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GOVERNAMENTALIDADE E O ÉTHOS ÉTICO-POLÍTICO

Podemos afirmar que as análises contidas nos livros História da sexualidade 2. O uso dos prazeres e História da sexualidade 3. O cuidado de si e nos cursos “Hermenêutica do sujeito” (1982), “O governo de si e dos outros” (1983) e “A coragem da verdade. O governo de si e dos outros II” (1984) discutem um conjunto de experiências ético-políticas, no mundo antigo, tomando por referência o seguinte marco histórico: Grécia clássica (a partir do século V a.C.), o helenismo e os primórdios da influência romana (até o século II d.C.), bem como o cristianismo antigo. Isso, claro, sem negligenciar as diferenças dos percursos teóricos de cada um desses estudos, evitando, com isso, uma

leitura linear da genealogia da ética.

Esclarecemos também que não se trata, no terceiro domínio da investigação genealógica, de empreender uma história dos códigos normativos ou das morais vigentes (com preceitos universalistas) na Grécia clássica, no helenismo ou mesmo no cristianismo; ou de procurar no mundo antigo – numa suposta “Idade de ouro” – a solução para os dilemas ético-políticos contemporâneos – que funcionaria como uma espécie de panaceia aos males capitais do nosso tempo. Diferente disso, na redefinição do seu projeto de pesquisa, em O uso dos prazeres, Foucault mostra que o que lhe interessa, por exemplo, na experiência dos sujeitos com os seus prazeres, no mundo antigo, é, sobretudo, problematizar o componente ético que aí aparece. Em sua “história da sexualidade”, ele volta os olhares para a relação que determinados sujeitos (na cultura antiga) estabelecem consigo próprios, inquirindo “a maneira pela qual o indivíduo deve constituir tal parte dele mesmo como matéria principal de sua conduta moral.” Diversamente das formas de heteronomia moral a que os indivíduos e os grupos sociais, em tantos momentos, ao longo da história, se sujeitaram – em relação às leis divinas ou humanas e aos costumes e valores predominantes –, o “domínio” do sujeito sobre si mesmo indica a existência de um trabalho ético de si sobre si, que fez com que a ação moral se tornasse inseparável das formas de cultivo da própria existência, por parte do indivíduo. Trata-se, nesta ascese, do estabelecimento de um ethos sexual do sujeito (aplicável a outros campos da vida) que procura governar a si próprio (sendo austero, vivenciando uma economia dos prazeres sem, contudo, renunciar a si mesmo) como condição para liderar os demais (FOUCAULT, 1990a, p. 26-30).

Como vemos, na transição dos textos sobre o liberalismo à ética do sujeito, dos anos de 1980, o conceito de governamentalidade toma novos contornos. O aparecimento de uma “ética da estética da existência” (aphrodisia), no período clássico, e do “cuidado de si” (epimeleïa heautou), no helenismo e na cultura romana, revela novas formas de o sujeito governar a si mesmo e aos outros, na esfera da Polis e também na relação direta com a phýsis. Essas práticas de subjetivação distinguem-se do cuidado de si do cristianismo, profundamente marcado pela vinculação entre a virtude e a renúncia de si mesmo por parte do sujeito.

Nas pesquisas sobre os modos de existência no mundo antigo, Foucault sustenta que cuidar de si é condição para melhor se relacionar com os demais, ao ponto de adquirir o status de conduzir as suas condutas, mas também de cultivar uma posição autônoma no que tange

à verdade. Partindo dessa inferência, destacamos dois aspectos: a) Governar os outros (e ajudá-los a governarem a si mesmos) não é um ato de tirania, de violência ou ainda – como aparecerá nos últimos cursos do Collège de France – de adulação e/ou persuasão retórica. b) O cuidado de si não se reduz ao conhecimento de si (gnôthi seautón) e das coisas, como mero acúmulo de conhecimento. Não se trata de dar primazia ao sujeito do conhecimento como aquele que, mais do que qualquer outro, ascende à verdade (sobre si e sobre o mundo que o cerca) por “dominar” um campo de conhecimento e, com base nessa crença, assumir a posição de arauto das certezas científicas ou filosóficas. Embora não haja preponderância do sujeito cognoscente no cuidado de si, governar a si mesmo implica, também, uma dimensão de conhecimento do sujeito sobre si próprio (sobre o que o constitui como tal) e os demais. Dessa forma, a ascese individual é, por assim dizer, a relação crítica do sujeito consigo mesmo, com os outros e, por conseguinte, com a verdade (na pedagogia do cuidado de si, os mestres da existência antigos, que não são os diretores de consciência cristãos, exerceram um papel relevante)65.

O compromisso ético do sujeito (que governa a si mesmo) com a verdade faz com que sua ação não seja determinada pelos esquemas binários que separam e hierarquizam a teoria e a prática, a obra e a vida. Essa tese aparece, de acordo com diferentes níveis de abordagem, nas análises contidas nos três últimos cursos ministrados por Foucault no Collège de France, nas quais figuram, cabe ressaltar, as reflexões sobre a “cultura de si” e a prática da parresía.

Contudo, antes de tratarmos mais detidamente do conceito de parresía, destacamos, ainda que brevemente, as considerações de Gros sobre as pesquisas genealógicas do período. Para o autor, a análise foucaultiana dos textos antigos é sempre rigorosa e muito analítica. No que tange às aulas ministradas no Collège de France, seus comentários sobre os pensadores antigos (destacamos: frequentemente acompanhados dos textos em grego) são sempre bastante originais. Quanto à metodologia que atravessa os cursos entre 1982 e 1984, Gros explica:

Globalmente, o método continua sendo o que ele havia utilizado no ano precedente [1982], a propósito do cuidado de si: a partir de uma noção

65 Como mostraremos, no curso “Hermenêutica do sujeito” (dedicado a uma história do

cuidado de si), a parresía fora definida, exclusivamente, como a franqueza do mestre de existência na cultura antiga.

(aqui: a parresía), identificar textos-chave, descrever as estratégias de uso, desenhar linhas de evolução ou de ruptura. (GROS apud FOUCAULT, 2010b, p. 352).

Em posição oposta à retórica, mas também à lisonja, a parresía antiga (o “dizer verdadeiro”, a “fala franca”, a “coragem da verdade”) é um ethos que funde, em maior ou menor intensidade, as experiências política e ética do sujeito: que procura incessantemente governar a si e aos demais na Polis, como líder democrata e/ou cidadão livre (Péricles e Sócrates); que visa aconselhar o príncipe (Platão em Siracusa) ou contestá-lo duramente (Diógenes enfrentando Alexandre). De modo geral, o parresiasta é aquele que assume os riscos da sua relação crítica com a verdade nestes diferentes papéis sociais, como líder político, cidadão, filósofo, conselheiro e contestador.

O estudo foucaultiano da parresía releva, no encontro dos temas concernentes à política e à ética, a problematização da atitude crítica como virtude moral. Sem perder de vista as nuances do conceito e, assim, as variações correspondentes aos diferentes dispositivos históricos, Foucault aponta para a proximidade entre a experiência do “dizer verdadeiro”, na cultura antiga, e a problematização crítica do Iluminismo empreendida por Kant. Ao analisar a crítica kantiana à Aufklärung, nas duas primeiras aulas do curso de 1983, o pensador contemporâneo dá um passo além em relação ao que propusera na conferência “Qu’est-ce que la critique? Critique et Aufklärung”, sobre a vinculação entre Iluminismo e crítica. No texto de 1978, já aparece a questão da governamentalidade, mas com destaque para as formas de “dessujeição” (como não ser governado ou ser menos governado?) em relação às “políticas de verdade” da modernidade – tratava-se, sobretudo, de empreender uma crítica como resistência às formas de individualização e totalização características dos poderes modernos. No curso “O governo de si e dos outros”, a questão do Iluminismo é tratada, principalmente, como o reinvestimento da exigência do “dizer verdadeiro”. Nele, a coragem de enunciar a verdade (inaugurada pelos gregos) aparece como ponto de inflexão na crítica às práticas modernas de governamentalidade. Nesse sentido, problematizar a Ilustração é interrogar-se sobre qual forma de governo de si deve ser posta, concomitantemente, como fundamento e como limite do governo dos outros (GROS apud FOUCAULT, 2010b, p. 345). Cabe destacar que a oposição entre as duas tradições (transcendental e crítica) que, segundo Foucault, teriam sido inauguradas por Kant, reaparece nas aulas de 1983

no Collège de France. Inclinado a discutir a herança crítica de Kant e não a empreender uma Teoria do Conhecimento, o pensador contemporâneo dá seguimento a sua história crítica do presente propondo, nessa investigação do antigo e do moderno, o diagnóstico (a problematização) do que hoje somos.

Nesse intento, cabe destacar, há, sob o ponto de vista da análise, deslocamentos importantes nas aulas de A Coragem da verdade. O governo de si e dos outros II, se comparadas aos encontros de 1983. Isso pode ser verificado na abordagem foucaultiana das experiências parresiastas de Sócrates e dos Cínicos: essas não ficam circunscritas ao âmbito da direção pedagógica (individual) de si e do outro no âmbito da prática política. O mote dos encontros de 1984, no Collège de France, é o discurso pronunciado em praça pública sob a forma de palavra irônica, da maiêutica e da arenga brutal, grosseira e desconcertante (GROS apud FOUCAULT, 2010b, p. 346). No estudo das “formas aletúrgicas” – transformações éticas do sujeito, na medida em que ele faz a relação consigo e com os outros depender de certo dizer-verdadeiro – a vida é problematizada na relação com a parresía, o que dá novos contornos ao debate (na história foucaultiana do presente) sobre as governamentalidades e, assim, a formação de um ethos ético-político compatível com a prática da liberdade.

Esse ethos implica uma prática refletida da liberdade por parte do sujeito que se relaciona ética e politicamente consigo e com os outros. É fácil deduzir que, em Foucault, a liberdade não é um conceito supra- histórico, pois se constitui como prática, como acontecimento histórico. Como veremos, na ampliação da análise da governamentalidade ao campo da ética (mas, sobretudo, a relação entre ética e política) fica evidente a definição foucaultiana da liberdade como autogoverno. Não esqueçamos que governar consiste tanto no domínio que cada um pode exercer sobre si mesmo quanto na condição de conduzir a conduta dos demais, quer se trate de indivíduos singularmente, quer de grupos sociais. Como diz o pensador: “quanto mais pessoas forem livres uma em relação às outras, maior será o desejo tanto de umas como de outras de determinar a conduta das outras. Quanto mais o jogo é aberto, mais ele é atraente e fascinante.” (FOUCAULT, 2004a, p. 286). Os processos de subjetivação nos quais as pessoas governam a si e procuram governar as demais não têm como fundamento as formas modernas de individualismo egoísta (conceito vinculado à tradição liberal) e/ou a liberdade negativa (ausência de impedimentos) e a liberdade de mercado (noção aprimorada nas vertentes neoliberais). Se tomarmos por referência os três domínios genealógicos de análise, em seu conjunto, a

liberdade aparece como resistência e contraconduta, mas também como governo de si e dos outros e como crítica da verdade, o que faz com que a autonomia humana, em Foucault, não possa ser circunscrita às formas de individualismo modernas (sujeito de interesse) e contemporâneas (homem-empresa). Diferentemente disso, a analítica dos domínios da ontologia histórica de nós mesmos indica a íntima relação entre as práticas da liberdade e a realização de um ethos ético-político possível.

2 MATRIZES DA GOVERNAMENTALIDADE OCIDENTAL: O PODER PASTORAL E A RAZÃO DE ESTADO

E se consagrar (sacrare) era o termo que designava a saída das coisas da esfera do direito humano, profanar, por sua vez, significava restituí-las ao livre uso dos homens.

Giorgio Agamben

2.1 INTERCURSOS: AS VIAGENS À ALEMANHA, AO JAPÃO E