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As mascaras de Lelio : ficção e realidade nas "Balas de Estalo" de Machado de Assis

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Academic year: 2021

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Ana Flávia Cernic Ramos

A

S MÁSCARAS DE

L

ÉLIO

:

Ficção e realidade nas “Balas de Estalo” de Machado de Assis

Campinas

2010

(2)

FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA DO IFCH – UNICAMP Bibliotecária: Maria Silvia Holloway – CRB 2289

Título em inglês: The Lélio’s masks: fiction and reality in “Balas de estalo” of Machado de Assis

Palavras chaves em inglês (keywords):

Área de Concentração: História social Titulação: Doutor em História

Banca examinadora:

Data da defesa: 19-02-2010

Programa de Pós-Graduação: História

Assis, Machado de, 1839-1908 - Criticism Brazilian literature – History and

criticism Press

Sidney Chalhoub, Leonardo Affonso de Miranda Pereira, Jefferson Cano, Margarida de Souza Neves, Paulo

Franchetti.

Ramos, Ana Flávia Cernic

R147 As máscaras de Lélio: ficção e realidade nas “Balas de estalo” de

Machado de Assis / Ana Flávia Cernic Ramos . - - Campinas, SP: [s. n.], 2010.

Orientador: Sidney Chalhoub.

Tese (doutorado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.

1. Assis, Machado de, 1839-1908 - Crítica. 2. Literatura brasileira – História e crítica. 3. Imprensa. I. Chalhoub, Sidney. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e

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R

ESUMO

Este estudo analisa a participação de Machado de Assis, sob o pseudônimo Lélio, na série coletiva ―Balas de Estalo‖, publicada na Gazeta de Notícias entre os anos de 1883 e 1886. Inserida no contexto de mudanças urbanas, da imigração, do abolicionismo, Balas de Estalo ajudou na criação de um projeto político baseado no declínio das principais instituições do país, tais como a monarquia, a igreja e a escravidão. O tema dessa pesquisa é compreender de que maneira Machado de Assis participou dessa série, como ele criou sua personagem Lélio e, finalmente, como ele analisou a política imperial em fins do século XIX.

A

BSTRACT

This study examines Machado de Assis‘ participation, under the pseudonym Lélio, in the collaborative series Balas de Estalo, published in the periodical Gazeta de Notícias from 1883 to 1886. In the context of urban change, immigration, and abolitionism pertaining to the period, ―Balas de Estalo‖ helped to debate the decline of the monarchy, the Catholic Church and the institution of slavery. The dissertation seeks to understand Machado´s participation in the series, to explore the characteristics of Lelio, the fictional narrator, and, finally, to investigate the writer‘s view of imperial politics in the late 19th century.

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A

BREVIATURAS

APB-CD–ANAIS DO PARLAMENTO BRASILEIRO –CÂMARA DOS DEPUTADOS APB-S–ANAIS DO PARLAMENTO BRASILEIRO -SENADO

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A

GRADECIMENTOS

Concluir uma tese nem sempre é resultado apenas de disciplina, pesquisa e desenvolvimento intelectual. Parte significativa desse processo longo de confecção de um texto é feita de carinho, paciência e apoio de muitas pessoas que estiveram presente e puderam assistir de camarote às angústias da doutoranda. E, por isso, muitos são os agradecimentos que quero fazer.

Agradeço, em primeiro lugar, ao CNPq pela concessão de uma bolsa de doutorado, que possibilitou o desenvolvimento da pesquisa, a compra de material bibliográfico e as condições para a confecção do texto. Também agradeço aos funcionários do Arquivo Edgar

Leuenroth (AEL), fundamental para este trabalho, pela competência e seriedade com que administram a instituição.

Sou grata, e sempre serei, ao professor Sidney Chalhoub pelos dez anos de orientação cuidadosa, paciente e bem humorada. Inspiração intelectual e profissional, sua paixão pela obra de Machado de Assis fez deste trabalho melhor e mais interessante. Sua ajuda foi inestimável para a confecção desta tese, seus conselhos, sugestões e idéias deram concretude à minha pesquisa e ao meu argumento. Obrigada também pelo carinho que desde a iniciação científica tornam a minha experiência acadêmica mais divertida.

Vale ainda lembrar que esta tese não é fruto apenas de um trabalho individual, mas resultado também das discussões animadíssimas com o grupo de estudo sobre crônicas que há alguns anos se formou na Unicamp e que vem se aventurando na organização da obra cronística de Machado. Obrigada, então, a Jefferson Cano, Leonardo Pereira, Margarida de Souza Neves e Lúcia Granja. Nossas reuniões e trocas de idéias foram importantíssimas para que a minha

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leitura de ―Balas de Estalo‖ fosse cada vez mais interessante. Quero agradecer também a Paulo Franchetti e Jefferson Cano por participarem da minha banca de qualificação, pela leitura cuidadosa e pelas sugestões para o trabalho. Sou grata ainda à banca examinadora deste trabalho por ter aceitado participar da minha defesa poucos dias depois das folias de Momo.

Agradeço, enfim, à Karen, minha amiga de quem tanto tenho saudades, e que no início do doutorado me ofereceu apoio e morada durantes os meses em que estive fora de Campinas. Sou grata ainda pela amizade e apoio de Fernando, Hugo e Alessandra, que desde a graduação encheram a minha vida de humor, alegria e companheirismo. Meus amigos são também minha família. Agradeço a Alexandre, meu amigo que entende tudo de latim e que também colaborou com este trabalho com dicas e traduções do, para mim, desconhecido e interessante mundo da Antiguidade Clássica. Além da ajuda ―acadêmica‖, sua amizade também foi muito importante para tornar a longa jornada do doutorado mais feliz, cheia de sol e ―Happy Hours‖. Agradeço à Fabiana, ou ainda ―Flor‖, minha irmã desde a graduação. Sozinha em Campinas, nos momentos difíceis ela era minha família e minha referência. Nunca vou agradecer o suficiente, tão inestimável é a sua colaboração na minha vida e nos meus trabalhos. Leitora de meus textos, amiga paciente com as horas de mau humor. Tenho certeza que nossa jornada juntas ainda está só no começo.

Quero agradecer também à minha família, que sempre me perdoa pelas longas ausências e que não agüenta mais me ouvir dizer que estou terminando a tese. A ―tal da tese‖ que virou desculpa pra tudo, ―infinita‖ na visão deles, ―nebulosa‖ muitas vezes. Obrigada por vocês existirem, por me amarem e me apoiarem, sempre. Família enorme, saibam que cada nome está contido aqui e no meu coração. Agradeço em especial à minha mãe, Wildmea, pelo amor e apoio, aos meus avós, Joel e Nilza, que cuidaram de mim desde pequena, aos meus irmãos, Raphael, Nathália e Larissa, que tanto amo e admiro, e, por fim, às minhas queridas

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Rose e Júlia, que me acolheram em 2005 e fizeram deste um dos anos mais felizes da minha vida.

Enfim, sou grata a Ricardo, meu amigo de tantos anos, meu namorado, meu leitor privilegiado, que passou a se divertir com as ―Balas de Estalo‖ e com Machado de Assis durante o caminho, meu companheiro de trabalho nas tarde ensolaradas e quentes de Campinas. Seu amor, carinho e paciência fizeram não apenas o doutorado mais tranqüilo e feliz, mas a minha vida melhor. Obrigada pela ajuda e pelo estímulo nas muitas horas de angústia durante esse longo percurso, mas obrigada, principalmente, por me fazer olhar o mundo de uma forma diferente, mais positiva e muito mais alegre.

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SUMÁRIO

Resumo e Abstract ...V Abreviaturas ... VII

Introdução ... 17

CAPÍTULO 1:AS MÁSCARAS DE LÉLIO E O NARRADOR MACHADIANO NAS “BALAS DE ESTALO” 39 I – Machado e a Gazeta de Notícias ... 39

II – Os novos rumos da crônica: o estatuto ficcional ... 45

III – As ―Balas de Estalo‖ da Gazeta de Notícias ... 57

IV – Os narradores de ―Balas de Estalo‖: a questão dos pseudônimos ... 65

V – A criação de Lélio ... 71

CAPÍTULO 2:ABATALHA DE MACHADO DE ASSIS ... 101

I – As origens da batalha ... 111

II – O Primo Basílio de Eça de Queirós: a batalha contra o Realismo na literatura ... 117

III – As novas frentes de batalha: o conto e a crônica ... 133

IV – O ―método‖ de Lélio: verdade versus mentira ... 145

V – Ficção e retórica além da literatura: sentido político da Batalha de Machado de Assis . 195 CAPÍTULO 3:A DESILUSÃO DE LÉLIO: CRÔNICA E INDETERMINAÇÃO HISTÓRICA ... 223

I – Ser e não ser na política imperial ... 230

II – As eleições de 1884: a caminho da desilusão ... 259

III – A Lei do Ventre Livre e o ídolo babilônico ... 294

IV – A desilusão de Lélio e a Lei dos Sexagenários ... 312

Fontes ... 361

Bibliografia... 365

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I

NTRODUÇÃO

No dia 13 de março de 1884, a propósito da publicação de livro intitulado Cousas Políticas, Lélio, pseudônimo de Machado de Assis na série ―Balas de Estalo‖, escrevia ―carta‖ a Lulu Sênior, também narrador da mesma coluna, para perguntar sobre a real autoria da nova obra:

Meu caro Lulu Sênior. – Você que é de casa – podia tirar-me de uma dúvida. Acabo de ler nos jornais a notícia de que estão coligidos em livro os artigos hebdomadários da Gazeta de Notícias, denominados Cousas Políticas, atribuindo-se a autoria de tais artigos ao diretor da mesma Gazeta.

Eu até aqui conhecia este cavalheiro como homem de letras, amigo das artes e um pouco médico. Nunca lhe atribuí a menor preocupação política, nunca o vi nas assembléias partidárias, nem nos órgãos de uma ou outra das novas escolas políticas, como diria o redator da Pátria, que usa aquele vocábulo de preferência a qualquer outro – no que faz muito bem. Não vi o nome dele em nenhum documento político, não o vi entre os candidatos à câmara dos deputados, ou à vereança que fosse.

Isto posto, caí das nuvens quando li que as Cousas Políticas eram desse cavalheiro. Se quer que lhe fale com o coração nas mãos, não acredito. Não bastam a imparcialidade dos juízes, a moderação dos ataques, nem a sinceridade das observações; e, se você não fosse um pouco parente dele, eu diria que não bastam mesmo o talento e as graças do estilo para atribuírem-lhe tais crônicas. Acho nelas um certo gosto às matérias políticas, que, depois do efeito produzido por uma citação de Molière na câmara, suponho incompatíveis com as aptidões literárias.

Esta última razão traz-me ao bico da pena um tal exame de idéias, que eu não sei por onde principie, nem mesmo se chegaria a acabar o que principiasse. Restrinjo-me a dizer que o diretor da Gazeta, versado nas modernas doutrinas, não havia de querer desmenti-las em si mesmo. A especialização dos ofícios é um fato sociológico. Isto de ser político e homem de letras é uma coisa que só se vê naqueles países da velha civilização,

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onde perdura a tradição de Cícero, e a tradição grega de Alexandre, que dormia com Homero à cabeceira. O próprio Alexandre (se o Quinto Cúrsio é sincero) fazia discursos de bonita forma literária. Daí o uso de pôr no governo de Inglaterra um certo helenista Gladstone ou um romancista da ordem de Disraeli. As sociedades modernas regem-se por um sentimento mais científico. Sentimento científico não sei se entende o que é: mas eu contento-me com dar uma idéia, embora remota.

E daí, meu amigo, pode ser que me ache em erro, e que, realmente, as Cousas

Políticas sejam realmente do diretor da Gazeta. Mas então, força é dizer que anda tudo

trocado.1

Desde sua entrada para a série ―Balas de Estalo‖, em julho de 1883, Lélio, narrador criado por Machado de Assis, vivia a pregar alguns logros em seu leitor. No dia 13 de março de 1884, por exemplo, lançava uma questão de ―princípio‖ sobre o novo livro de Ferreira de Araújo perguntando se seria a literatura incompatível com a política. Ferreira de Araújo, médico, dono da Gazeta de Notícias, companheiro de Machado nessa série de crônicas, e que assinava suas balas como Lulu Sênior, reunira em livro artigos que ele, às segundas-feiras, publicava na primeira página de seu jornal para comentar questões que envolviam as principais instituições políticas e sociais daquele momento. Escravidão, Igreja, Monarquia e Imigração eram temas recorrentes de sua coluna. ―Versado nas modernas doutrinas‖, o dono da Gazeta desmentia, porém, o ―fato sociológico‖ da ―especialização dos ofícios‖ ao escrever crônicas políticas tão cheias de ―talento‖ e ―graças do estilo‖, perguntava Lélio. No passado, na Antiguidade remota da história, segundo este narrador, Cícero e Alexandre consagraram-se como exemplos da união entre a política e a literatura, mas nas sociedades modernas, regidas pelo ―sentimento científico‖ que separava, quantificava e rotulava tudo, seria possível tal conciliação? Insinuando essa ―teórica‖ incompatibilidade entre a política e a literatura, Lélio, entretanto, logo traía a si mesmo ao

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concluir que Gladstone e Disraeli, contemporâneos não de Alexandre ou Cícero, mas de Ferreira de Araújo, também conseguiam conciliar, com sucesso, as suas diferentes ―aptidões‖. Perplexo com tal constatação, Lélio ousa dizer que possivelmente o problema estivesse com Lulu Sênior, já que este não parecia entender, de fato, o significado de ―sentimento científico‖. Se, em pleno século da ciência, tudo parecia estar em seu lugar, classificado e organizado segundo normas objetivas e empíricas, como podia o mundo todo andar ―trocado‖, permitindo que ―homens de letras‖ fizessem política, ou mesmo escrevessem sobre ela? Acostumados aos rompantes ―filosóficos‖ de Lélio, os leitores sabiam, entretanto, que, para o narrador, política e literatura não estavam tão separadas assim. Afinal, Lélio, com suas ―balas de estalo‖ recheadas de histórias fantásticas e personagens inusitados, desde o início fizera da política um de seus principais ―ingredientes‖. Lélio, ou ainda Machado, atento às ações cotidianas do parlamento, às disputas partidárias, às eleições e às trocas de ministérios, produzira nada menos que 125 crônicas para a série, muitas das quais versando sobre esses temas. Em ―Balas de Estalo‖, o fazer literário de Lélio, ou ainda de Machado, estava totalmente ligado aos assuntos da política.

Em seu artigo ―O teatro político nas crônicas de Machado de Assis‖, Alfredo Bosi afirma que Machado tinha um ―gosto acentuado de contar histórias de políticos‖.2

Para o crítico literário, ao longo de sua carreira, Machado não se cansou de narrar as sessões legislativas em detalhes, com seus ―gestos entrecortados de aplausos e vaias‖ e espetáculos de retórica. Segundo Bosi, tal preferência de Machado não deixou de causar ―equívocos‖ àqueles que passaram a acreditar que o literato prestava ―tributo‖ à História e à Política.

2

Cf. BOSI, Alfredo. ―O teatro político nas crônicas de Machado de Assis‖ in Brás Cubas em três versões: estudos Machadianos. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, pp. 53-103.

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Segundo Bosi, Machado ―não acreditava nem esperava nada‖ da Política ou mesmo da História, sendo o seu verdadeiro ―objeto‖ os políticos e suas histórias, ambos enfaticamente escritos com letras minúsculas pelo crítico. Interessava-lhe, ―artista que era‖, o estilo dos ―atores políticos‖ e suas ―aparições efêmeras‖.3

Sua verdadeira curiosidade, segundo Bosi, estava nas ―impressões do espectador‖ ante o imenso ―teatro político‖, uma vez que, tal como o Calisto, personagem de uma das ―balas de estalo‖ de Lélio4

, todos amavam a retórica e ―a esgrima da palavra‖.5

―Olheiro e ouvinte‖ das sessões legislativas desde a década de 1860, quando escrevia para o jornal Diário do Rio de Janeiro, Machado, segundo Bosi, via a atividade parlamentar apenas como ―representação‖, como ―forma de pura encenação‖6, como ―teatro de costumes‖.7

A partir da interpretação do texto ―O Velho Senado‖, escrito por Machado de Assis em 1898, Bosi conclui que o ―pesquisador de nossa história política terá de cavar e escavar duramente para extrair dessas páginas de engenho e arte o objeto mesmo do seu estudo, ou seja, o drama vasto e concreto da história‖.8

Em compensação, completa o autor, ―o leitor de nossa melhor prosa memorialística se deleitará com figuras de políticos e suas histórias‖ e ―mal entreverá os projetos e as contradições daqueles homens públicos, liberais ou conservadores‖. Para o autor, o cronista ―sabe e afirma com todas as letras que não é historiador e tampouco faz obra de político‖.9

3 Cf. BOSI, ―O teatro político‖, op. cit., pp.53-55. 4

Lélio, ―Balas de Estalo‖, Gazeta de Notícias, 10/05/1885.

5

Nelson Carneiro, na apresentação do volume comemorativo intitulado O Velho Senado, organizado pelo Senado Federal no sesquicentenário de nascimento de Machado de Assis, também diz que o literato, em sua maturidade, sem os ―excessos da juventude‖, ―desejava ser, o próprio Calisto‖, ―que só adorava mais do que as crises ministeriais, a apresentação dos ministérios novos às câmaras‖ e que gostava do ―debate pelo debate‖ (ASSIS, Machado de. O Velho Senado. Brasília: Senado Federal, Centro Gráfico, 1989,528 p., p.10).

6 Cf. BOSI, ―O teatro político‖, op. cit., p.60.

7 Conclusão que Bosi tira da leitura da crônica de Lélio sobre o que era a política. Cf. Lélio, ―Balas de

Estalo‖, Gazeta de Notícias, 08/07/1885.

8

Cf. BOSI, ―O teatro político‖, op. cit., p.81.

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Compartilhando de algumas opiniões de Jean-Michel Massa10, Alfredo Bosi reforça ainda a

―desilusão‖ de Machado em relação à política e interpreta a obra cronística do autor como fruto de ―olhos desenganados‖, mais preocupados em compreender a ―natureza egoísta inerente a cada homem‖ do que em entender ou interferir nas lutas políticas e sociais de seu tempo.11

Em artigo recente, intitulado ―Machado de Assis na encruzilhada dos caminhos da crítica‖, escrito no bojo das comemorações do centenário da morte de Machado, Alfredo Bosi volta a discutir a maneira como têm sido estudadas atualmente as crônicas de Machado12, abordando, entre outras questões, o acentuado destaque que se tem dado ao

―caráter representativo‖ desses textos, ou seja, o seu ―nexo com a sociedade fluminense e, por extensão, brasileira, do Segundo império‖. Nesse texto, Bosi argumenta que a crônica, marcada pela ―brevidade‖ típica do gênero, possibilitaria ao escritor apenas a representação de ―rápidas pinceladas‖ do seu referencial, impregnadas do ―pitoresco‖ e do ―caricato‖, e que, ao contrário do romance, não haveria espaço nela para o desenvolvimento em

10

Para Jean-Michel Massa, Machado teria se desiludido com a política com uma punição dada pelos dirigentes do jornal Diário do Rio de Janeiro após algumas críticas feitas pelo literato aos liberais. Segundo Massa, com o seu ―idealismo‖ ―machucado‖, Machado teria mudado a direção de suas crônicas, tornando-a mais literárias. Seu malogro, explicado por uma ―inadaptação‖ aos jogos ―sutis‖ da política, levara-o a procurar na literatura, ―menos impura‖, ―senão outras satisfações, pelo menos outros caminhos‖. Para Massa, a desilusão pela política teve, entretanto, ―consequências benéficas‖ para a literatura brasileira, já que, segundo o crítico, talvez Machado tivesse se tornado deputado ou mesmo ministro, se caso tivesse ―dobrado as suas convicções ao sabor dos acontecimentos‖. (Cf. MASSA, Jean-Michel. A Juventude de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1971, pp.301-310). Para Jefferson Cano e Lúcia Granja, entretanto, essa suposição de Massa sobre uma suposta ―punição‖ do jornal Diário do Rio de Janeiro ―traz consigo uma certa dose de mito sacrificial sobre a formação de Machado‖, que tem servido para explicar ―tudo um pouco desse escritor, de seu suposto absenteísmo político à sua ascensão na vida e na carreira profissional‖. Para os autores, o exercício de retomar as crônicas de Machado naquele periódico talvez seja uma maneira de ―tingir com cores menos fortes a idéia de punição ao jovem jornalista‖. Segundo os autores, essa idéia de punição pode ser questionada ao verificar que Machado, mesmo após o episódio analisado por Massa, continuou a escrever sobre política com sua ―pena afiada‖ e ―mais cortante do que nunca‖ (ASSIS, Machado de. Comentários da Semana.organização: Lúcia Granja e Jefferson Cano. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2008, pp. 19-20).

11 Cf. BOSI, ―O teatro político‖, op. cit., pp.102 e 103.

12 Cf. BOSI, Alfredo. ―Machado de Assis na encruzilhada dos caminhos da crítica‖ in Machado de Assis em linha: revista eletrônica de estudos machadianos. Rio de Janeiro, n.4, dez.2009. Disponível em

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―profundidade‖ e ―densidade‖ dos personagens e assuntos. Assim, para Bosi, ―o caráter remissivo congenial às crônicas não deve ser extrapolado para compreender a complexidade e a densidade da obra narrativa de Machado‖.13

―Vamos dar à crônica tudo o que é da crônica, e ao romance o que é do romance‖, conclui o autor.14

As crônicas, cuja semelhança com o romance estaria apenas no compartilhamento de uma ―particularidade histórica pontual‖, têm sido, na opinião de Bosi, utilizadas pela historiografia apenas para ―corroborar muito do que a história política do Segundo Império também conseguiria obter por meio de outros tipos de documentos‖, tais como atas parlamentares, editoriais de jornais e outras fontes. Para o autor, porém, Machado não pode ser visto apenas como ―cronista do Segundo Império‖, na medida em que sua ficção supera os dados referenciais e estritamente locais. Segundo Bosi, ―quando Machado é menos cronista pontual, mais ele se aproxima do perfil do contista e do romancista‖15

:

Quando a crônica não é simplesmente caricata e pontual, mas alusiva, ou elusiva, e penetrada de uma perspectiva e de um pathos peculiar, como é o caso de ―O Velho Senado‖, poderá servir ao intérprete machadiano como um momento expressivo que ressoa nas conotações de uma fala ou corpo estilístico de uma intervenção encontrada no romance.16

Seguindo o rumo das indagações de Lélio sobre o livro de Ferreira de Araújo, percebemos que, para Bosi, o envolvimento direto da crônica de Machado de Assis com a atividade política do império e com os acontecimentos históricos e ―pontuais‖ do cotidiano, de certa forma, limitam o estatuto ficcional e narrativo do gênero. Para o autor, apenas

13 Cf. Bosi, ―Machado de Assis na encruzilhada dos caminhos da crítica‖, op. cit., pp. 3 e 4. 14 Cf. Bosi, ―Machado de Assis na encruzilhada dos caminhos da crítica‖, op. cit., p.4. 15

Cf. Bosi, ―Machado de Assis na encruzilhada dos caminhos da crítica‖, op. cit., p.5.

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quando a crônica se desliga de suas referências imediatas, dos acontecimentos políticos que a originavam, é que ela se aproxima daquilo que o literato fazia em seus contos e romances. Além disso, breves e escritas sob o ritmo do jornal, as crônicas, na opinião de Bosi, continham apenas o que havia de ―caricato‖, de ―cômico‖, de ―estereótipo‖ das situações retratadas, já que nelas não haveria espaço para o desenvolvimento de análises profundas dos temas abordados, como era feito nos romances e contos. No que diz respeito à elaboração ficcional e literária do gênero cronístico, cabia à ―crônica jocosa ou satírica dos fait divers de nossa política‖ apenas fazer o retrato do casual e efêmero, ou ainda ser ―utilizada para a caracterização de ―personagens planas‖ do romance.

Apesar da importante contribuição de Bosi na análise do texto ―O Velho Senado‖, acredito que o conjunto da obra cronística de Machado adquire novas interpretações quando estes pequenos textos, impressos sob a urgência do jornal, são analisados em conjunto, não apenas no âmbito de uma única série, mas também de toda a produção cronística do autor. A carreira de Machado como cronista é bastante longa. Desde a década de 1860, quando escrevia para o Diário do Rio de Janeiro, até a publicação da série ―A Semana‖ para a Gazeta de Notícias, no final do século XIX, Machado foi mudando sua relação com a crônica e criando novas estratégias para a confecção desses textos. Em finais da década de 1870, observamos, por exemplo, que, através de séries como ―História de Quinze Dias‖, novas questões foram sendo incorporadas na elaboração das crônicas de Machado. A subjetividade do narrador, o estatuto ficcional, a relação com o jornal foram sendo reinventadas a cada nova série do literato. Portanto, o significado desses textos no conjunto da obra do autor parece só poder ser apreendido se forem consideradas as particularidades de cada uma das séries que ele produziu, com seus narradores, temas e projetos literários específicos.

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Alfredo Bosi, para construir sua argumentação sobre o ―teatro político‖ nas crônicas de Machado de Assis, parte de dois pontos importantes: a análise do texto ―O Velho Senado‖ e a utilização de um conjunto de crônicas pinceladas de duas séries específicas – ―Balas de Estalo‖ e ―A Semana‖. A primeira é tratada pelo crítico como crônicas essencialmente ligadas à política cotidiana do império, a política com ―p‖ minúsculo, recheada de personagens ―caricatos‖ como Calisto, enquanto a segunda, é vista como o momento da carreira do literato em que as suas crônicas ganham um tom mais ―universalizante‖, transcendendo, de certa forma, ao que o crítico chamou de ―dados estritamente locais‖ ou ―historicidade documental‖. No caso de ―Balas de Estalo‖, Bosi, ressaltando a forma como essas crônicas estiveram comprometidas com os fatos ―pontuais‖ da política imperial, argumenta, porém, que o que interessava realmente Machado nesses textos era muito mais o aspecto de ―teatro‖, de espetáculo e ―representação‖ do que a preocupação social ou histórica. Segundo Bosi, interessava a Machado o estilo dos personagens e não o sentido histórico daquilo que presenciava.

Porém, ao estudar a participação de Machado de Assis em ―Balas de Estalo‖, percebemos que a análise do conjunto dessas crônicas pode nos levar a interpretações um tanto diferentes. Em primeiro lugar, porque, se pinceladas ao caso, as ―balas‖ de Lélio perdem duas características fundamentais: a coletividade do projeto inaugural da série e a proposta de criação de diferentes personagens-narradores pelo grupo. Machado não escreve sozinho para as ―Balas de Estalo‖, mas interage com as propostas da série que já existiam mesmo antes de sua entrada. Observada a coletividade da publicação, percebemos que até mesmo a criação de um pseudônimo pode ter surgido, entre outras razões, como uma ―exigência‖ do grupo, uma vez que nenhum dos outros cronistas assinava com o próprio nome. Alguns dos participantes da série mantinham, muitas vezes, mais de uma assinatura

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na coluna, justamente para criar a noção de diálogo dentro da publicação. Criar uma voz ficcional pode, então, ter sido, desde o início, uma solicitação dos outros baleiros, para que o jogo, o debate entre os personagens-narradores fosse mantido. Não há como ler as ―balas de estalo‖ de Machado de Assis sem pensar na interação do autor com o restante do grupo e a forma como este o ajudou a ―moldar‖ algumas das características de Lélio. Logo, podemos sugerir que, mesmo sendo crônicas escritas ―ao correr da pena‖, as ―balas de estalo‖ de Machado de Assis eram produzidas a partir de um projeto narrativo que envolvia a criação de uma personagem, Lélio, com características e tiques que o diferenciavam dos outros colaboradores.

Para Bosi, entretanto, breves e ligeiras, as crônicas não pareciam dar a Machado espaço suficiente para grandes investimentos literários. Além disso, segundo o crítico, as crônicas só se tornariam mais ―literárias‖ quanto mais se afastassem de suas referências ―pontuais‖, dos acontecimentos históricos e políticos que as originavam. ―Balas de Estalo‖, por outro lado, evidencia que as crônicas de Machado, no início dos anos de 1880, estão inseridas não apenas na proposta do grupo que compõe a coluna, mas principalmente em um projeto literário que Machado de Assis passou a acalentar desde o final da década de 1870. A partir dos debates travados sobre O Primo Basílio, de Eça de Queirós, e das longas e antigas polêmicas com os defensores do Naturalismo e do Realismo, o prestigiado autor de Memórias Póstumas expande alguns questionamentos sobre a literatura da ―modernidade‖ também para outros gêneros. Romance, conto e crônica passam a formar uma única ―frente de batalha‖ ante as questões colocadas pela ―Nova Geração‖, pela crise das instituições políticas e sociais e perante o advento de novas teorias científicas. Mesmo tratando de pequenos eventos do cotidiano, da política com ―p‖ minúsculo, Lélio dava

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sequência a vários dos questionamentos levantados por Brás Cubas, por Simão Bacamarte, pelo Cônego Vargas e muitos outros personagens de Machado.

Respeitando as diferenças entre os gêneros, é preciso incluir a produção cronística de Machado nas duas últimas décadas do século XIX nesse projeto literário. Em um momento em que as novas escolas literárias diziam-se cada vez mais ligadas a um discurso científico, objetivo, moderno, comprometido com a verdade e com a transformação da sociedade, criar um narrador, cuja proposta é testar essas verdades, reconhecer o caráter retórico que esses discursos acabaram adquirindo, não deixa de ser uma continuidade do que Machado já fizera, por exemplo, em Papéis Avulsos.

Segundo Alfredo Bosi, diferente do romance, não haveria também na crônica espaço para o desenvolvimento de análises profundas, mas apenas o retrato do casual, efêmero e ―pitoresco‖. Ressaltando mais uma vez que a intenção não é comparar ou tornar idênticos a crônica e o romance, é preciso considerar, porém, que o gênero cronístico tem especificidades que não podem ser deixadas de lado. ―Balas de Estalo‖, por exemplo, foi publicada entre os anos de 1883 e 1886 quase diariamente em um jornal de grande circulação na cidade do Rio de Janeiro e seus leitores podiam, assim, ser de tipos diversos: os que liam a colunas todos os dias, os que compravam o jornal apenas no domingo ou ainda os que só acompanhavam os narradores de sua preferência.

Logo, uma série cronística como esta pode ser lida de diversas maneiras e cada crônica pode ou não ser tomada pelo público como um texto isolado ou como uma peça de um grande mosaico, que vai sendo construído ao longo dos anos. Conforme os meses de publicação avançavam, o leitor passava, provavelmente, a reconhecer os trejeitos, temas e opiniões de cada um dos narradores da série, enxergando para eles unidades que os caracterizavam. Embora a crônica estivesse comprometida, de fato, com a ―brevidade‖ do

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gênero, como aponta Bosi, ela se inseria, por outro lado, em um conjunto maior textos, que lidos juntos podiam tornar o argumento desenvolvido mais ―nítido‖. Se o público podia ler apenas uma ou outra crônica de Lélio, Machado de Assis, por sua vez, confeccionou 125 textos utilizando a mesma assinatura, ou seja, dispôs de mais de uma centena de ―balas‖ não apenas para criar um personagem-narrador, e para dar um sentido, uma unidade temática e formal para a sua participação na série, mas principalmente para desenvolver alguns argumentos sobre a política, a ciência e a literatura. Lélio dialoga com seus companheiros de jornal sobre o que está acontecendo naquele momento crucial para algumas das instituições mais importantes do Segundo Reinado.

Enfim, ao analisar o conjunto de crônicas que foram publicadas sob o título de ―Balas de Estalo‖ por Machado de Assis, percebemos que a concepção de ―teatro político‖ utilizada pelo narrador não é apenas fruto da observação ―desiludida‖ do narrador frente aos acontecimentos históricos ou da especulação ―universalizante‖ sobre a essência do homem, como argumenta Bosi, mas conseqüência direta da proposta inicial do narrador para a série. Ou seja, tal como a ciência, a política também se constituía de retórica, de discursos com fronteiras tênues entre a verdade e a mentira. ―Teatro político‖ tomado não apenas como um espetáculo ao qual Machado assiste, mas como ficção construída, pactuada, que abarcava projetos e intenções políticas que serviriam para aplacar a ―sede de nomeada‖ de muitos, para manter as desigualdades e para a instauração de poderes entre os homens. ―Teatro político‖ que Lélio desejava denunciar e discutir com seu leitor, mais uma vez sendo coerente com o restante do grupo que compunha as ―Balas de Estalo‖, que desde o início de sua publicação propusera-se a evidenciar a falência das principais instituições do

(22)

Brasil em finais do século XIX.17 Lélio, como mostram as suas ―balas de estalo‖, acreditava

sim que era possível unir Literatura e Política, e tinha consciência de que publicar crônicas no jornal era um importante meio de intervenção na realidade histórica que o cercava.

É preciso considerar, entretanto, que ―Balas de Estalo‖ não é, de forma alguma, um caso isolado no gênero cronístico, no que diz respeito à elaboração ficcional. Recorrer às definições mais gerais sobre o gênero evidencia a partir de qual ponto de vista e de quais debates foram analisadas as crônicas de Lélio. Para Sidney Chalhoub, Margarida de Souza Neve e Leonardo Affonso de Miranda Pereira, por exemplo, as crônicas, mesmo estando ligadas de ―forma direta‖ a seu tempo, mantinham, como qualquer outro gênero, seu estatuto literário. ―Surgidas ao acaso‖ e utilizando os ―pequenos acontecimentos‖ como matéria-prima, as crônicas devem, então, ser analisadas não como reflexos ou flashes de um tempo histórico, mas como produto de elaboração narrativa, interpretação e intervenção social. A crônica, ―sem pretensões à perenidade, reconhecida na produção de escritores e poetas cuja literatura é muitas vezes vista como atemporal e transcendente‖, abordariam ―cousas doces, leves, sem sangue nem lágrimas‖.18

Segundo os autores, tais características, enunciadas e repetidas por literatos como Machado de Assis, acabaram transformando a crônica em ―filha bastarda da arte literária‖. Até mesmo críticos importantes como Antonio Candido, que reconhecem a importância da crônica, acabaram por denominá-la ―gênero menor‖, já que seu intuito, mais do que informar e comentar, seria sobretudo o de divertir.19

Segundo Chalhoub, Neves e Pereira, ao sustentar tais avaliações, os estudos sobre crônica

17 RAMOS, Ana Flávia Cernic. Política e Humor nos últimos anos da monarquia: a série “Balas de Estalo” (1883-1884). Dissertação de Mestrado em História: Unicamp, 2005.

18 CHALHOUB, S.; NEVES, Margarida S.; PEREIRA, Leonardo A. de M.; ―Apresentação‖ in História em cousas miúdas: capítulos de história social da crônica no Brasil/ Organizadores: Sidney Chalhoub, Margarida de Souza Neves e Leonardo Affonso de Miranda Pereira. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2005, p.9.

19

CANDIDO, Antonio. ―A vida ao rés-do-chão‖, in A crônica. O gênero, sua fixação e suas transformações no Brasil. Campinas, SP: Editora da Unicamp; Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1992, p.13.

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acabaram por associar ao gênero uma ―falta de elaboração narrativa‖, tanto por serem consideradas um ―misto híbrido de jornalismo e literatura‖20

, quanto por terem sido escritas ao ―correr da pena‖.21

Para os autores, entretanto, ―da tensão entre elaboração narrativa, sugerida por Alencar, e o dever de dialogar de forma mais direta com os temas e questões de seu tempo, apontado por Machado, se definia o perfil de um gênero que teria importância central na produção literária brasileira a partir de meados do século XIX‖.

Uma vez reconhecida a crônica como gênero literário, Chalhoub, Neves e Pereira concluem que cabia ao cronista ―interagir com as coisas de seu mundo, meter-se onde não era chamado para transformar o que via e vivia‖. Segundo os autores, ―flagrado em meio ao debate‖, o cronista ―não analisava a realidade de forma exterior, mas dialogava com outros sujeitos, participava das discussões, metia-se em todas as questões de seu tempo‖. Ou seja, para estes autores, uma das características mais fundamentais da crônica seria a ―intervenção‖ desses literatos na realidade em que viviam. ―Longe de refletir ou espelhar alguma realidade‖ a crônica ―tentava analisá-la e transformá-la – valendo-se, para isso, de um tom leve, que atraísse o leitor, e da penetração social das folhas nas quais eram publicadas‖.22

Se, para Bosi, esse envolvimento excessivo com os acontecimentos efêmeros, ―pontuais‖, afastavam a crônica dos requintes literários típicos do conto e do romance, para Chalhoub, Neves e Pereira, esse comprometimento com o real, essa intervenção só pode ser compreendida a partir justamente da análise da elaboração narrativa inerente a esse gênero literário:

20 GLEDSON, John. ―Introdução‖, in ASSIS, Machado de. Bons Dias!. organização John Gledson. São Paulo:

Editora Hucitec; Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1990, p.12.

21 Expressão de José de Alencar, título da série de crônicas que este autor publicou no Correio Mercantil e no Diário do Rio de Janeiro entre 1854 e 1855. Cf. CHALHOUB, S.; NEVES, Margarida S.; PEREIRA, Leonardo A. de M.; ―Apresentação‖, op. cit., p.10.

(24)

As formas pelas quais os cronistas brasileiros tentaram realizar tal intento [intervenção na realidade] foram variadas. Em comum, no entanto, estava o cuidado demonstrado na delimitação de um perfil próprio para suas séries, que torna um tanto mais complexo o tipo de intervenção caracterizado nas crônicas. Ao participar dos debates do tempo, não deixavam de lado as artes de seu ofício, tratando de fazê-lo com os cuidados próprios da escrita literária. Definir um campo temático, elaborar um ponto de vista narrativo e delimitar formas próprias de escrita eram meios de o escritor esboçar um perfil para suas crônicas. Apresentado em geral no primeiro artigo de uma série – habitualmente destinada a formular seu programa, ainda que a grande parte dos autores o fizesse de forma velada e sutil, dizendo negar-se a fazê-lo -, tal perfil servia como chave interpretativa capaz de guiar o leitor através daquele conjunto de textos.23

Para Chalhoub, Neves e Pereira, um dos grandes exemplos da elaboração narrativa das crônicas está na ―cuidadosa escolha dos pseudônimos‖, artifício comum entre os cronistas brasileiros da segunda metade do século XIX. Segundo os autores, Coelho Neto, cronista da virada do século, em entrevista dada em 1912 ao jornal Gazeta de Notícias, afirmava que o pseudônimo ―não [era] bem um disfarce, uma máscara‖, mas constituía-se em uma ―cuidadosa opção narrativa adotada pelo autor em cada uma de suas séries‖. O pseudônimo, dessa forma, adequar-se-ia ao ―assunto e à preocupação da época‖, marcando ―épocas diferentes, verdadeiros períodos da vida literária de um autor‖. ―Mais do que um escudo‖, concluem os autores, os pseudônimos eram fruto de uma elaboração literária, construídos ―cuidadosamente ao longo de cada série‖.24

Concluem, então, os autores:

Da aparente contradição entre a leveza anunciada pelos cronistas e a cuidadosa elaboração de suas séries; da tensão entre a tarefa de comentar a realidade e o intuito de transformá-la; e da variedade de formas e temas por ela assumida, define-se enfim um perfil para a crônica. Ressalta-se, porém, que, se tais características podem ser frequentemente notadas

23

Cf. CHALHOUB; NEVES; PEREIRA; ―Apresentação‖ in História em cousas miúdas, op. cit., p.13.

(25)

na produção cronística brasileira da segunda metade do século XIX e da primeira do XX, nem por isso consistem em uma definição universal do gênero. [...] Ao invés de conceituar a crônica de modo unívoco, cabe enfrentar a sua especificidade, em um procedimento que radicalize a busca de sua historicidade, ao mesmo tempo em que se mostre atento aos complexos mecanismos narrativos que a constituem.25

Leonardo Pereira, em O carnaval das letras, outra referência importante para este trabalho, utilizando-se de crônicas literárias para compreender as transformações do carnaval ao longo do século XIX, buscou analisar a forma como os literatos, através de suas obras, interpretavam e interagiam, então, com os significados da festa26, evidenciando, mais

uma vez, a maneira como a crônica não era apenas reflexo dos acontecimentos, mas pressupunha elaboração literária e intervenção por parte dos artistas em suas realidades históricas. Segundo o autor, ―ficção e realidade‖ se misturavam nos contos, romances e crônicas que traziam histórias sobre a folia, no intuito de transformar os sentidos e as práticas do carnaval.27 Entre os textos escolhidos por Leonardo Pereira está uma crônica de

Machado de Assis escrita para a série ―Bons Dias!‖, publicada na Gazeta de Notícias entre abril de 1888 e agosto de 1889. Segundo Pereira, o autor putativo ou narrador ficcional dessas crônicas era Policarpo, um relojoeiro que descreu do seu ofício ao constatar que os

25 Cf. CHALHOUB; NEVES; PEREIRA; ―Apresentação‖ in História em cousas miúdas, op. cit., p.17. 26 Segundo Leonardo Pereira, a escolha dos literatos como eixo da análise não era ―casual‖. ―Ao passarem a

escrever suas crônicas, contos e romances nos grandes jornais cariocas d período, que atingiam uma penetração nunca experimentada pela imprensa brasileira, tais escritores alcançaram um grau de popularidade e reconhecimento que os tornava sujeitos privilegiados de tal processo de comunicação‖ (PEREIRA, Leonardo A. de M. O carnaval das letras: literatura e folia no Rio de Janeiro do século XIX. 2ª. ed.rev. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2004.

27

Segundo Leonardo Pereira, ―na busca de uma identidade nacional profunda, esses autores se voltaram para dentro da sociedade brasileira‖ não apenas para ―estudar e entender a sua lógica‖, mas para ―transformá-la‖. ―De diferentes maneiras e sob diferentes pontos de vista, os cronistas e ficcionistas dessa geração [principalmente formada a partir de meados da década de 1880] exprimiam de forma acabada uma tendência que se vinha desenhando havia tempos na literatura brasileira: a visão de que eram responsáveis, de alguma forma, pelos rumos da nação‖. Ser literato nesse contexto, argumenta Leonardo Pereira, ―não era simplesmente escrever versos; mais do que isso, a literatura era vista como o campo privilegiado de construção do passado, do presente e, principalmente, do futuro – e não por acaso eram comuns os ataques àqueles que se aventurassem a tentar adentrar o mundo das belas-letras sem trazer consigo a consciência do papel da literatura‖ (PEREIRA, L. O Carnaval das Letras, op. cit., pp. 30-33).

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relógios deste mundo nunca marcavam a mesma hora, que tinha como uma de suas principais características a de se posicionar de forma ambígua sobre os assuntos tratados em suas crônicas. No caso do carnaval, Policarpo, por um lado, repetia os argumentos de outros literatos do período, reforçando visões que negavam as tradições populares do carnaval e defendiam uma transformação da festa a partir de padrões europeus e ditos ―civilizados‖. Por outro, segundo Pereira, Policarpo abarcava também uma visão que enfatizava o caráter excludente das mudanças que eram propostas para os dias de folia.28

Segundo Leonardo Pereira, tais ambigüidades, surgidas também em outros temas, tais como escravidão e medicina, podem ser analisadas a partir da constatação de que o narrador da série não era ―exatamente um autor, mas sim um personagem‖ e que a crônica ―longe de ser um texto isolado de algum homem de letras fascinado pelos dias do Momo, fazia parte de uma série de outros textos escritos, aparentemente, pelo mesmo narrador – em artigos que, invariavelmente, se iniciavam com o ―Bons Dias!‖, com o qual ele se apresentava ao público.29 Evidenciando mais uma vez a importância de se considerar a

elaboração literária como parte inerente do gênero cronístico, Leonardo Pereira argumenta que a análise das crônicas de ―Bons Dias!‖deve passar pelo entendimento de Policarpo, ―personagem minuciosamente construído durante meses‖ por Machado de Assis, e que serviu ―de instrumento para que o célebre romancista [pudesse] com a dissimulação que lhe [era] peculiar, [comentasse] os acontecimentos de seu tempo‖.30

Com a atribuição de um nome, de uma profissão e de pontos de vista de todo diversos daqueles que caracterizavam

28 Para Leonardo Pereira, ―mais do que refletir as ambigüidades e contradições da formação nacional, a obra

de Machado apontava, assim, para um deliberado esforço crítico em relação à sociedade de seu tempo – seja em relação à visão da decadência de uma organização social cujas contradições ele conseguia enxergar com clareza ou aos iluminados projetos de futuro construídos por muitos de seus contemporâneos‖ (PEREIRA, L. O Carnaval das Letras, op. cit., p. 192).

29

Cf. PEREIRA, L. O Carnaval das Letras, op. cit., p.170.

(27)

Machado de Assis, formou-se Policarpo, chave interpretativa fundamental, segundo Pereira, na interpretação dessas crônicas.

Entretanto, para John Gledson, para quem a vida política do império é peça crucial na compreensão da obra de Machado de Assis31, as possíveis ambigüidades presentes nas

crônicas deste literato devem-se à presença da ironia em seus textos. Segundo o autor, ―abordagem inicial dos eventos históricos, e de sua função dentro do romance, pode subverter as leituras convencionais do texto e revelar uma obra de arte mais coerente, legível e consistente‖.32

No caso das crônicas de Machado, Gledson, ao estudar a série ―Bons Dias!‖, afirma que, influenciadas pelos acontecimentos políticos e pelo ―fluxo da história‖, elas são ―um meio privilegiado de entender a interação multifacetada entre o escritor e o mundo público em que se movia‖.33

Na introdução à primeira edição da série ―Bons Dias!‖, Gledson afirma ainda que as crônicas proporcionam uma ―visão única‖ das opiniões políticas do literato.34 Entretanto, apesar dessa importância da crônica apontada

pelo crítico, que refere-se a elas como ―gênero menor‖35, Gledson, na introdução da terceira

edição de ―Bom Dias!‖, argumenta que algumas questões separavam a produção cronística de Machado de Assis do restante de sua obra ficcional. Parecidas com os romances e contos principalmente no que dizia respeito ao uso de alegorias e símbolos, já que Machado tinha

31 Ao analisar o romance Dom Casmurro, por exemplo, Gledson revela a constante preocupação do literato

em estabelecer paralelos entre os enredos ficcionais das obras Machado e os da vida política imperial através de referências alegóricas e simbólicas. Segundo John Gledson, os romances de Machado desvendam ―verdades sobre a composição política, ideológica e religiosa do Segundo Reinado‖. ―Conquanto de modo disfarçado, os pontos de vista de Machado eram rigorosamente críticos em seu âmago‖. Segundo Gledson, o ―método de veicular a verdade política pode ser facilmente descrito como alegórico, pois requer que o leitor enxergue o paralelismo entre o âmbito privado do romance (cuja ação é limitada a duas ou três famílias) e a história púbica do Segundo Reinado‖ (GLEDSON, J. Machado de Assis: impostura e realismo uma reinterpretação de Dom Casmurro. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p.13).

32 Cf. GLEDSON, J. Machado de Assis: ficção e história. Trad. Sônia Coutinho. 2.ed. São Paulo: Paz e Terra,

2003, p.25

33 Cf. GLEDSON, J. Por um novo Machado de Assis: ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p.135. 34 Cf. GLEDSON, J. ―Introdução‖, in ASSIS, Machado de. Bons dias!Crônicas (1888-1889). São Paulo:

Editora Hucitec/Editora da Unicamp, 1990, pp. 12 e 13.

(28)

o hábito de esconder e cifrar os significados do texto36, à crônica, segundo John Gledson,

não poderia ser atribuída, por exemplo, a criação de um narrador ficcional. Para o autor, ―falar de um ‗narrador‘, como o que pode existir num romance ou num conto‖, seria um ―exagero‖, uma ―distorção da verdade‖ e uma ―complicação inútil‖. Segundo Gledson, referindo-se à análise de ―Bons Dias!‖, algumas crônicas até poderiam ter ―narradores individuais‖, mas que durariam apenas ―uma crônica inteira‖. ―Aventurar-se mais seria esperar mais do leitor do jornal do que o próprio gênero pode admitir, e impor-se limites inaceitáveis‖.37

Gledson vê a impossibilidade da existência de um narrador ficcional porque, como já afirmara em Ficção e História, crônica não era romance, uma vez que este gênero estava sujeito à indeterminação histórica e aos acontecimentos diários (e aos jornais), o que prejudicaria a elaboração prévia dos personagens e dos enredos que comporiam a narrativa.38

Embora afirme categoricamente a impossibilidade da criação de um narrador para as crônicas de Machado de Assis, Gledson considera, para o caso de ―Bons Dias!‖, a existência de uma ―espécie de enredo‖, com ―certos parâmetros‖ pré-fixados, que governam o desenvolvimento das crônicas39 dessa série. Um ―tema básico‖, que se

constituíra em uma espécie de ―método‖ ou ―programa‖ do autor na confecção desses textos40 - estratégia que, segundo Gledson, está presente apenas em ―Bons Dias!‖.

Entretanto, tal ―método‖ ou ―programa‖ inicial não pressuporia a criação de um personagem com características previamente definidas. Para Gledson, ler as crônicas de ―Bons Dias!‖ como se estas tivessem um único narrador ficcional seria um equívoco

36 Cf. GLEDSON, J. ―Introdução‖ in ASSIS, Machado de. Bons Dias! Introdução e notas: John Gledson.

3ª.ed. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2008.

37 Cf. GLEDSON, J. Por um novo Machado de Assis, op. cit., p.150.

38 Cf. GLEDSON, J. ―Introdução‖ in ASSIS, Machado de. Bons Dias!, 2008, op. cit., p.27. 39

Cf. GLEDSON, J. ―Introdução‖, 2008, op. cit., p.27.

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decorrente de ―três erros fundamentais‖: ―uma tendência a escolher só certos trechos de uma crônica, e não ver que cada crônica tem que ser analisada e explicada por inteira‖; ―ler as crônicas como se fossem uma espécie de romance‖ e, finalmente, ―não entender a ironia‖.41

Segundo John Gledson, Policarpo não poderia ser o narrador da série, uma vez que esse nome só teria sido mencionado uma vez ao longo da publicação, ou seja, apenas na décima crônica.42 Além disso, o crítico argumenta que ver Policarpo como narrador

ficcional, cuja profissão era a de relojoeiro, não se sustenta, pois a menção a este ofício só foi feita em cinco das 49 crônicas da série.43

Sidney Chalhoub, em ―John Gledson, leitor de Machado de Assis‖44

, oferece interpretação diversa sobre a possibilidade da existência de um narrador ficcional para a série ―Bons Dias!‖, quanto oferece modo diverso de análise para a compreensão do gênero cronístico. Para Chalhoub, embora John Gledson insista no ―cuidado que se deve tomar para não encontrar, em séries de crônicas machadianas, narradores ficcionais talhados à moda de Brás Cubas e Dom Casmurro, é necessário ―aprofundar o entendimento das condições específicas da produção desses textos, e não partir de um pressuposto inverso de que a regra neles é a pouca elaboração narrativa‖.45

Segundo Chalhoub:

De fato, ao atribuir a Policarpo os textos que escrevia, Machado de Assis incorporava ao projeto da série, e logo à perspectiva do narrador ficcional, a circunstância de viver no turbilhão dos acontecimentos, mergulhado na experiência da indeterminação da história. Por conseguinte, seria irreal esperar que tal narrador postulasse a suposta clarividência ou sapiência que Brás Cubas conferia a si mesmo, ou contasse as suas histórias no viés de

41 Cf. GLEDSON, J. Por um novo Machado de Assis, op. cit., pp.403 e 404. 42 Cf. GLEDSON, J. Por um novo Machado de Assis, op. cit., p.404. 43 Cf. GLEDSON, J. Por um novo Machado de Assis, op. cit., p.148.

44 CHALHOUB, Sidney. ―John Gledson, leitor de Machado de Assis‖, in ArtCultura, Uberlândia, v.8, n.13,

pp.109-105, jul.-dez. 2006.

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quem lhes atribuía um sentido retrospectivo e teleológico, como Dom Casmurro. Por isso Gledson encontra às vezes inconsistências que não o são, às quais concede importância desmesurada, pois muita vez surgem apenas do caráter assumidamente brincalhão de Policarpo — que tem o tique, por exemplo, de esconder ou diminuir a própria idade. 46

Estas, segundo Chalhoub, ―são cousas que reforçam a situação do narrador, contribuem para lhe dar a qualidade de personagem fictícia da história real‖.47 Para o autor,

as crônicas estão ―afundadas na terra e no estrume da história‖, já que seu entendimento depende não apenas da ―interpretação da série completa às quais pertencem‖, da leitura de cada crônica como peça inteira no contexto da série‖ e ―da leitura do cronista específico em diálogo com outros cronistas‖, mas também da ―visão do gênero cronístico em interlocução com outros gêneros narrativos, literários ou não, presentes nas páginas dos periódicos em pauta, e fora deles‖.48

Segundo Chalhoub,

[...] buscar, em suma, conceber essas produções literárias como forma de intervenção no devir da História. Dessa maneira, com H maiúsculo mesmo, se quiserem, porque ela não serve de moldura ou contexto a cousa alguma: é a própria a se forjar por meio da intervenção do cronista, que é tão-somente um vetor numa encruzilhada de visões conflitantes, todas prenhes dum futuro que não se sabe bem qual será, sobre o qual cabe, porém, especular e apostar politicamente. Decerto, para Machado de Assis, autor imaginário de crônica era diferente de autor imaginário de romance. Policarpo não era Brás Cubas, ainda que fossem ambos realidades da ficção.49

A partir desses pressupostos de análise da crônica propostos por Sidney Chalhoub e Leonardo Pereira, a presente tese tem como objetivo colaborar nesse debate sobre a

46 CHALHOUB, Sidney. ―John Gledson, leitor de Machado de Assis‖, op. cit., pp.114-115. 47 CHALHOUB, Sidney. ―John Gledson, leitor de Machado de Assis‖, op. cit., p.115. 48 CHALHOUB, Sidney. ―John Gledson, leitor de Machado de Assis‖, op. cit., p.115. 49

(31)

constituição de um narrador ficcional para o caso da série ―Balas de Estalo‖, que contou com a participação de Machado de Assis, e seu personagem Lélio, entre julho de 1883 e março de 1886. Primeira série de Machado para a Gazeta de Notícias, escrita não apenas pelo prestigiado literato, mas por um grupo de cronistas, ―Balas de Estalo‖ mostrou-se uma oportunidade bastante especial para a compreensão da maneira como narradores são construídos dentro de séries de crônicas e, principalmente, as diversas formas como era possível realizar essa tarefa.

No primeiro capítulo, intitulado ―As máscaras de Lélio e o narrador machadiano nas Balas de Estalo‖, é discutido o papel do uso de pseudônimos na série, a construção da coletividade e do debate dentro do grupo de ―artilheiros‖ e, finalmente, a interação de Machado de Assis com o ―programa‖ inicial da série e suas características fundamentais. Neste capítulo ainda é feita uma análise sobre a forma como Machado de Assis construiu seu narrador ficcional para as ―Balas de Estalo‖, Lélio, e as escolhas temáticas e analíticas que ele privilegiou para atribuir individualidade ao personagem criado.

No capítulo 2, intitulado ―A batalha de Machado de Assis‖, são apresentadas algumas das principais questões literárias que Machado de Assis desenvolvia sobre o Realismo e o Naturalismo desde finais da década de 1870, e a forma como essas polêmicas foram fundamentais no ―programa‖ de Lélio para a confecção das suas ―balas de estalo‖. Neste capítulo, discuto a importância de considerar as crônicas como parte de um projeto literário de Machado, do qual a crônica era parte tão importante quanto o conto e o romance. Através da leitura das crônicas de ―Balas‖, procuro demonstrar que, na década de 1880, Machado de Assis ainda se encontrava bastante envolvido em antigos debates sobre a representação do real na literatura.

(32)

Finalmente, no terceiro e último capítulo desta tese, intitulado ―A desilusão de Lélio: crônica e indeterminação histórica‖,é discutida a forma como alguns acontecimentos históricos são fundamentais para entender a mudança narrativa de Lélio ocorrida no ano de 1885, quando o personagem deixa de se ver como o ―enamorado‖ da Comédia Dell‘Arte, ou ainda como muitos personagens de Molière, para se tornar um pouco mais Pantaleão ou Macário. Sujeito à indeterminação dos acontecimentos históricos, Lélio se tornará mais sisudo diante da decepção causada não só pela dissolução da primeira Câmara de Deputados, eleita pela Lei Saraiva de 1881, mas também pelos rumos tomados na discussão sobre Lei dos Sexagenários em 1885. Fazendo um contraponto com o argumento de Sérgio Rouanet, em Riso e Melancolia, no qual o autor afirma que as crônicas, embora fossem textos cheios de ―verve e fantasia‖, não pertenciam ao gênero shandiano, devido ao seu caráter pouco ficcional50, o argumento principal do capítulo é demonstrar como Lélio

tentou manter uma unidade ficcional ao longo de toda a série, mesmo que sujeito a essas indeterminações do cotidiano.

50

Cf. ROUANET, Sergio Paulo. Riso e melancolia. A forma shandiana em Sterne, Diderot, Xavier de Maistre, Almeida Garrett e Machado de Assis. São Paulo, Companhia das Letras, 2007.

(33)

C

APÍTULO

1

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S MÁSCARAS DE

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ÉLIO E O NARRADOR MACHADIANO NAS

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ALAS DE

E

STALO

I –MACHADO E A GAZETA DE NOTÍCIAS

Em 1876, logo após a publicação de Helena, Machado de Assis recebeu seu primeiro convite para integrar o time de folhetinistas da Gazeta de Notícias.1 No entanto,

envolvido com suas publicações no Jornal das Famílias e na Ilustração Brasileira, recusou a proposta, dizendo serem ―tantos e tais os trabalhos que pesavam sobre ele‖, que não se atrevia a tomar o folhetim da Gazeta2. Somente na década de 1880, Machado de Assis

finalmente aceitou fazer parte do quadro de colaboradores efetivos daquele jornal, dando início a uma parceria que se estenderia ininterruptamente até fevereiro de 18973. Sua

enorme produção neste periódico indica o quanto essa relação parece ter funcionado. Além de artigos, homenagens e poesias, Machado de Assis publicou na Gazeta 56 contos e 475 crônicas entre os anos de 1883 e 1897.4 Foram 14 anos fazendo parte do seleto grupo de

literatos que Ferreira de Araújo fez questão de manter trabalhando em seu jornal. Machado

1Através de Francisco Ramos Paz, amigo de Machado de Assis desde o tempo em que estiveram envolvidos

na tradução de O Brasil Pitoresco no ano de 1859, Elísio Mendes, sócio fundador da Gazeta de Notícias, convidou Machado de Assis a colaborar em seu jornal (MAGALHÃES JÚNIOR, Raimundo. Vida e Obra de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1981, Vol.2, p.198).

2

Magalhães Júnior afirma que a Gazeta de Notícias teve que esperar o desaparecimento do Jornal das Famílias e da Ilustração Brasileira para contar com a presença daquele que começava a ganhar destaque no cenário literário brasileiro (MAGALHÃES JÚNIOR, Vida e Obra de Machado de Assis, op.cit., p.198).

3 Machado de Assis, já em 1877, havia subscrito algumas poesias na Gazeta de Notícias, homenageando José

de Alencar e Camões, mas só vai figurar na relação de colaboradores efetivos do jornal entre os anos de 1881 e 1897. Nos anos seguintes, colaborou esporadicamente em 1899, 1900, 1902 e 1904 (SOUSA, José Galante de. Bibliografia de Machado de Assis, Rio de Janeiro: INL, 1955, p. 225).

4 Segundo John Gledson, Machado de Assis publicou 475 crônicas na Gazeta, ou seja, mais de três quartos da

sua produção no gênero, e mais da metade destas crônicas pertence à sua última série, ―A Semana‖, publicada entre os anos de 1892 e 1897 (ASSIS, Machado de. Bons Dias!, Edição, introdução e notas de John Gledson. 3ª ed. – Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2008, p.15).

(34)

tinha grande admiração por Araújo, parceiro de trabalho, seu chefe durante tantos anos. O dono da Gazeta tornou-se uma referência para o literato. Em 1900, ano da morte do jornalista, Machado escreveu lamentando a perda não só do amigo, do ―jornalista emérito‖, mas da ―perpétua alegria‖. Escrevia que Ferreira de Araújo debatia os negócios públicos, expunha os problemas do dia-a-dia ―com a gravidade e a ponderação‖ que mereciam, mas que, com o ―riso‖, ―o bom humor expelia a cólera e a indignação deste mundo‖. ―Polemista que não deixou um inimigo‖, ―franco‖, jornalista, ―liberal sem partido‖, ―patriota sem confissão‖, Ferreira de Araújo foi descrito por Machado como aquele que mantinha em seus escritos um estilo ―vivo e conversado‖, o mesmo espírito com o qual fundara a Gazeta, que trouxe, na opinião do literato, ―vida nova ao jornalismo‖.5

Assim Machado de Assis via, em retrospectiva, o jornal para o qual escreveu as suas ―Balas de Estalo‖.

Entrar para a Gazeta de Notícias também foi para Machado o início de uma experiência jornalística distinta. Desde A Marmota Fluminense6, de Paula Brito, onde

iniciou sua carreira, Machado transitou por diferentes tipos de publicações, das literárias às acadêmicas. Escreveu para revistas humorísticas, como a Semana Ilustrada, publicações para senhoras da classe média, como A Estação7 e o Jornal das Famílias8, jornais

5―Ferreira de Araújo – 20 set.1900‖ in ASSIS, Machado de. Obra Completa, Organizada por Afrânio

Coutinho. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 2004, vol.III, pp. 1019-1021.

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Jornal literário fundado por Paula Brito, A Marmota Fluminense (1849-1864) publicou no dia 12 de janeiro de 1885 um dos primeiros poemas de Machado, Ela. Em 1856, Machado iniciou sua colaboração fixa no jornal de Paula Brito com textos em prosa, intitulados ―Idéias Vagas‖ (MAGALHÃES JÚNIOR, Vida e Obra de Machado de Assis, vol.1, op.cit., p.19).

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Publicação quinzenal, editada pela tipografia Lombaerts, A Estação: jornal ilustrado para a família, que circulou no Brasil entre 1879 a 1904, era uma continuação brasileira da revista francesa La Saison publicada no Brasil entre 1872 e 1878. A revista dividia-se em duas partes com paginação independente, o ―Jornal de modas‖, assumidamente importada e traduzida da revista alemã Die Modenwelt , e a ―Parte literária‖, composta especialmente para a edição brasileira. Nesse suplemento, publicava-se ficção (conto, novela, romance), crônicas teatrais, críticas, resenhas, relatos de viagens, variedades, notícias, seções de entretenimento, belas artes. Machado de Assis colaborou neste jornal entre os anos de 1879 e 1886, publicando artigos, traduções, contos e romances. Entre as suas obras publicadas nessa revista para as senhoras fluminenses estão ―O Alienista‖, ―D. Benedita‖, ―Capítulo dos Chapéus‖, Casa Velha e Quincas Borba.(MEYER, Marlyse. ―De estação em estação com Machadinho‖. In: CÂNDIDO, Antônio. A crônica: o

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(2008), o cuidado está intimamente ligado ao conforto e este não está apenas ligado ao ambiente externo, mas também ao interior das pessoas envolvidas, seus

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