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Não é novidade que a analítica foucaultiana do poder vem sendo discutida, nas últimas décadas, por teóricos de diferentes áreas do conhecimento. Distantes dos reducionismos e das simplificações existem, na atualidade, importantes estudos que problematizam as teses foucaultianas confrontando-as com os grandes dilemas e transformações de nossa sociedade. Exemplar desse movimento de ideias, o livro O discurso filosófico da modernidade, de Habermas, parece sobreviver ao tempo não só pela projeção que obteve nos meios acadêmicos, mas, acima de tudo, pela acuidade com que trata as vicissitudes teóricas do mundo moderno e contemporâneo. Na obra, o autor alemão reconhece a presença de Foucault no que considera como o discurso filosófico da modernidade, o que o faz analisar, com grande vigor intelectual, a metodologia foucaultiana e sua concepção de poder.

Grosso modo, a reflexão proposta por Habermas sugere que, apesar dos esforços contrários, a crítica foucaultiana acaba por erigir uma teoria do poder. As consequências paradoxais dessa concepção de poder revelariam, no final das contas, a malfadada odisseia de fazer parte daquilo que insiste em criticar. Ou seja, sob o pretexto de investigar os acidentes, as eventualidades formadoras dos acontecimentos históricos, a genealogia (avessa ao essencialismo) conceberia o poder como um ente constante, irredutível e permanente – prova (metafísica) de sua dimensão transcendental.

Em desacordo com o que dissera Foucault a respeito de sua metodologia, Habermas argumenta que uma das consequências dessa teoria é transformar a vontade de saber num subproduto do poder, fazendo com que as práticas de poder assumam um papel transcendental na constituição do saber. Reducionismo que pode ser verificado nos pressupostos operacionais da genealogia: a) postular uma vontade de verdade para todas as épocas e sociedades; b) ocultar a proveniência do conceito de poder da vontade de verdade e de saber – o que viabiliza o uso sistemático de uma noção ambígua do poder (HABERMAS, 2000, p. 378, 381). Em suma, a genealogia foucaultiana fracassaria no seu duplo papel empírico e transcendental49 e sua posição iconoclasta seria, na verdade, resultante de uma frágil historiografia (pseudociência) que não se desvencilharia das antinomias características do seu presentismo, relativismo e cripto-normativo:

49 Sobre a compreensão habermasiana dos papéis empírico e transcendental, cf. Habermas

Foucault enreda-se em aporias tão logo deva explicar como deve ser entendido aquilo que o próprio historiador genealogista faz. A pretensa objetividade do conhecimento se vê, então, questionada (1) pelo presentismo, involuntário de uma historiografia que permanece presa a sua situação de partida; (2) pelo inevitável relativismo de uma análise referida ao presente e que só pode ser entendida como uma empresa prática dependente do contexto; e (3) pela parcialidade arbitrária de uma crítica que não pode justificar os seus fundamentos normativos (HABERMAS, 2000, p. 387).

Merquior dirá que, para Habermas, a genealogia substituiu o modelo repressão/emancipação pela investigação de diversas formações de poder correlacionáveis. O que traria dificuldades, pois, sob o ponto de vista da análise, essas formações não poderiam ser diferenciadas segundo graus de validade. Diferentemente de Habermas, prossegue Merquior, a metodologia foucaultiana teria descartado, como parâmetro de análise, o princípio de razão universal. Assim sendo, acreditaria Foucault que a “verdade universal era apenas outro nome para o poder disfarçado como critério de todo saber.” Confrontando as duas perspectivas teóricas, salienta o autor brasileiro: “Enquanto Habermas via o universalismo como uma garantia racional da verdade, Foucault só conseguia vê-lo como uma máscara de dogmatismo.” (MERQUIOR, 1985, p. 228-230).

Como sabemos, o debate tão aguardado entre Foucault e Habermas não ocorreu, tendo em vista a morte repentina do pensador francês. Sem a pretensão de discutir detalhadamente a profícua análise que Habermas oferece da genealogia, em seus lineamentos e pormenores, limitamo-nos, aqui, a levantar alguns argumentos (divergentes em relação às considerações do autor alemão) que possibilitem melhor esclarecer os pressupostos metodológicos de Foucault.

O pensador francês deixa claro, em vários momentos, que sua análise dos mecanismos do poder não visa o estabelecimento de uma teoria geral do que é o poder. Até porque, em Foucault, ele é considerado, sobretudo, como um conjunto de mecanismos e procedimentos e não como uma substância – o poder não encontra fundamento em si mesmo e não se dá por meio de si mesmo. O propósito do pensador francês ao analisá-lo é, então, trazer à tona a

política de verdade na qual se desenvolve a rede (o dispositivo) do poder, e não a revelação da verdade do poder (o seu valor intrínseco) no formato de uma teoria. Como dirá Agamben, o dispositivo, em Foucault, ocupa o lugar dos “universais” (o Estado, a Soberania, a Lei, o Poder). Em substituição a essas categorias gerais (entes da razão), os dispositivos – como vimos – seriam conceitos operativos de caráter geral que, na estratégia foucaultiana, substituiriam os universais.50 E mais, não se trata, na genealogia do poder, de erigir um discurso teórico (imperativo) que sirva de guia a toda e qualquer manifestação social, até porque – dirá Foucault em uma de suas aulas em 1978 – uma luta social é como um “campo de forças que não se pode de maneira nenhuma controlar nem fazer valer no interior desse discurso.” (FOUCAULT, 2008a, p. 3-6).

Ao analisar os argumentos de Habermas, Oliveira rejeita a tese de que uma teoria do poder seria a base de sustentação da genealogia foucaultiana. Argumenta o teórico brasileiro que Habermas oferece uma leitura caricata da genealogia, omitindo tanto a dimensão crítica da história, em Foucault, quanto as consequências práticas da subjetividade moderna. A seu ver, o autor alemão limita-se a citar o teórico francês apenas para descartá-lo pelas supostas aporias da teoria do poder. Tendo em vista que Foucault não pretendeu elaborar uma teoria do poder e/ou uma ‘teoria crítica’, Habermas equivoca-se quando afirma que o saber, na genealogia, está fundado numa teoria do poder. Quanto à crítica de relativismo, presentismo e cripto-normativismo (que remete, respectivamente, às questões da verdade, do valor e da norma), Foucault teria respondido ao vincular suas pesquisas (o que já havia feito desde Arqueologia do Saber) à concepção de um a priori histórico51 (OLIVEIRA, 1999, p.150-151).

Embora reconheça a riqueza do pensamento habermasiano, Foucault é reticente em relação ao que considera como o seu caráter utópico. Ciente do papel que exercem as relações de poder nas várias

50 Como explica o pensador italiano, o dispositivo é um termo técnico decisivo na estratégia de

pensamento de Michel Foucault, usado, sobretudo, no momento em que passa a estudar os temas concernentes ao “governo dos homens”. Os dispositivos não são desdobramentos do ser; diferentemente disso, correspondem sempre (como veremos em relação à governamentalidade) a processos de subjetivação: “O termo dispositivo nomeia aquilo em que e por meio do qual se realiza uma pura atividade de governo sem nenhum fundamento no ser. Por isso os dispositivos devem sempre implicar um processo de subjetivação, isto é, devem produzir o seu sujeito.” (AGAMBEN, 2009, p. 27-28, 33, 38).

51 Sobre o tema, sugerimos a leitura do capítulo VI do Tractatus ethico-politicus: genealogia

do ethos moderno, intitulado “Verdade, poder, ética: Foucault e a genealogia da modernidade”. (OLIVEIRA, 1999, p. 137-161).

instâncias da sociedade, não compartilha com a tese (e nisso percebe-se divergente de Habermas) de que os jogos de verdade que circulam nas relações de comunicação possam se estabelecer sem obstáculos, constrangimentos e/ou efeitos coercitivos. Aliás, se atentarmos para o fato de que o projeto investigativo de Foucault, tal qual é definido, por exemplo, na célebre entrevista de 1984, intitulada “A ética do cuidado de si como prática da liberdade”,52 corresponde à articulação entre os domínios investigativos do saber, poder e ética, constataremos que há nuances da pesquisa genealógica (concernentes, como veremos, às formas históricas de “governo entre os homens”) que parecem não ganhar a devida atenção por parte de Habermas (FOUCAULT, 2004a, p. 284). Contudo, antes de tratarmos das noções de governo e governamentalidade, procuramos, com base em A vontade de saber, melhor definir os traços da analítica foucaultiana do poder.

Como vimos, Foucault tem consciência dos efeitos deletérios do poder presentes nos diferentes modelos de gestão (oriundos ou não da estrutura estatal) que incidem sobre os indivíduos e as populações. Rejeitando as teses que giram em torno do pessimismo e da apatia política, procura trazer à tona as lutas que se estabelecem nos jogos modernos e contemporâneos de poder: reveladoras tanto das tecnologias de assujeitamento da vida quanto das práticas de dessujeição e liberdade. É ilustrativa dos conflitos próprios aos jogos de poder a tensão existente entre os exercícios de poder e as formas de resistência. Conforme A vontade de saber, onde há poder, há resistência, ou seja, para existirem relações de poder, é necessário que haja pontos de resistência que, por sua vez, fazem o papel de “adversário”. A resistência é, então, o outro termo da relação e, por isso, far-se-á presente em toda a rede de poder. Assim como o poder, as resistências apresentam mobilidade e são transitórias; elas introduzem clivagens por todo o corpo social, deslocam-se, rompem unidades, criam reagrupa- mentos. As resistências atravessam todas as camadas sociais e as uni- dades individuais. São inventivas, produtivas e se distribuem estra- tegicamente pela espessura do corpo social (FOUCAULT, 1988, p. 91- 92).

Os jogos poder-resistência não se reduzem aos efeitos da obrigação e da coerção sociais, e tampouco se restringem ao grande jogo do Estado com os cidadãos ou mesmo com outros Estados – embora

52 Trata-se da entrevista com H. Becker, R. Fornet-Betancourt e A. Gómez-Müller, em 20 de

atravesse todos esses campos. O que está em questão nesses jogos53 não são somente os processos de objetivação, mas também de subjetivação.54 Nessa perspectiva, as diferentes correlações de força, constitutivas de muitos desses jogos, podem fazer com que as ações individuais e coletivas apareçam não somente como instâncias de controle, sujeição e apreensão da vida dos indivíduos e dos grupos sociais, mas também como espaço de resistência às investidas do poder. Tendo por base A vontade de saber, os demais traços da analítica do poder podem ser assim definidos: o poder não é algo que necessariamente se possua ou se partilhe, que se guarde ou se deixe escapar. Ele se exerce pelos mais variados pontos e em meio a relações desiguais e móveis. As relações de poder não estão em posição de exterioridade em vista de outras relações, como de conhecimento, afetivas, sexuais, econômicas etc., até porque essas lhes são imanentes. As relações de poder não estão em posição de superestrutura, com função negativa de interdição. Possuem, lá onde atuam, um papel fundamentalmente produtivo. O poder “vem de baixo”: isto quer dizer que não existe uma oposição binária e global que defina, em termos precisos, a relação entre dominantes e dominados – como matriz geral que repercuta verticalmente reverberando por toda a sociedade. As dominações de várias proporções (nos diferentes graus) são efeitos de conjunto de múltiplas práticas, de afrontamentos locais, de jogos de força sociais. As grandes dominações são, acima de tudo, efeitos hegemônicos sustentados pela frequência desses afrontamentos. As relações de poder são, simultaneamente, intencionais e não subjetivas. Não resultam da vontade ou escolha vinda de um ponto único (exclusivo), central, individual ou coletivo – por exemplo: Soberano, Estado, classe social; embora o poder só se exerça com miras e objetivos. A racionalidade do poder é a mesma das táticas inúmeras vezes bem explicitadas nos âmbitos mais limitados, que, ao se encadearem entre si, apresentam dispositivos de conjunto que nem sempre são identificáveis. Onde se exercem, sua lógica é decifrável;

53 Sobre os jogos de poder, cf. Foucault (2004a, p. 46-47).

54 Em termos bastante esquemáticos, podemos dizer que a ““subjetivação” designa, para

Foucault, um processo pelo qual se obtém a constituição de um sujeito, ou, mais exatamente, de uma subjetividade. Os “modos de subjetivação” ou “processos de subjetivação” do ser humano correspondem, na realidade, a dois tipos de análise: de um lado, os modos de objetivação que transformam os seres humanos em sujeitos – o que significa que há somente sujeitos objetivados e que os modos de subjetivação são, nesse sentido, práticas de objetivação; de outro lado [como veremos], a maneira pela qual a relação consigo, por meio de um certo número de técnicas, permite constituir-se como sujeito de sua própria existência.” (REVEL, 2005, p. 82).

entretanto, passam a impressão, quase sempre, de que ninguém as concebeu, pois são estratégias anônimas. Este anonimato, aliás, é condição para que a estratégia da relação obtenha êxito. Em suma:

o poder não é uma instituição nem uma estrutura, não é uma certa potência de que alguns sejam dotados: é um nome dado a uma situação estratégica, complexa, numa sociedade determinada (FOUCAULT, 1988, p. 89-92).

Em A vontade de saber a investigação da biopolítica explorará outro domínio de análise, a saber, a sexualidade. Assim como a genealogia da guerra, com base na ideia de raça, revelou a incidência das práticas do biopoder na gestão da vida biológica da população, a análise da emergência do dispositivo de sexualidade mostrou a reedição desse controle “cientítico-político”, só que agora o seu alvo primordial é o “sexo”. Dito de outro modo, houve, no final da modernidade, em torno das preocupações com o corpo individual e social, a proliferação de uma gama de discursos sobre o “sexo” que culminou com a formação (histórica) da sexualidade – modalidade de saber-poder sobre o sexo. A “gestão” (regulação) da sexualidade dos corpos individuais e populacionais acontece por meio da junção das técnicas disciplinares (anátomo-política) com a regulação das populações (biopolítica da espécie). Nesse caso, o domínio do poder que incide sobre a vida é o da sexualidade, pois é ela o campo de ação do biopoder. De um lado, a sexualidade como conduta corporal é alvo do controle disciplinar, ficando, portanto, submetida à vigilância permanente55. De outro, a sexualidade se inscreve como objeto de regulação no âmbito coletivo por aquilo que é considerado como consequências ou efeitos gerais, por afetarem não somente os corpos individuais, mas o corpo populacional (por exemplo: efeitos ligados à procriação, ao contágio de doenças etc.). Foucault salienta que “a sexualidade se situa exatamente na encruzilhada entre o corpo e a população. Portanto, nela se manifesta a disciplina, mas também a regulação.” (FOUCAULT, 1991, p. 9).

Observa o teórico francês que as práticas de gestão, controle e sujeição desencadeadas pelo biopoder estavam em consonância com o desenvolvimento de capitalismo. Ou seja, como resposta à necessidade do capitalismo de utilizar e controlar os corpos dos indivíduos no aparelho de produção, efetiva-se um ajustamento dos fenômenos da

55 Por exemplo, os controles feitos sobre a masturbação das crianças ao final do século XVIII

população aos processos econômicos. Para o pensador, o capitalismo foi mais longe, exigindo tanto um aumento das forças e aptidões, como uma progressiva diminuição do poder de revolta, tornando os indivíduos e as populações mais produtivos, lucrativos e submissos. Em outras palavras, o capitalismo necessitou de métodos e técnicas de poder que aumentassem, ao mesmo tempo, a utilidade e a docilidade dos indivíduos e das populações, servindo assim aos seus propósitos mais imediatos. Em suma, trata-se, no biopoder, de uma sujeição que atinge as singularidades dos corpos mas também o conjunto populacional (FOUCAULT, 1988, p. 132).

Até o momento, apresentamos os dois lineamentos da biopolítica analisados por Foucault no curso “Em defesa da sociedade” (biopoder e raça) e no livro História da sexualidade 1. A vontade de saber (biopoder e sexualidade). Todavia, a primeira abordagem da noção de biopolítica data do ano de 1974. Na conferência proferida na cidade do Rio de Janeiro, no mês de outubro do ano citado, publicada com o título “O nascimento da medicina social”, Foucault, ao discutir a emergência da medicina social, diverge da tese que afirma que com o desenvolvimento do capitalismo se dá a passagem da medicina coletiva para uma medicina privada. Diversamente, o que teria ocorrido entre o final do século XVIII e o início do século XIX foi uma espécie de “socialização” do corpo, considerado, nesse momento, como força de produção, força de trabalho. Disso decorre que o “controle da sociedade sobre os indivíduos não se opera simplesmente pela consciência ou pela ideologia, mas começa no corpo, com o corpo.56”

Essa perspectiva indica, por exemplo, a existência de um investimento maciço dos saberes e das instituições estatais, nas sociedades capitalistas, no âmbito do biológico, fazendo com que o corpo se torna espaço de produção e alvo do poder. Bem sabemos que com as disciplinas modernas os corpos individuais são transformados em objeto de um poder-saber que procurou, em diferentes configurações sociais, torná-los mais produtivos no modelo capitalista de produção. Mas, no caso da medicina social, a problematização do corpo não ficou circunscrita ao âmbito das disciplinas. Atentemos, então, para o fato de

56 A “socialização” do corpo pela medicina social não teve como alvo, inicialmente, a força de

trabalho. Assim: “[...] o que parece característico da evolução da medicina social, isto é, da própria medicina, no Ocidente, é que não foi a princípio como força de produção que o corpo foi atingido pelo poder médico. Não foi o corpo que trabalha, o corpo do proletariado que primeiramente foi assumido pela medicina. Foi somente em último lugar, na 2° metade do século XIX, que se colocou o problema do corpo, da saúde ao nível da força produtiva dos indivíduos.” (FOUCAULT, 1990b, p. 80).

que, na virada do século XVIII ao XIX, o corpo passa a ser considerado como alvo do poder da medicina, o que lhe confere uma realidade biopolítica. Nesse momento, a medicina assume a condição de uma estratégia biopolítica, passando o corpo populacional a ser considerado como o seu campo de ação, de investimento, de produção.

O teórico francês dirá que existiram três etapas na formação da medicina social, o que revela (cremos) traços primordiais do modo de ingerência do poder medical sobre a população. Os três momentos que constituíram a prática da medicina social são: a “medicina do Estado” (na Alemanha por volta do início do século XVIII), a “medicina urbana” (na França em torno do final do século XVIII) e a “medicina voltada aos pobres e a força de trabalho” (na Inglaterra durante o século XIX).

Procurando concretizar os objetivos mercantilistas de majorar a produção da população, a medicina do Estado, na Alemanha, desencadeará, por meio de uma polícia médica, um forte esquema de normalização, primeiro em relação ao saber da medicina e aos médicos e, depois, sobre a população como um todo. A administração da saúde culminará no esquadrinhamento médico da população. Na França, no crepúsculo do século XVIII, a medicina social ganha relevância na medida em que é articulada ao processo de desenvolvimento das estruturas urbanas. A medicina urbana visava, primeiro, analisar as regiões de amontoamento, de conflitos e de perigo próprios do espaço urbano. Em segundo lugar, ela visava controlar a circulação, não tanto dos indivíduos, mas sobretudo das coisas e dos elementos como a água e o ar. Trata-se, na medicina urbana, de uma forma de controle com incidência sobre o “meio”. A questão da insalubridade, como problema concernente à higiene pública, é ilustrativa do modelo de controle político-científico da população materializado no meio urbano. Por último, na Inglaterra, no decorrer do século XIX, desenvolve-se uma medicina que incide sobre os pobres, sobre os operários. Dirá Foucault que no momento em que os pobres passam a ser considerados como um perigo médico-social (“perigo sanitário e político para a cidade”) surgem os sistemas sanitários e assistenciais de controle da classe operária. Dessa forma, a “intervenção nos locais insalubres, as verificações de vacina, os registros de doenças tinham de fato por objetivo o controle das classes mais pobres.” (FOUCAULT, 1990b, p. 96).

O controle médico da população se notabilizou por seu caráter autoritário, o que acabou gerando por parte dos estratos mais pobres da sociedade práticas de resistência ao poder da medicina. Foucault menciona o exemplo das peregrinações religiosas no século XIX que

são, de certa maneira, formas de resistir à medicalização autoritária, ao controle médico exercido essencialmente sobre a população mais pobre. Cremos que o episódio da “revolta da vacina”, ocorrido na cidade do Rio de Janeiro na virada do século XIX para o XX, pode ser considerado como um exemplo da resistência da parcela mais empobrecida da população carioca ao autoritarismo do poder medical. No livro Os bestializados: o Rio de Janeiro e a república que não foi, Murilo de Carvalho analisa acontecimentos, na cena política brasileira, que, cremos, reúnem esses elementos de resistência. Não se trata de uma revolução, mas do processo de rejeição à vacinação