidation of the market as a site of truth and not as the exclusive domain of jurisdiction (veridiction of market), b) the issue of limiting the domain of public power (limiting public power by calculating the government usefulness), c) the problem of European balance and international relations (the Europe position as a region of immeasurable economic development in relation to the world market). Then we analyze the genealogical inventory of the long process of transformation of liberal art of the government, and thus the emergence of neoliberal governmentality. In the study of liberalism governmentalities, we focused on the articulation of technology to the liberal biopolitics. Considering that the problematic of governmentality forms goes beyond the discussion about modern liberalism and neoliberalism, the fourth chapter describes some of the ethical-political governing arrangements beyond the liberal experience.

Keywords: Genealogy. Critic. Governmentality. Liberalism. Neoliberalism.

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INTRODUÇÃO ... 19 1 A CRÍTICA GENEALÓGICA COMO PROCEDIMENTO DE INVESTIGAÇÃO ... 25 1.1CRÍTICAEGENEALOGIA ... 25 1.2AGENEALOGIACOMOCRÍTICA... 28 1.3ACONTECIMENTO,DISPOSITIVOEJOGOSDEVERDADE: PROBLEMATIZAÇÕESGENEALÓGICAS ... 34 1.4AGENEALOGIADOPODEREOSLINEAMENTOSDA

BIOPOLÍTICA... 41 1.5AANALÍTICADOPODER ... 51 1.6OSTRÊSDOMÍNIOSDEANÁLISEEASNOÇÕESDE

GOVERNOEGOVERNAMENTALIDADE... 61 1.7ASGOVERNAMENTALIDADESDOLIBERALISMO ... 66 1.8GOVERNAMENTALIDADEEOÉTHOSÉTICO-POLÍTICO .... 72 2 MATRIZES DA GOVERNAMENTALIDADE OCIDENTAL: O PODER PASTORAL E A RAZÃO DE ESTADO ... 79 2.1INTERCURSOS:ASVIAGENSÀALEMANHA,AOJAPÃOEAO IRÃ... 79 2.2OPASTORADOHEBREU... 83 2.3UMAEXCEÇÃONOPENSAMENTOGREGO:POLÍTICO,DE PLATÃO ... 86 2.4OPODERPASTORALCRISTÃO:OGOVERNODASALMAS COMOPRÁTICADEINDIVIDUALIZAÇÃO ... 93 2.5ARAZÃODEESTADOEOGOVERNOPOLÍTICODOS

HOMENS... 108 2.6ACRISEDARAZÃODEESTADOEOADVENTODANOVA GOVERNAMENTALIDADE ... 127 2.7DARAZÃODEESTADOAOLIBERALISMO:AEMERGÊNCIA DOSDISPOSITIVOSDESEGURANÇA ... 129 3 AS GOVERNAMENTALIDADES DO LIBERALISMO ... 145 3.1INVESTIGANDOARAZÃOGOVERNAMENTALDOS

LIBERALISMOSMODERNOECONTEMPORÂNEO ... 145 3.2AVIAAXIOMÁTICO-REVOLUCIONÁRIA... 153 3.3AVIARADICAL-UTILITARISTA ... 176 3.4ATECNOLOGIALIBERALDEGOVERNO:ASOCIEDADE

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ELOSENTRESEGURANÇAELIBERDADE ... 205 3.6OORDOLIBERALISMOALEMÃOEONEOLIBERALISMODA ESCOLADECHICAGO... 217 4 ALÉM DA GOVERNAMENTALIDADE LIBERAL: O

GOVERNO DE SI E DOS OUTROS E A PRÁTICA DA

PARRESÍA ... 243 4.1GENEALOGIADAÉTICAEGOVERNAMENTALIDADE ... 243 4.2OGOVERNODESIEDOSOUTROS ... 246 4.3APARRESÍACOMOPRÁTICADEGOVERNO:ACORAGEM DAVERDADECOMOÉTHOSANTIGO... 253 4.4CRÍTICA,AUTOGOVERNOELIBERDADE:UMÉTHOS

POSSÍVEL... 267 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 277 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ... 293

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INTRODUÇÃO

Este estudo teórico das governamentalidades do liberalismo nasce da confluência de nossa curiosidade intelectual com a experiência como docente vivenciada por quase duas décadas. O sentido que atribuímos, aqui, à curiosidade (ou inquietação), é o seguinte: nas pesquisas que realizamos acerca do pensamento de Michel Foucault, anteriores ao ingresso no doutorado, sobressaiu-se sempre o caráter eminentemente crítico desse corpus teórico. A loucura, as práticas médicas, as Ciências Humanas, as instituições carcerárias e a sexualidade são alguns dos alvos da sua investigação crítica. Avesso às polêmicas, mas iconoclasta quanto aos procedimentos de investigação, o autor francês marca presença no cenário político e intelectual da segunda metade do século XX, tanto pelo vigor de suas teses quanto por seu engajamento político.

Mesmo levando em consideração a riqueza do aporte teórico de Foucault, permanecia a suspeita advinda do que acreditávamos ser uma lacuna na crítica foucaultiana. Resumidamente, podemos assim definir o suposto hiato: como alguém que realiza uma crítica tão fecunda dos pressupostos epistemológicos e políticos da modernidade e da contemporaneidade poderia silenciar quanto aos impactos do arcabouço teórico do liberalismo em nossa cultura? Propiciou a resposta a essa questão, a publicação dos cursos – em 2004, na França, e em 2008 no Brasil – ministrados por Foucault no Collège de France em 1978 e 1979. Essa evidenciou que o liberalismo, nas suas formas moderna e contemporânea, figura como o mote da investigação genealógica no conjunto de aulas reunidas nos livros Segurança, território, população e Nascimento da biopolítica.

A consecução da genealogia do liberalismo revela que o teórico francês opera mudanças metodológicas expressivas em relação aos estudos anteriores. Assim, nas pesquisas realizadas em 1978 e 1979, Foucault realiza deslocamentos significativos no campo de análise, não só em relação aos objetos de estudo, mas também no que tange aos procedimentos investigativos. Desse modo, sem descartar as esferas do saber e do poder, introduz a temática da governamentalidade nas pesquisas genealógicas. Ao perscrutar as artes ocidentais de governo acaba por empreender, também, uma genealogia das governamentalidades do liberalismo moderno e do neoliberalismo. É essa a trajetória teórica que procuramos investigar. Disso resulta que o objetivo principal de nosso trabalho é explicitar e analisar: A Crítica genealógica de Michel Foucault às governamentalidades do liberalismo.

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nossa experiência como docente nas áreas de Ciência Política, Filosofia Política e Ética. O desejo de realizar um estudo teórico de fôlego que aborde questões políticas e éticas, procurando discutir problemas concernentes à nossa época, liga-se (intimamente) ao compromisso como educador. Isso ficou evidenciado no momento da produção da Tese. Assim, o processo de escrita foi sempre acompanhado de um “leitor” que, não raro, ditou o ritmo e indicou os rumos que deveríamos seguir na tessitura do texto. O que queremos dizer com isso é que a presença desse interlocutor (forjado ao longo de tantas aulas) foi decisiva em nossas escolhas do decorrer da pesquisa. Em suma, cremos que a Tese de doutorado que agora apresentamos nasce desses dois movimentos (nem sempre harmoniosos, por vezes reveladores de tensão em seu enlace, em seu confronto...) que caracterizam o encontro do pesquisador com o professor.

Tendo em vista a reconhecida qualidade das traduções brasileiras dos livros de Michel Foucault, optamos por utilizar, em nossa Tese, as referências e citações com base nas edições em língua portuguesa. Quanto à organização da bibliografia, dividimos do seguinte modo: a) “Livros de Michel Foucault” (No original); b) “Livros de Michel Foucault” (Em português e outros idiomas); c) Livros sobre Michel Foucault; d) Demais bibliografias. Em relação a todas as obras que constam nas Referências Bibliográficas mantivemos os anos das edições por nós pesquisadas1.

No que tange às várias citações contidas nas notas de rodapé, extraídas, sobretudo, dos escritos de Foucault, por vezes (cremos) o leitor pode considerá-las demasiado longas e em número exagerado. Em alguns casos pode ocorrer, no entanto, que o interlocutor, ao entrar em contato com as citações, acredite estar diante de um fragmento tão ou mais atraente que o próprio texto, pois evoca questões laterais, perspectivas de pesquisa etc., nem sempre exploradas no corpo da Tese. Esclarecemos que, de um lado, as várias citações visam dar vazão ao intuito de apresentarmos uma pesquisa “aberta”, marcada pela possibilidade de um trabalho sempre renovado do pensamento sobre si mesmo – tanto o nosso quanto o do leitor. De outro, optamos por colocá-las no texto porque se constituem em fragmentos importantes no escrutínio que realizamos do léxico foucaultiano. Na possibilidade de não sermos suficientemente convincentes nessa argumentação, recorremos (na intenção de aclarar ainda mais os nossos propósitos) ao que diz Kantorowicz quando explica suas escolhas, no livro Os dois corpos do rei, de referenciar o farto material pesquisado e de

1 Contudo, como o leitor pode observar, nas obras originais de Foucault e nas suas respectivas

traduções acrescentamos o ano da primeira edição. Nos casos em que não indicamos uma segunda data de edição, é porque utilizamos na pesquisa a primeira edição do livro (tanto no original quanto em outro idioma).

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reproduzir passagens de texto de modo prolixo:

a ambição primeira do autor foi sempre a de produzir um texto bem legível, mapear um caminho com indicações mais ou menos claras em meio a matagais raramente explorados e, se possível, manter desperta a atenção do leitor, em lugar de abandoná-lo em alguma selva enxameada de moscas tsé tsé da erudição. Se ele conseguiu ou não, caberá ao leitor decidir (KANTOROWICZ, 1998, p. 12).

Nossa pesquisa centra-se em livros, artigos e entrevistas de Michel Foucault, produzidos nas décadas de 1970 e 1980, com ênfase nos escritos sobre as governamentalidades. Salientamos que, além do uso de vários comentadores do pensamento foucaultiano, muitas são as interlocuções propostas no decorrer dos capítulos. Todavia, as menções às categorias de Nietzsche, Habermas, Murilo de Carvalho, Platão, Castoriadis, Senellart, Bacon, Agamben, Hobbes, Rousseau, Bentham, John Stuart Mill, Locke, Hayek ou Kant, não devem ser vistas como a tentativa (por demais pretensiosa!) de explorar com profundidade o universo conceitual e a trama teórica propostas em seus pensamentos. Tampouco é nossa meta realizar uma análise do liberalismo, nas vertentes moderna e contemporânea, com base nos diversos representantes dessa tradição – entre os quais, alguns aparecem em nosso texto. Desse modo, o diálogo com os autores, representativos de diferentes visões teóricas, teve como propósito, invariavelmente, explicitar o ponto de vista foucaultiano trazendo à tona o debate intelectual no qual ele está inserido. Nessa perspectiva, queremos partilhar com o leitor um pouco do confronto de ideias suscitado na genealogia foucaultiana. Cumpre observar, ainda, que o caráter assistemático dos escritos de Foucault faz com que tenhamos de tomar cuidados adicionais em nossa análise, em vista das especificidades das trajetórias da genealogia das governamentalidades.

No que tange à estrutura da Tese, está organizada em quatro capítulos. No primeiro capítulo, intitulado “A crítica genealógica como procedimento de investigação”, procuraremos realizar uma discussão metodológica e, assim, evidenciar o instrumental genealógico do teórico francês, dando ênfase à explicitação das categorias centrais na compreensão das práticas de governo do liberalismo e do neoliberalismo. Como dissemos, ao longo de sua trajetória teórica Foucault assumiu mudanças metodológicas significativas. Buscaremos, desde o início do capítulo,

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sublinhar o caráter crítico do projeto genealógico.

Com base, sobretudo, no curso “Segurança, território, população”, procuraremos, no segundo capítulo, denominado “Matrizes da governamentalidade ocidental: o poder pastoral e a razão de Estado”, apresentar/discutir o advento das práticas de governo. Primeiramente, na cultura antiga, com o aparecimento do poder pastoral como governo das almas, e depois, a partir do século XVI, com a emergência da razão de Estado como forma de governo político dos homens.

A finalidade da arte de governar, centrada na razão de Estado, é o fortalecimento do Estado. Essa visão do Estado subsidia uma prática governamental alicerçada em dois dispositivos de segurança que, embora distintos, interagem entre si. São eles: a tecnologia diplomático-militar e a polícia. Com a emergência dos dispositivos de segurança (quarto domínio da análise genealógica da biopolítica)2 há uma espécie de retração do biopoder e, ao mesmo tempo, a expansão das formas de regulação dos conjuntos populacionais. Todavia, começaremos o capítulo apresentando, ainda que de modo sucinto, o contexto sociopolítico da segunda metade da década de 1970 no qual Foucault estava inserido e participou ativamente como intelectual engajado.

No terceiro capítulo, intitulado “As governamentalidades do liberalismo”, começaremos enfatizando que a perspectiva nominalista compõe o empreendimento genealógico das pesquisas sobre as governamentalidades do liberalismo. O estudo das governamentalidades ocidentais, em Nascimento da biopolítica, desenvolve e ratifica essa perspectiva de análise. Discutiremos, em seguida, os traços centrais da governamentalidade liberal moderna: a) o aparecimento e a consolidação do mercado como instância de verdade e não como domínio exclusivo da jurisdição (veridicção do mercado); b) a questão da limitação do domínio do poder público (limitação do poder público pelo cálculo da utilidade governamental); c) o problema do equilíbrio europeu e das relações internacionais (posição da Europa como região de desenvolvimento econômico ilimitado em relação a um mercado mundial).

Evidenciaremos que a Sociedade Civil é o correlativo de uma prática de governo. Foucault se aplica em mostrar que o homo oeconomicus e a Sociedade Civil são correlatos e, portanto, indissociáveis. Ele sustentou que o liberalismo deveria ser analisado no quadro geral da biopolítica. Salientamos que no processo de consolidação da governamentalidade liberal emerge a quinta esfera de atuação das práticas biopolíticas, a saber, a

2 Os três primeiros domínios serão apresentados no primeiro capítulo: o poder médico, a luta

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racionalidade econômica. De forma semelhante ao que acontece no alvorecer dos dispositivos de segurança (também utilizados pela governamentalidade liberal), desencadeia-se, com a racionalidade econômica liberal, a ampliação da biopolítica. A circulação dos sujeitos econômicos, o jogo da concorrência natural, a ampliação do espectro do mercado são alguns dos novos espaços de ação da biopolítica. O âmbito da racionalidade econômica é o novo campo de ação do controle populacional. O genealogista procura inventariar o longo processo de transformação da arte liberal de governo, que ocorre entre o final do século XVIII e o século XX. De modo geral, para os neoliberais, o essencial do mercado não está na troca, mas na concorrência. Diferentemente do que pensam os liberais do século XVIII e XIX, a concorrência, como forma organizadora do mercado, não deve ser extraída do laissez-faire. No século XX, são frequentes as críticas de que o laissez-faire não passaria de uma “ingenuidade naturalista”. Ao fazer da sociedade o objeto de intervenção governamental, o neoliberalismo introduziu a regulação de mercado como princípio regulador da sociedade. O elemento regulador é constituído pelos mecanismos de concorrência e não da troca. O homo oeconomicus que emerge desse processo não é o “homem da troca” (ou o “homem eminentemente consumidor”), mas o “homem-empresa” ligado, sobretudo, à ideia de produção. Em torno dessa temática neoliberal, vai se formar um programa de racionalização econômica que tomará a forma de uma “vitalpolitik”. Tal programa proposto pela Escola de Friburgo projeta uma economia de mercado concorrencial vinculada a um intervencionismo de tipo social. Esse intervencionismo, aliás, implica uma renovação institucional em torno da revalorização da “empresa” como agente econômico.

Foucault dirá que o neoliberalismo norte-americano se constitui numa maneira de ser e de pensar. Defensor da ideia de Estado mínimo, ele é, sobretudo, um tipo de relação entre governantes e governados e não uma técnica dos governantes para dirigir os governados. E mais, é também uma espécie de foco utópico sempre reativado. Assim sendo, a crença de que (1) a teoria do capital humano e (2) o programa de análise da criminalidade e da delinquência sejam, de certo modo, a panaceia a importantes de dilemas sociais, é reveladora da convicção do neoliberalismo norte-americano na abrangência e eficácia da aplicação da análise econômica como forma de inteligibilidade e resolução de problemas não econômicos. Procuraremos mostrar que por meio da governamentalidade neoliberal, em suas formas alemã e norte-americana, a biopolítica emerge como dispositivo de gestão econômica nas sociedades ocidentais contemporâneas.

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governamentalidade transcende a discussão do liberalismo moderno e do neoliberalismo, visamos discorrer no quarto capítulo, intitulado “Além da governamentalidade liberal: o governo de si e dos outros e a prática da parresía”, sobre as modalidades de governo ético-político para além da experiência do liberalismo. Como base na genealogia da ética investigaremos, primeiro, as noções de governo de si e dos outros na cultura antiga e, depois, na modernidade, com a problematização foucaultiana da crítica que Kant realiza da Aufklärung.

Cabe esclarecer, contudo, que nossa pretensão nesse capítulo não é oferecer uma análise detalhada da genealogia da ética. O que objetivamos é, então, mostrar que as práticas de cuidado de si (e dos outros) e da parresía, analisadas nos escritos foucaultianos dos anos de 1980, constituem-se em formas de governamentalidade. Além disso, tencionamos indicar que elas denotam um conceito de liberdade distinto daquele preconizado pelas governamentalidades do liberalismo. Por fim, procuraremos refletir sobre a possibilidade, em Foucault, da existência de um éthos ético-político não circunscrito à experiência antiga. Com base nas considerações do teórico francês sobre os temas da crítica, do autogoverno e da liberdade, discutimos a questão da atitude corajosa do dizer-a-verdade fora do espectro antigo.

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1 A CRÍTICA GENEALÓGICA COMO PROCEDIMENTO DE INVESTIGAÇÃO

Quanto àqueles para quem esforçar-se, começar e recomeçar, experimentar, enganar-se, retomar tudo de cima a baixo e ainda encontrar meios de hesitar a cada passo, àqueles para quem, em suma, trabalhar mantendo-se em reserva e inquietação equivale à demissão, pois bem, é evidente que não somos do mesmo planeta.

Michel Foucault

1.1 CRÍTICA E GENEALOGIA

A consolidação do método como procedimento investigativo rigoroso na pesquisa é um traço comum aos diferentes campos de conhecimento e modelos epistemológicos. Na tradição do pensamento político, o debate em torno das metodologias tem ocupado teóricos dos mais diferentes matizes. Com substantiva participação no cenário intelectual da segunda metade do século XX, desde seus primeiros livros Michel Foucault tem se ocupado com a questão dos procedimentos investigativos. Aliás, nunca é demais lembrar que, ao longo de sua trajetória teórica, ele assumiu mudanças metodológicas significativas. Assim, na passagem da arqueologia dos saberes, dos anos 1960, às pesquisas genealógicas, há importantes deslocamentos no campo de análise e nos procedimentos utilizados.

Diferentemente do que fez em sua arqueologia,3 Foucault não

3 Lembra Revel que o termo arqueologia aparece no título de três livros de Foucault:

Nascimento da clínica. Uma arqueologia do olhar médico (1963), As palavras e as coisas. Uma arqueologia das ciências humanas (1966) e Arqueologia do Saber (1969). (REVEL, 2005, p. 16). Embora tratem de objetos distintos, junto com História da loucura na idade clássica (1961), esses têm em comum, na pesquisa, os seguintes traços: a primazia da noção de saber e a pretensão de realizar uma crítica à ideia de progresso em história das ciências, o estabelecimento das descontinuidades na história e de critérios para datação dos períodos e de suas regras de transformação, a busca de interrelações conceituais bem como a articulação dos saberes com a estrutura social (MACHADO apud FOUCAULT, 1990b, p. IX-X). Fica evidenciado, portanto, na singularidade desse eixo metodológico, a relação entre os diferentes estudos de Foucault dos anos de 1960: “Nenhum desses textos é autônomo, nem suficiente por si mesmo; eles se apóiam uns nos outros, na medida em que se trata, a cada vez, da exploração muito parcial de uma região limitada. Eles devem ser lidos como um conjunto apenas esboçado de experimentações descritivas.” A rigor, a arqueologia foucaultiana objetivava dar conta da emergência dos saberes, procurando responder a como esses apareciam e como se davam as suas transformações. Como vemos, se o método que norteia as pesquisas de Foucault na década de 1960 é o arqueológico, a gama de objetos investigados não ultrapassa o campo dos saberes. Isto leva Foucault a concluir, pelo menos num primeiro momento, que não há exterioridade aos

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dedicou um livro à discussão dos procedimentos metodológicos das pesquisas desenvolvidas na década de 1970 ou mesmo depois.4 Em sua aula inaugural no Collège de France, em dezembro de 1970, indicou o desvio que caracterizaria suas pesquisas posteriores. A ordem do discurso é, por assim dizer, um texto de transição no qual fica evidenciada, no anúncio dos projetos crítico e genealógico, a intenção de ampliar o campo investigativo (para além das epistemes e das práticas discursivas) até então definido como arqueológico.5

saberes, ou seja, nenhum saber pode ser analisado de nenhum outro ponto que não seja interno ao próprio saber. Nunca é demais lembrar que as diferentes ciências são aqui consideradas como partícipes do universo dos saberes, embora estes não fiquem restritos ao campo científico, até porque nem todo saber é tido como ciência. O amálgama dos saberes (sem desconsiderar seus sucessivos processos de aglutinação e dispersão) daria forma aos “jogos discursivos” nos quais se efetivariam, por exemplo, a cisão entre razão e desrazão ou ainda o aparecimento do homem como objeto das Ciências Humanas. “Assim se explica o privilégio efetivamente concebido a esse jogo de discurso, do qual se pode dizer, muito esquematicamente, que define as “ciências do homem.’” (FOUCAULT, 2000, p. 95-96).

4 Embora o pensador francês não tenha produzido um estudo de fôlego sobre as genealogias

como procedimento de investigação, essas ganham espaço destacado em sua produção intelectual. Dão provas disso a acuidade e a frequência com que o tema é tratado nos livros e nos cursos ministrados no Collège de France, bem como nos diversos artigos, conferências e entrevistas entre os anos de 1970 e 1984.

5 A análise arqueológica investiga as possíveis semelhanças e diferenças entre os saberes pelo

estabelecimento da episteme de uma época. Em As palavras e as coisas, Foucault dirá que: “Não se tratará, portanto, de conhecimentos descritos no seu progresso em direção a uma objetividade na qual nossa ciência de hoje pudesse enfim se reconhecer; o que se quer trazer à luz é o campo epistemológico, a episteme onde os conhecimentos, encarados fora de qualquer critério referente a seu valor racional ou a suas formas objetivas, enraízam sua positividade e manifestam assim uma história que não é a de sua perfeição crescente, mas, antes, a de suas condições de possibilidade; neste relato, o que deve aparecer são, no espaço do saber, as configurações que deram lugar às formas diversas do conhecimento empírico. Mais que de uma história no sentido tradicional da palavra, trata-se de uma ‘arqueologia’”. Na pesquisa arqueológica, a episteme visa relacionar os diferentes saberes (como a articulação entre bi-ologia, economia e filbi-ologia, proposta em As palavras e as coisas) procurando as vinculações possíveis, bem como suas semelhanças e transformações, para além das diferenças detectadas num nível considerado mais superficial. Assim sendo, a episteme procuraria estabelecer a homogeneidade (entendida como chave explicativa) que desse conta das continuidades e das descontinuidades entre os saberes. A investigação arqueológica teria mostrado, dessa forma, a existência de duas grandes descontinuidades na episteme da cultura ocidental: (1) A Idade Clássica, que começaria em meados do século XVII e que teria entre suas características principais: a coerência existente entre a teoria da representação e as da linguagem, das ordens naturais, da riqueza e do valor. (2) No século XIX, essa teoria da representação deixaria de ser o fundamento geral de todas as ordens possíveis. Com isso, dar-se-ia o início do período denominado Modernidade. É no limiar dessa Modernidade que apareceria o "homem" como figura do saber. Esse acontecimento seria decisivo na consolidação das Ciências Humanas (FOUCAULT, 1992, p. 11-13). Contudo, como adverte Castro, a episteme, central em As palavras e as coisas, não define o campo da análise arqueológica em todos os estudos foucaultianos da década de 1960. O livro publicado em 1966 expressaria uma concepção monolítica de episteme (trata-se, sempre, de uma única episteme que define as condições de possibilidade do saber numa determinada cultura e num momento dado) (CASTRO, 2009, p.

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Ao prenunciar as pesquisas que objetiva realizar à frente da cátedra em “História dos Sistemas de Pensamento”, no Collège de France, Foucault expressa a intenção de estruturar dois conjuntos de análise: um denominado como crítico e o outro como genealógico. O conjunto crítico poria em funcionamento o “princípio de inversão” pelo qual se deveria: “lá onde, segundo a tradição, cremos reconhecer as fontes dos discursos [...], reconhecer, ao contrário, o jogo negativo de recorte e de uma rarefação do discurso.” (FOUCAULT, 1996a, p. 51-52). Já o conjunto genealógico procuraria pôr em funcionamento as seguintes regras metodológicas: a descontinuidade, a especificidade e a exterioridade.6

Na verdade, as diferenças entre crítica e genealogia, no que tange aos seus objetos e domínios de análise, são pouco significativas, o que leva Foucault a concluir que as duas empresas não são separáveis. Mais que isso, crítica e genealogia se fundem, isso porque as descrições que realizam, na pesquisa, procuram alternar-se apoiando umas as outras – sendo, portanto, correlacionáveis e complementares (FOUCAULT, 1996a, p. 65-70). Entretanto, é importante esclarecer que crítica e genealogia, ou melhor, a crítica genealógica será aprofundada nos estudos subsequentes, ganhando outros contornos nas pesquisas sobre o poder e a ética. A propósito, se a aula inaugural no Collège de France introduz a noção de genealogia e mostra sua vinculação com a de crítica,

139-140). Como mostra Arqueologia do saber, a introdução do conceito de “formação discursiva” evidenciaria o abandono dessa perspectiva monolítica. Aliás, nesse livro de cunho claramente metodológico, Foucault define o saber como o “conjunto dos elementos formados de maneira regular por uma prática discursiva e indispensáveis à constituição de uma ciência.” O saber é aquilo de que podemos falar em uma prática discursiva, que, por sua vez, deve ser definida como o domínio constituído pelos diferentes objetos que irão adquirir ou não um status científico. Um saber é, também, o espaço em que o sujeito pode tomar posição para falar dos objetos de que se ocupa em seu discurso. Além disso, é o campo de coordenação e de subordinação dos enunciados em que os conceitos aparecem, se definem, se aplicam e se transformam. Um saber se define por possibilidades de utilização e de apropriação oferecidas pelo discurso. Por fim, se os saberes, em determinadas configurações, podem apresentar independência em relação às ciências, o mesmo não acontece em relação às práticas discursivas, pois não existe saber sem uma prática discursiva definida, e toda prática discursiva pode definir-se pelo saber que ela forma (FOUCAULT, 1987, p. 206-207).

6 O princípio de descontinuidade: tratar os discursos como práticas descontínuas, sem supor

que sob os discursos efetivamente pronunciados existe outro discurso, ilimitado, silencioso e contínuo, que é reprimido ou censurado. O princípio de especificidade: considerar os discursos como uma violência que exercemos sobre as coisas; não existe, assim, providência pré-discursiva. O princípio de exterioridade: não ir ao núcleo interior e escondido do discurso – o pensamento, a significação; dirigir-se às suas condições externas de surgimento (CASTRO, 2009, p. 185). Para um aprofundamento dos quatro princípios – o de inversão, concernente ao conjunto crítico, e os de descontinuidade, especificidade e exterioridade, próprios ao conjunto genealógico, cf. tambémFoucault (1996a, p. 51-54).

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ainda não aparecem no texto importantes categorias genealógicas que serão centrais nos estudos posteriores.

1.2 A GENEALOGIA COMO CRÍTICA

É certo que o termo genealogia indica tanto os alvos de pesquisa que se seguiram à aula inaugural no Collège de France, quanto a presença de Nietsche (1844-1900) no pensamento foucaultiano. Perscrutar sobre a influência da genealogia nietzschiana nos procedimentos investigativos de Foucault (seus lineamentos, pontos de convergência e dissonâncias) é tarefa que exigiria um deslocamento significativo em relação aos nossos propósitos de pesquisa, coisa que pretendemos evitar. Levando isso em consideração, na digressão que se segue tencionamos pôr em relevo nuances da crítica foucaultiana tomando como ponto de partida a metodologia de Nietzsche.7

Embora se localizem referências ao autor alemão na arqueologia,8 Foucault, notadamente (sem ser comentador de Nietzsche ou expressar interesse de, fielmente, dar seguimento a sua obra) o utiliza de maneira instrumental nas pesquisas genealógicas. Numa entrevista à “Magazine Littéraire”, publicada em junho de 1975,9 comenta o uso que faz de Nietzsche em seus estudos:

A única marca de reconhecimento que se pode testemunhar a um pensamento como o de Nietzsche é precisamente utilizá-lo, deformá-lo, fazê-lo ranger, gritar. Agora, que os comentadores digam se somos ou não fiéis, isso não tem nenhum interesse (FOUCAULT, 2003, p. 174).

A rigor, a genealogia de Nietzsche procura pôr em xeque, por meio de uma história descontínua dos valores morais, concepções essencialistas, teleológicas e universalistas da história. Vê-se, com isso, que o autor alemão é cético em relação ao caráter eterno e imutável dos

7 Nas referências diretas às obras de Nietzsche, utilizamos as traduções brasileiras de Rubens

Rodrigues Torres Filho (NIETZSCHE, 1983), de Paulo César de Souza (NIETZSCHE, 1998a, NIETZSCHE, 1998b) e de Marcos Sinésio Pereira Fernandes e Francisco José Dias de Moraes (NIETZSCHE, 2008). Na intenção de dirimir dúvidas, comparamos, quando necessário, a tradução brasileira de Vontade de poder – a última citada – com a espanhola de Aníbal Froufe (NIETZSCHE, 2001).

8 Enfatizamos que há referências a Nietzsche em todos os livros do período arqueológico.

Sobre o tema, cf. Marton (2001, p. 199-201) e Veyne (2008, p. 284).

9 Trata-se da entrevista realizada por J. J. Brochier, intitulada “Entrevista sobre a prisão: o livro

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valores. Ao rejeitar o postulado metafísico da identidade entre valor e realidade, sustenta que, invariavelmente, os valores são produções histórico-sociais (MACHADO, 1999, p. 85). Sua genealogia, portanto, assume a tarefa de realizar a crítica daquilo que ele considera como os grandes sistemas metafísicos do ocidente.10 Inferimos, com base nisso, a incompatibilidade entre o procedimento genealógico e a noção de método, se definida como o caminho seguro que dá acesso às verdades universais – compreendidas como substâncias, essências ou o ser.

Devemos insistir sobre este ponto: Nietzsche rejeita, concomitantemente, a suposta segurança metodológica (partilhada por distintos saberes no século XIX) e a existência de verdades universais. Contudo, suas convicções não conduzem a uma lacuna metodológica que culminaria na ausência de procedimentos norteadores para as pesquisas. Ciente do papel dos procedimentos investigativos, dirá que a história e a filologia são recursos utilizados pela crítica genealógica com o objetivo de pôr em relevo a “moral que realmente houve, que realmente se viveu – com novas perguntas, com novos olhos [...]”. Essas ferramentas de pesquisa exercem a função de escrutinar “a coisa documentada, o efetivamente constatável, o realmente havido, numa palavra, a longa, quase indecifrável escrita hieroglífica do passado moral humano!”. (NIETZSCHE, 1998a, p. 13).

Acredita o autor oitocentista que esse procedimento crítico, ao revelar as formas de “decadência”11 constituídas pelos sistemas metafísicos, abriria caminho à transvaloração dos valores12 e à busca de autossuperação dos indivíduos (a expansão da vida, a efetividade da vida)13 a serem realizadas no plano da imanência.14 Tal é a sua

10 Em Crepúsculo dos Ídolos, Nietzsche indica quais seriam os grandes representantes das

metafísicas ocidentais: Platão, o cristianismo, o kantismo e o positivismo. Apesar de suas diferenças, no plano geral, esses formariam a “história de um erro”, pois teriam feito com que o verdadeiro mundo (a realizar-se no plano da imanência) fosse desconsiderado, tido como fábula, e substituído pelas quimeras das verdades transcendentes (NIETZSCHE, 1983, p. 332-333).

11 Sobre o instinto de décadence, cf. Nietzsche (1983, p. 333-334, 339-340, 342-344). 12 Em “A morte de deus e a transvaloração dos valores”, Marton sublinha que, em Nietzsche,

“Transvalorar é, antes de mais nada, suprimir o solo a partir do qual os valores até então foram engendrados.” (MARTON, 2001, p. 75). A propósito, observemos como Giacóia Junior vincula a crítica genealógica à transvaloração dos valores: “Como crítica genealógica, a filosofia é, em Nietzsche, movimento permanente, deslocamento vertiginoso, constante fuga de si mesmo. Essa constitui uma das facetas mais decisivas da Transvaloração de todos os valores.” (JUNIOR, GIACÓIA, 2004, p. 93).

13 Como explica Marton, no ensaio “Nietzsche e a revolução francesa”, do ponto de vista do

pensador alemão: “vida é luta, força e impulso agressivo, saúde e capacidade ofensiva e defensiva.” (MARTON, 2001, p. 195).

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convicção do caráter crítico do projeto genealógico que, ao perpassar os temas do ressentimento, da má-consciência e do ideal ascético, em Genealogia da moral,15 crê pôr em xeque a moral constituída, os códigos normativos e as éticas vigentes no ocidente. Tarefa por ele definida como a crítica do valor dos valores morais (NIETZSCHE, 1998a, p. 12).

Ao realizá-la, o autor alemão procura inquirir diferentes formas de constituição da verdade (oriundas de modelos filosóficos, religiosos, científicos e éticos), predominantes na cultura ocidental. Não se pode esquecer que, aos olhos de Nietzsche, a atitude crítica não é a negação do mundo humano, mas a rejeição de diferentes formas de transcendência.16 Com efeito, sua genealogia da moral é, ao mesmo tempo, uma metodologia de pesquisa e o empreendimento histórico-crítico que visa desnudar a lógica binária e hierarquizante (bom e mau, verdade e falsidade...) de produção das verdades hegemônicas.

A novidade e a importância do projeto nietzschiano em todas as fases de sua realização é a crítica, não dos maus usos do conhecimento, mas do próprio ideal de verdade; é a questão, não da verdade ou falsidade de um conhecimento, mas do valor que se atribui à verdade, ou da verdade como valor superior; é a negação da prevalência da verdade sobre a falsidade (MACHADO, 1999, p. 51).

vinda do que ele considera como o “espírito livre” – ao mesmo tempo anticristo e antiniilista. Este, em seu desprezo pela vida que se justifica e legitima numa metafísica transcendente, deve possibilitar o além do homem na proporção em que efetiva a vida, agindo independentemente das “grandes mentiras”, forjadas ao longo da história como verdades (valores externos a vida apresentados como se fossem superiores e ela). (NIETZSCHE, 1998a, p. 83-85).

15 São estes os temas que compõem as três dissertações de Genealogia da moral. Depois do

Prólogo, no qual situa o modo genealógico de pesquisar, como também contra quais tradições de pensamento se levanta a sua crítica, o livro de Nietzsche, inicialmente publicado em 1887, apresenta a seguinte divisão: Primeira dissertação: “Bom e mau”, “bom e ruim”; Segunda dissertação: “Culpa”, “má-consciência” e coisas afins; Terceira dissertação: O que significam ideais ascéticos?.

16 Cabe ilustrar: conforme o autor alemão, a doutrina cristã erigiu um modelo transcendente de

explicação e valoração da vida. O asceta (homem religioso) oriundo da casta sacerdotal, tal qual aparece na terceira dissertação de Genealogia da moral, teria subvertido valores e instaurado a reatividade como modo de vida, justificando-a por meio de um mundo exterior e por uma relação vertical entre a divindade (e seus pastores) e os homens. Sobre a crítica à vontade de verdade presente na análise da relação entre “ideal ascético” e “crença metafísica”, ver: (NIETZSCHE, 1998a, p. 139-140, 148). Vale dizer ainda que em O anticristo, publicado em 1888, um ano após a Genealogia da moral, Nietzsche persegue o tema das consequências nocivas da transcendência: “Se se põe o centro da gravidade da vida, não na vida, mas no além – no nada –, tirou-se da vida toda gravidade.” (NIETZSCHE, 1983, p. 353).

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Dizíamos há pouco que é visível a influência de Nietzsche nas opções metodológicas do pensador francês. Sobre esse ponto, supõe Paul Veyne, em “Foucault revoluciona a história”, que o procedimento genealógico de Foucault derive de sua reflexão da Genealogia da moral – designadamente a seção 12 da segunda dissertação. Acrescenta o historiador que há semelhanças consideráveis entre o que propõe Nietzsche nos fragmentos 70 e 604, de A vontade de poder, e os rumos dados pelo teórico francês as suas pesquisas após a década de 1960.17 Vejamos o que diz Nietzsche nos textos citados por Veyne.

Percebe-se claramente, na seção doze, a intenção de Nietzsche de mostrar que não existe relação necessária entre a origem e a finalidade dos acontecimentos; ou seja, para o autor não há nexo causal ou mesmo uma estreita ligação entre os dois termos. Ao tomar como exemplo a prática do castigo, a genealogia da moral teria mostrado que as finalidades da ação não são explicadas por sua gênese.18 O descompasso entre a origem do castigo, as diversas configurações do ato de castigar e as urgências a que responde nos diferentes momentos e contextos, ilustraria, no texto nietzschiano, a distinção entre os começos e as finalidades na história. Até porque, conforme Nietzsche, a consecução de uma história da gênese não deveria ser buscada na categoria da finalidade. Portanto:

Mesmo tendo-se compreendido bem a utilidade de um órgão fisiológico (ou de uma instituição de direito, de um costume social, de um uso público, de uma determinada forma nas artes ou no culto religioso), nada se compreendeu acerca da sua gênese (NIETZSCHE, 1998a, p. 66).

Convencido da inadequação entre os dois termos, Nietzsche avança na investigação indicando que a origem não é a chave explicativa da verdade – o seu princípio de inteligibilidade. Cônscio dos limites que cercam essa categoria, aponta a “vontade de poder” como responsável por imprimir sentido às ações humanas (por exemplo, ao

17 Nunca é demais lembrar que o artigo de Veyne é de 1978, momento em que as pesquisas de

Foucault sobre o poder disciplinar, o biopoder e a guerra já foram publicadas, e que as suas análises sobre o liberalismo e a biopolítica estão em curso.

18

Embora Nietzsche não se atenha a discutir a questão na seção doze, ao tomar como exemplo a prática do castigo, revela que, em sua reflexão, os dois termos (origem e finalidade) ultrapassam a condição de abstrações – atributos exclusivos da razão, da atividade do intelecto,... – sendo, portanto, experiências individuais e sociais não consequentes uma da outra.

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castigo).19 Não se pode esquecer que, ao desautorizar a origem, o pensador procura minar também a tese de que há progresso inexorável na história – essa partilhada por diferentes saberes oitocentistas.20 Contrário à ideia de que a história seja necessariamente progressiva e teleológica, sustenta o autor que a constituição dos acontecimentos se dá por uma multiplicidade de forças – jogos de subjugação e resistência.21 Esse intrincado campo de forças é revelador, sobretudo, do caráter cambiante dos sentidos que as sociedades atribuem aos “fatos”. Em suma, na perspectiva nietzschiana, os acontecimentos derivam do jogo de forças e não, como já assinalamos, de relações necessárias e teleológicas (NIETZSCHE, 1998a, p. 66-67).

Sob o ponto de vista da crítica à vontade de verdade, há relação entre a seção doze de Genealogia da moral e os dois fragmentos de A

19 Ao criticar a concepção de vida que atribui a Spencer (definida como uma adaptação interna

progressivamente apropriada às circunstâncias externas), Nietzsche vincula, em Genealogia da moral, vontade de poder e vida (esta última, tida como a primazia das forças). Assim, contra Spencer dirá: “Mas com isto se desconhece a essência da vida, a sua vontade de poder; com isto não se percebe a primazia fundamental das forças espontâneas, agressivas, expansivas, criadoras de novas formas, interpretações e direções, forças cuja ação necessariamente precede a ‘adaptação’”. (NIETZSCHE, 1998a, p. 67).

20 Sobre o tema, conferir as considerações do autor na segunda parte de Considerações

extemporâneas, dedicada ao tema da utilidade e desvantagem da história para a vida, sobre as desventuras da crença no progresso – esta, em certa medida, determinante na caracterização dos sentidos históricos (NIETZSCHE, 1983, p. 69-70).

21 Nesta passagem de “Pensamento nômade”, Deleuze, com base na segunda seção de

Genealogia da moral, dá pistas significativas sobre como se constitui, em Nietzsche, o intrincado campo de forças gerador de múltiplas interpretações e sentidos. Por vezes, muitas dessas interpretações e sentidos (com uma origem diversa do resultado final) são elevadas a condição de verdade. “Voltemos ao grande texto de Para a genealogia sobre o Estado e os fundadores de império: ‘Eles chegam como o destino, sem causa, sem razão... etc.’ Pode-se reconhecer aí os homens da produção dita asiática. Sobre a base de comunidades rurais primitivas, o déspota constrói sua máquina imperial que sobrecodifica o todo, com uma burocracia, uma administração que organiza os grandes trabalhos e se apropria do trabalho excedente [...]. Mas pode-se perguntar também se este texto não reúne duas forças que se distinguem em outros aspectos [...]. Pois quando se investiga como as comunidades primitivas segmentárias deram lugar a outras formações de soberania, questão que Nietzsche coloca na segunda dissertação de Para a genealogia da moral, vê-se que se produzem dois fenômenos estritamente correlatos, mas absolutamente diferentes. É verdade que no centro, as comunidades rurais estão presas e fixas à máquina burocrática do déspota com seus escribas, seus padres, seus funcionários; mas na periferia, as comunidades entram noutra espécie de aventura, numa outra espécie de unidade desta vez nomádica, numa máquina de guerra nômade, e se decodificam ao invés de se deixarem sobrecodificar. [...]. O nômade com sua máquina de guerra opõe-se ao déspota com sua máquina administrativa; a unidade nomádica extrínseca se opõe à unidade despótica intrínseca. E todavia eles são de tal modo correlatos ou interpenetrados que o problema do déspota será o de integrar, de interiorizar a máquina de guerra nômade, e o problema do nômade será o de inventar uma administração do império conquistado. Eles não cessam de se opor a ponto mesmo de se confundirem.” (DELEUZE, 1985, p. 65).

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vontade de poder. Estes, por exemplo, indicam que não existem garantias de que a tão apregoada objetividade do conhecimento traduza a verdade em sua integralidade. Semelhantemente aos argumentos de Genealogia da moral (por exemplo: o descompasso entre as origens dos conhecimentos e as suas finalidades), o fragmento 70 não só reforça a suspeita do autor em relação à objetividade da verdade, mas também rejeita o “mito da origem”. Nele dirá Nietzsche: “Um gênio não é esclarecido por tais condições de surgimento.”22 (NIETZSCHE, 2008, p. 61). O fragmento 604 reafirma a rejeição à objetividade indicando que o establishment do conhecimento não garante sinonímia entre objetividade e verdade. Em outros termos, o anseio dos saberes instituídos em legitimar a objetividade não assegura que ela exprima inequivocamente a verdade. Portanto, concluirá Nietzsche: “Não há nenhum fato, tudo é fluido, inconcebível, esquivo; o mais durável são ainda nossas opiniões.” (NIETZSCHE, 2008, p. 313).

É sintomático nesses textos, que supostamente inspiraram a metodologia foucaultiana, o aparecimento da interpretação como perspectiva de análise. Ou seja, a crítica de Nietzsche à vontade verdade é, sobretudo, uma crítica interpretativa das interpretações hegemônicas de nossa cultura.23 Ao interpretar e, assim, inquirir o processo de constituição da verdade, o autor alemão teria procurado mostrar a fragilidade de seus alicerces metafísicos evidenciando antinomias na razão ocidental.24 Em face do exposto, cabe melhor definir as categorias norteadoras da crítica interpretativa da verdade, de inspiração nietzschiana, mas aprofundadas na genealogia de Michel Foucault. Vejamos como o pensador francês desenvolve e problematiza as noções de acontecimento, dispositivo e jogos de verdade.

22 Conforme a tradução espanhola de Aníbal Froufe, esta é a última frase do fragmento: “El

gênio no se explica por tales condicionamientos de origen.” (NIETZSCHE, 2001, p. 80).

23 Genealogia da moral: “[...] todo acontecimento do mundo orgânico é um subjugar e

assenhorear-se, e todo subjugar e assenhorear-se é uma nova interpretação [...]” (NIETZSCHE, 1998a, p. 66). A vontade de poder: fragmento 70: “Os mesmos meios podem ser interpretados e utilizados de maneira oposta: não há fatos.” Fragmento 604: “O que pode, todavia, ser conhecimento? – Interpretação, intromissão de sentido – não ‘explicação’ (na maioria dos casos, uma nova interpretação colocada sobre uma antiga que se tornou incompreensível, que agora é, ela mesma, apenas sinal).” (NIETZSCHE, 2008, p. 61, 313).

24 A análise crítica que Nietzsche faz do ideal iluminista, tomando por referência o lema da

Revolução Francesa (Liberdade, Igualdade e Fraternidade), pode ser tomada como ilustrativa de uma antinomia política. Explica Marton que, para o pensador alemão, os ideais modernos de liberdade, igualdade e fraternidade se constituíram de fato como nivelação gregária, exclusão das exceções e ressentimento. Assim, na contramão do que sustentam os ideólogos da Ilustração, o filósofo conclui que a Revolução Francesa é, de certo modo, filha e continuadora do cristianismo (MARTON, 2001, p. 188-189).

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1.3 ACONTECIMENTO, DISPOSITIVO E JOGOS DE VERDADE: PROBLEMATIZAÇÕES GENEALÓGICAS

Chama a atenção na leitura foucaultiana de Nietzsche a importância atribuída à noção de acontecimento. Como sabemos, esta se fará presente nos diferentes alvos investigados na genealogia de Foucault. De passagem, frisamos que o acontecimento, como categoria de análise, já aparece nos estudos arqueológicos, como acontecimento discursivo. Ou seja, ao fazer o inventário da trama dos saberes, recuperando o jogo do qual esses fazem parte, a arqueologia procura empreender a descrição minuciosa dos acontecimentos discursivos.25 Isto, claro, sem se debruçar sobre a questão das origens tanto dos saberes quanto dos acontecimentos.

Como revela o célebre artigo “Nietzsche, a genealogia, a história”,26 a metodologia nietzschiana – em oposição às concepções teleológicas e universalistas da história – efetua um deslocamento no campo de análise ao propor como pesquisa a interpretação e a avaliação dos acontecimentos históricos. Isso pode ser mais bem compreendido na análise que Foucault faz dos conceitos de Herkunft e Entstehung. A seu ver, em detrimento de Ursprung (origem), Herkunft (proveniência) e Entstehung (emergência) são, na genealógica nietzschiana, recursos de análise que possibilitam, concomitantemente, inventariar, inquirir e diagnosticar os acontecimentos históricos. Herkunft não deve ser confundido com a busca pela origem fundadora supostamente alicerçada numa unidade universalizante. Diferentemente disso, a proveniência visa agitar o que, em termos metafísicos, se percebia como imóvel; procura fragmentar o que se considerava, do ponto de vista de diferentes consensos, unido; bem como evidenciar a heterogeneidade do que normalmente se crê em conformidade consigo mesmo, por exemplo, pelo princípio de identidade. Entstehung, por sua vez, define-se pelo ponto de surgimento dos valores e costumes. “É o princípio e a lei singular de um aparecimento”, ou seja, é o campo no qual as relações de força se constituem. As emergências, dessa forma, viabilizariam a identificação do intrincado estado de forças que dá condições ao aparecimento dos acontecimentos históricos (FOUCAULT, 2000, p. 264-270). Nos termos de Foucault, a metodologia nietzschiana pode ser

25

Na arqueologia: “Preguntarse por la historicidad del discurso significa descubrir que existe un passado vivo en los documentos, monumentos, reglamentos. Preguntarse por la accidentalidad de las prácticas discursivas es buscar las reglas de formación de los discursos. Reglas históricas, políticas, sociales, culturales.” (COLOMBANI, 2008, p. 43).

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definida como análise das proveniências e história das emergências dos acontecimentos (MARTON, 2001, p. 202-204).

Mutatis mutandis, a genealogia foucaultiana é também uma crítica à vontade de verdade – não é sem propósito que o primeiro livro da História da sexualidade tenha como subtítulo “A vontade de saber” – e como tal usa estas categorias da proveniência e da emergência na interpretação de acontecimentos. Pelo viés interpretativo, a genealogia interpela os acontecimentos investigando as contingências, os acidentes, os acasos, procurando pelas singularidades tangíveis, porém nem sempre detectadas pela historiografia. Dessa forma, sem objetivar a revelação de significados ocultos num subsolo de fundamentos últimos, a genealogia, como crítica interpretativa, procura (por meio da cartografia, do inventário e do diagnóstico dos acontecimentos) realizar uma história das interpretações.27 No artigo de 1971, caracterizado (como vimos) por uma abordagem instrumental do léxico nietzschiano, o pensador francês esclarece:

Acontecimento: é preciso entendê-lo não como uma decisão, um tratado, um reino, ou uma batalha, mas como uma relação de forças que se inverte, um poder confiscado, um vocabulário retomado e voltado contra seus utilizadores, uma dominação que se enfraquece, se amplia e se envenena e uma outra que faz sua entrada, masca-rada. As forças que estão em jogo na história não obedecem nem a uma destinação nem a uma mecânica, mas ao acaso da luta. [...] Mas o verdadeiro sentido histórico reconhece que vivemos, sem referências nem coordenadas originárias, em miríades de acontecimentos perdidos (FOUCAULT, 2000, p. 272-273).

Com as pesquisas genealógicas em curso, Foucault volta o olhar repetidas vezes ao conceito de acontecimento, dando a impressão de que procura – nos seus livros, artigos e conferências, mas também nas aulas e entrevistas – refiná-lo, aprimorá-lo, cunhá-lo novamente.28 Não se

27 Sobre a interpretação em Nietzsche e Foucault, Cf: Rabinow e Dreyfus (1995, p. 119-120). 28 Neste processo de depuração, alertará, numa entrevista de 1976, para o equívoco que seria

pensar o acontecimento pelo viés da homogeneidade, semelhança e universalidade: “Não se trata de colocar tudo num certo plano, que seria o do acontecimento, mas de considerar que existe todo um escalonamento de tipos de acontecimentos diferentes que não têm o mesmo al-cance, a mesma amplitude cronológica, nem a mesma capacidade de produzir efeitos. O problema é ao mesmo tempo distinguir os acontecimentos, diferenciar as redes e os níveis a

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pode esquecer que o seu escrutínio, na genealogia, pressupõe a investigação não só das práticas discursivas, mas também daquelas consideradas não discursivas. Essa reformulação do campo analítico foi viabilizada pela introdução da noção de dispositivo. Digamos que, para além das categorias arqueológicas da episteme e da prática discursiva, o dispositivo procura corresponder ao anseio de ampliação do campo investigativo, meta (como vimos) anunciada em A ordem do discurso.29

O dispositivo procura demarcar, na pesquisa, a natureza da relação existente entre diversos elementos heterogêneos. Para tanto, são consideradas as esferas do enunciado e das práticas institucionais e sociais não discursivas, pois o dispositivo é constituído, concomitantemente, por discursos e por práticas não circunscritas a esse âmbito. Isso indica, portanto, que na pesquisa ele é o “jogo” que pode ser estabelecido por diversos elementos que são, por sua vez, distintos e relacionáveis. O dispositivo, além disso, tem função estratégica e sua formação corresponde a uma urgência histórica. “Em suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo. Ele é a rede que pode ser estabelecida entre estes elementos.”30

Com o dispositivo, a genealogia procura empreender o inventário histórico-crítico dos acontecimentos por meio da detecção das práticas discursivas e não discursivas. Trata-se, com os diferentes dispositivos (o disciplinar, o de sexualidade ou aqueles concernentes às governamentalidades como, por exemplo, o de segurança), de trazer à tona o multifacetado campo de forças no qual essas práticas surgem, ramificam-se, ligam-se, alinham-se, justapõem-se; ou, diferentemente disso, atritam e conflitam umas com as outras.

que pertencem e reconstituir os fios que os ligam e que fazem com que se engendrem, uns a partir dos outros.” (FOUCAULT, 1990b, p. 5).

29 É importante dizer, contudo, que embora a investigação arqueológica esteja circunscrita à

esfera da discursividade, a genealogia não deve ser tida como uma metodologia oposta (na medida em que proporcionaria, em relação à arqueologia, uma ruptura total e intransponível). Vejamos, por exemplo, como Foucault situa a arqueologia nas pesquisas conduzidas no Collège de France em 1976. Na primeira aula de “Em Defesa da Sociedade”, o pensador dirá: “A arqueologia seria o método próprio da análise das discursividades locais, e a genealogia, a tática que faz intervir, a partir dessas discursividades locais assim descritas, os saberes dessujeitados que daí se desprendem. Isso para reconstituir o projeto de conjunto.” (FOUCAULT, 1999a, p. 16).

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Atentemos para a explicação de Foucault: “Através deste termo [dispositivo], tento demarcar, em primeiro lugar, um conjunto decididamente heterogêneo, que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas.” (FOUCAULT, 1990b, p. 244).

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Como mostramos acima, fica evidenciado: (1) que o conceito de dispositivo amplia o campo analítico dos acontecimentos para além das pretensões arqueológicas; (2) que na apropriação do léxico nietzschiano há o encadeamento da noção de acontecimento com a perspectiva crítica da genealogia foucaultiana. De certa forma, o estudo denominado “Qu’est-ce que la critique? Critique et Aufklärung”, no qual Foucault analisa a atualidade da crítica e sua relação com a Aufklärung, confirma e amplia o horizonte dessas asserções.31 Cremos que, nessa reflexão, o pensador francês discute o acontecimento num duplo movimento, o que o faz avançar na enunciação do conceito. Com isso, queremos indicar que, ao mesmo tempo em que explicita a singularidade do acontecimento, como categoria investigativa, indica a sua adequação com distintos objetos de análise, permitindo, de tal modo, melhor situá-lo como chave interpretativa da modernidade.

Resumidamente, em sua exposição à Société Française de Philosophie, Foucault dirá que Kant foi responsável por erigir dois modos de tratar a questão da Aufklärung e a sua relação com a atitude crítica. Com essa proposição, aponta o pensador setecentista como fundador das duas grandes tradições por meio das quais a modernidade fora problematizada. A primeira dessas perspectivas ficaria circunscrita especificamente ao campo dos problemas de Teoria do Conhecimento; já a segunda ampliaria o espaço investigativo na medida em que proporia a leitura do vórtice Aufklärung e a crítica pelo viés do intrincado campo das relações de poder. É nessa segunda acepção da crítica que o acontecimento entra em cena. O neologismo d`événementialisation (Événement pode ser traduzido como Acontecimento) indica, portanto, uma análise histórico-filosófica não circunscrita ao âmbito da teoria do conhecimento, e a possibilidade de estudar o fenômeno da Aufklärung (sua emergência, transformações, implicações) como constitutivo do campo das relações de poder (FOUCAULT, 1999c, p. 8). Seria um equívoco, contudo, pensarmos que a introdução do poder na trama analítica revelaria o desinteresse do genealogista pelas implicações do conhecimento nos dilemas da Ilustração. O que Foucault faz, na verdade, é reposicioná-lo,

31 Referimo-nos ao texto apresentado por Foucault no encontro realizado na Société Française

de Philosophie, em maio de 1978, sob o título de “Qu’est-ce que la critique? Critique et Aufklärung”. Embora o pensador desejasse revisá-lo antes da publicação, esse veio a público sem que isso pudesse acontecer. Em relação à tradução brasileira de Selvino José Assmann, intitulada “Iluminismo e crítica”, esclarecemos que foi feita com base na tradução italiana, que traz um título diferente do original. Por isso, optamos por manter em nossa análise o título em francês.

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redirecioná-lo; e nesse intento, ao incluí-lo na ordem dos saberes, evidencia a sua relação com as práticas de poder.

Bem sabemos que as implicações do nexo poder-saber são uma questão recorrente nas pesquisas genealógicas. Em Vigiar e punir, por exemplo, a relação poder-saber é analisada em sua positividade,32 a saber, como capacidade produtiva disciplinar (FOUCAULT, 1993, p. 172). As pesquisas genealógicas, assim, levam em consideração que o poder e o saber: (1) não são externos um ao outro e (2) formam uma espiral contínua de reforço mútuo. Como explica Foucault: “Não há relação de poder sem constituição correlata de um campo de saber, nem saber que não suponha e não constitua ao mesmo tempo relações de po-der.” (FOUCAULT, 1993, p. 30). Contudo, na história da violência nas prisões, essa relação fica ainda circunscrita, exclusivamente, ao campo das disciplinas e aos processos de objetivação dos sujeitos.33 Entretanto, com os novos lineamentos das pesquisas genealógicas, após 1975, percebe-se a presença do nexo saber-poder na investigação de outros objetos. Nessa perspectiva, Foucault esclarece:

A palavra saber indica todos os procedimentos e todos os efeitos de conhecimento que um campo específico está disposto a aceitar em um determinado momento. O termo poder estende-se a toda uma série de mecanismos particulares, definíveis e definidos, capaz de determinar comportamentos ou discursos (FOUCAULT, 1999c, p. 8).

32 Em Foucault, as noções de positividade e negatividade não são conceitos morais, ou seja,

positivo não é necessariamente sinônimo de bom nem mesmo o negativo de mau. Positivo significa a produtividade do poder, já negativo é o poder que se exercer por meio de uma “subtração”. Cabe enfatizar que, apesar de suas diferenças, tanto as práticas positivas quanto as negativas podem desencadear efeitos nocivos aos seres humanos.

33 A genealogia das tecnologias disciplinares analisa as condições pelas quais o homem

moderno constitui a sua identidade, seus valores e, assim, seus modos de ser e agir, dentro de sofisticados processos institucionais nos quais ele é feito, por assim dizer, como objeto de saberes e práticas institucionais de poder. Trata-se, na história da violência nas prisões, de trazer à tona o processo de constituição da verdade destas tecnologias objetivantes que incidem sobre o homem moderno: “Em suma, tentar estudar a metamorfose dos métodos punitivos a partir de uma tecnologia política do corpo onde se poderia ler uma história comum das relações de poder e das relações de objeto. De maneira que, pela análise da suavidade penal como técnica de poder, poderíamos compreender ao mesmo tempo como o homem, a alma, o indivíduo normal ou anormal vieram fazer a dublagem do crime como objetos da intervenção penal; e de que maneira um modo específico de sujeição pôde dar origem ao homem como objeto de saber para um discurso com status ‘científico.’” (FOUCAULT, 1993, p. 194, 26-27).

Referências

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