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A CRISE DA RAZÃO DE ESTADO E O ADVENTO DA NOVA GOVERNAMENTALIDADE

Ao longo do século XVIII, o Estado de polícia vai paulatinamente enfraquecendo e, assim, se desmantelando. Acredita Foucault que a crítica ao sonho da sociedade organizada sob a égide da polícia se fundamente, sobretudo, em questões de ordem econômica. São decisivos no declínio desse ideário policial os problemas dos cereais, da sua comercialização e circulação, como também os impasses gerados pela questão da escassez alimentar. Em outros termos, os problemas econômicos se constituem nos motivos essenciais da desmontagem do projeto de uma polícia integral, haja vista o reconhecimento dos seus limites no tratamento das questões econômicas e político-sociais que emergiram a partir do século XVIII. Cabe acrescentar que o abalo desse ideário tem também como causa a política de desurbanização, articulada aos objetivos econômicos de maior investimento na terra e na agricultura.

Na nova governamentalidade, as técnicas de governo são centradas na produção e não (ou nem tanto) no controle ostensivo sobre a circulação. Conforme Foucault, acreditam os economistas do final do século XVIII que a regulação da polícia não seja suficiente para lidar com os novos problemas econômicos e políticos: as coisas não são mais consideradas flexíveis como outrora e, assim, passíveis da regulação policial; agora os movimentos econômicos, políticos e sociais são tidos como recalcitrantes. Nesse novo momento, o rumo que as coisas tomam deve se constituir no referencial para a ação governamental155. Ademais,

por exemplo, que embora representantes do ideário iluminista defendessem, no século XVIII, a igualdade de direitos e a estabilidade político-social, o controle, a repressão e a violência compunham a racionalidade das ações estatais (absolutistas ou revolucionárias) antes, durante e mesmo depois da Revolução Francesa.

155 Sobre as mudanças, o pensador explica: “[Regulamentação policial:] era, é claro, que as

coisas eram indefinidamente flexíveis e que a vontade do soberano [...] podia obter as coisas que ela queria. Ora, é exatamente isso que é questionado na análise dos economistas. A primeira é que não apenas há certo curso das coisas que não se pode modificar e que, precisamente, tentando modificá-lo, só se faz agravá-lo. [...] Se se quiser impedir que o cereal raro não seja caro valendo-se de regulamentos que fixem seu preço, o que vai acontecer? Pois bem, as pessoas não vão querer vender seu cereal, quanto mais se tentar baixar os preços, mais a escassez se agravará, mais os preços tenderão a subir. Por conseguinte, não apenas as coisas não são flexíveis, como são de certo modo recalcitrantes, elas se voltam contra os que desejam modificar seu curso.” (FOUCAULT, 2008a, p. 462-463).

a população deixa de ser considerada como um conjunto de indivíduos produtivos e dóceis a serviço do fortalecimento estatal. Para os economistas do século XVIII, “não há valor absoluto da população, mas simplesmente um valor relativo”. Aliás, nesse momento temos a emergência de uma nova regulação distinta da policial. O novo critério utilizado na regulação das relações é o interesse particular de cada indivíduo. Já o Estado passa a ser concebido como a instituição que deve garantir (ou mesmo prover) o bem de cada um. Ou seja, o novo elemento regulador é o interesse pessoal e não mais (como no caso do Estado policial) a ideia de uma gestão que garantirá a felicidade de cada um, porém tendo como condição a felicidade de todos viabilizada pela unidade, força e vitalidade do Estado (FOUCAULT, 2008a, p. 464-466). Na nova governamentalidade, que Foucault denomina como liberal, o papel do Estado é o de garantir as condições necessárias ao funcionamento da economia e, assim, de deixar fluir a “naturalidade do mercado”156. Isso difere do modelo anterior, centrado no fortalecimento e intervenção (interna e externa) do Estado e, assim, na regulação policial sobre os diversos espaços do território e sobre a população.

É importante frisar que os processos biopolíticos de assujeitamento da vida humana aparecem nas duas formas de governamentalidade, porém não da mesma maneira. Como veremos, há descontinuidades e mudanças importantes na passagem de uma a outra, que possibilitam deslocamentos significativos nas ações do poder sobre as populações. No entanto, não se trata de uma ruptura absoluta, pois existem, por exemplo, traços do Estado policial no liberalismo. Cabe enfatizar que, de maneira distinta e visando diferentes positividades, as duas práticas de governo objetivam gerir a vida das populações.

Mas, no que tange aos dispositivos de segurança, quais as diferenças mais significativas introduzidas pela tecnologia de governo liberal? Como veremos, embora de forma distinta daquela preconizada pelo Estado de polícia, esses mecanismos de segurança se fazem presentes e são centrais na nova governamentalidade. Na racionalidade política liberal, os fenômenos considerados naturais, intrínsecos à economia e à população, devem ser garantidos pelos dispositivos de segurança. Assim, articulada aos ideais de liberdade econômica e

156 Sobre o processo de naturalização, dirá Foucault: “Mas eis que agora, com o pensamento

dos economistas, vai reaparecer a naturalidade, ou antes, uma outra naturalidade. É a natureza desses mecanismos que fazem que, quando os preços sobem, se se deixar que subam, eles vão se deter sozinhos. É essa naturalidade que faz que a população seja atraída pelos altos salários, até um certo momento em que os salários se estabilizam e, com isso, a população não aumenta mais” (FOUCAULT, 2008a, p. 469).

estabilidade da população, a polícia funciona como uma instituição eminentemente negativa. No modelo anterior, a polícia reúne funções positivas (governa a vida dos homens por meio da regulação, produção etc.) e negativas (repressão, coerção) regulamentando, de cima a baixo, o território do Estado e as pessoas. No paradigma liberal, as funções positivas ficam a cargo de outras instituições, uma vez que a polícia se incumbe exclusivamente da eliminação da desordem – função eminentemente negativa. Sobre esse ponto, Foucault assevera: “Com isso, a noção de polícia se altera inteiramente, se marginaliza e adquire o sentido puramente negativo que conhecemos.” (FOUCAULT, 2008a, p. 475-476). O antigo projeto de polícia se desarticula e, assim, se decompõe em quatro elementos que passam a funcionar no interior do modelo liberal. São eles, a prática econômica, a gestão da população, o direito às liberdades e a polícia:

Numa palavra, pode-se dizer que a nova governamentalidade que, no século XVII, tinha acreditado poder aplicar-se inteira num projeto exaustivo e unitário de polícia, vê-se agora numa situação tal que, de um lado, terá de se referir a um domínio de naturalidade que é a economia. Terá de administrar populações. Terá também de administrar um sistema jurídico de respeito às liberdades. Terá enfim de se dotar de um instrumento de intervenção direto, mas negativo, que vai ser a polícia (FOUCAULT, 2008a, p. 476).

Cabe, agora, investigarmos mais detidamente as alterações que ocorrem, na passagem da razão de Estado à arte liberal de governar, com os dispositivos modernos de segurança.

2.7 DA RAZÃO DE ESTADO AO LIBERALISMO: A EMERGÊNCIA