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V – F ICÇÃO E RETÓRICA ALÉM DA LITERATURA : SENTIDO POLÍTICO DA BATALHA LITERÁRIA DE M ACHADO DE A SSIS

No dia 2 de julho de 1883, Lélio dava início à sua participação em ―Balas de Estalo‖ com questionamentos muito parecidos aos do conto ―O alienista‖, publicado pela primeira vez entre outubro de 1881 e março de 1882 n‘A Estação. Sua crônica sobre dosimetria, espécie de programa para sua participação na série da Gazeta de Notícias, como vimos no primeiro capítulo desta tese, levantava questionamentos sobre a forma como a ciência, com seus rituais de veracidade e suas explicações definitivas para os fenômenos naturais e humanos, também se permitia, contraditoriamente, a praticar drásticas inversões de sentido. Bacamarte, em busca da ―verdade‖, também oscilava entre aquilo que acreditava ser a loucura, prendendo e soltando as pessoas pelos mais variados motivos ao longo de toda a narrativa. Tal como os xaropes que perdiam o efeito, ou mesmo como uma corrente médica que partia do pressuposto de que os remédios deviam ser tomados em doses exatas (dosimetria), a ciência em ―O alienista‖ foi tratada por Machado de Assis como qualquer outro discurso, cujos sentidos também estavam fundados na arte da retórica e no poder. Embora os acontecimentos em Itaguaí tenham ocorrido no ―reinado da razão‖188

, foi ironicamente com uma citação do Corão, colocada no frontispício da Casa Verde, que Bacamarte inaugurou seu hospício. Maomé, que segundo Bacamarte acreditava que Alá

tirava o juízo dos doudos para que eles não pecassem189, era a inspiração do ilustre

cientista. Não somente inspiração, mas a fonte de uma ―fraude‖ ―pia‖190

, já que, por medo do vigário, Bacamarte acabou por atribuir a citação ao papa Benedito VIII. Além da inspiração para o frontispício, Bacamarte também dizia que a Casa Verde, considerada então um mundo à parte, estava dividida entre o poder temporal – Crispim Soares e seus dois sobrinhos, encarregados da administração prática do hospício – e o poder ―espiritual‖, representado por ele mesmo. Padre Lopes, ao ouvir a explicação, ria do ―pio trocado‖ e ameaçava, por pilhéria, denunciar Bacamarte ao Papa.191 Bacamarte, cientista devoto, via-

se não só como um estudioso dos fenômenos psíquicos, mas como chefe de uma doutrina espiritual, de uma religião a ser seguida, acreditada com fé. Tal como foi enunciado por Lélio em sua primeira ―bala de estalo‖, em ―O Alienista‖, religião e ciência, verdade e mentira faziam parte já das primeiras páginas do conto que também era o texto inaugural da coletânea Papéis Avulsos, publicada em 1882. Inspirado nos antigos cronistas de Itaguaí, o narrador do conto, por meio de uma apropriação particular do discurso histórico, rompia, entretanto, com expectativas que esse tipo de relato induzia e inseria na narrativa o absurdo e o extravagante, provavelmente com o intuito de evidenciar as fronteiras entre a verdade objetiva e a retórica. Em uma espécie de pastiche histórico, o narrador seguia os preceitos de uma narrativa objetiva, apoiada em documentos, crônicas do passado longínquo da cidade, no qual nada, teoricamente, era inventado, mas fruto de conjecturas verossímeis, ao mesmo tempo em que narrava a história de uma cidade inteira encarcerada em um hospício. Um movimento que também será colocado em prática por Lélio – que em 1883 dava sequência ao projeto literário de Machado -, ao partir de um gênero tradicionalmente

189 Cf. Assis, Machado de. ―O alienista‖, Papéis Avulsos, p. 255. 190

Cf. Assis, Machado de. ―O alienista‖, Papéis Avulsos, p. 255.

vinculado ao cotidiano, à realidade factual das notícias e ao jornalismo dito ―objetivo‖ e ―moderno‖, para criar as mais inusitadas histórias em suas crônicas.

As tensões entre verdadeiro e falso, entre forma e conteúdo, entre uma narrativa objetiva e convencional e o absurdo em que de fato ela se constituía, estiveram, então, presentes não só em contos como ―O Alienista‖, mas também na produção cronística de Machado no início dos anos 1880, evidenciando, assim, que tal como os outros gêneros literários, a crônica também era um espaço importante de elaboração ficcional. Em julho de 1883, quando Lélio inaugurou sua participação na série com uma crônica que também aproximava ciência e religião, dizendo que a ciência médica era um ato de fé, cujo postulado máximo era o ―grito muçulmano‖ ―crê ou morre‖, ficava evidente que muitas das reflexões desenvolvidas nos contos não só ainda estavam no pensamento de Machado, como seriam apropriadas como um argumento estrutural na configuração da nova personagem criada pelo autor para as crônicas de ―Balas de Estalo‖. Lélio será, entre outras coisas, uma tentativa de Machado de extrapolar um dos argumentos que parecem ter sido fundamentais na organização da coletânea Papéis Avulsos para a confecção de suas ―balas de estalo‖, série na qual o narrador realizará diversos exercícios para demonstrar a existência dessas fronteiras.

Um importante passo de Lélio nas ―Balas de Estalo‖ foi o seu esforço em expandir o argumento de que a ficção e a invenção estavam além do texto literário, argumento também elaborado anteriormente por Machado em alguns dos contos inseridos na coletânea Papéis Avulsos. A idéia de que a verdade estava na opinião do outro foi fundamental na confecção das ―balas de estalo‖, nas quais a ciência passaria a ser tratada por Machado, e também por Lélio, como algo que adquiria valor ou verdade quanto mais se acreditasse nela. Argumento estrutural constituído da idéia de que tanto a verdade como a mentira eram construções

discursivas, fruto da retórica e da capacidade de convencimento do outro, constatação da qual estavam impregnadas todas as relações sociais, e que, mais uma vez, problematizava a ligação estabelecida pelo naturalismo entre a realidade e a ficção.

Em Papéis Avulsos, Machado encaminha esse argumento em vários contos da coletânea. Em primeiro lugar temos Simão Bacamarte, filho da ―nobreza da terra‖, médico de prestígio, protegido pelo rei, que com a retórica científica adquire poderes para convencer toda uma cidade sobre o que era loucura e sanidade; em ―Teoria do Medalhão‖, vemos ainda um preocupado pai que proferia ao filho lições para alcançar prestígio e poder político através de um conhecimento ornamental e superficial, no qual as idéias não precisavam ser entendidas, mas decoradas. Prestígio oriundo da propaganda, cujo papel era ostentar a forma vencedora, uma imagem calculada, premeditada, formando uma espécie de ―persona social‖. Garantia o pai e mestre que, para alcançar o sucesso, parecer era mais importante que ser. Em ―O Segredo do Bonzo‖, momento em que o autor parece sintetizar esse argumento, sob a inspiração de Fernão Mendes Pinto, e no qual o foco narrativo é um observador curioso e perplexo diante de um mundo estranho, o reino de Bungo, ele constata, a partir dos ensinamentos do bonzo, que o que importava e trazia poder não era a verdade concreta, mas a capacidade de convencer o espectador. Nesse conto, ironicamente é o bonzo Pomada, sinônimo de charlatanismo no final do século XIX, que se digna a revelar a essência da verdade aos nobres visitantes, elaborando uma ―nova doutrina‖ a partir da qual constatava que se ―uma coisa podia existir na opinião, sem existir na realidade, e existir na realidade sem existir na opinião, era melhor que existisse na opinião, ―única necessária‖, relegando à realidade apenas a característica de ser conveniente.192

192

Cf. Assis, Machado de. ―O segredo do Bonzo‖, Papéis Avulsos, p. 325. Alfredo Bosi, em ―A máscara e a fenda‖, argumenta que existe na obra de Machado uma ―trilogia da Aparência dominante‖, formada pelos

Constatava ainda que ―as mais sublimes virtudes e os mais profundos conhecimentos de um sujeito solitário‖ não tinham existência de fato sem um público que acreditasse nelas, já que ―não [havia] espetáculo sem espectador‖.193

E finalmente, em ―O espelho‖, um dos mais célebres contos de Machado, temos a personagem Jacobina que descobre que não bastava vestir a farda, mas que era preciso o olhar do outro para que ele, de fato, se reconhecesse alferes. A imagem de si tal qual a vê o olho do outro, ou tal qual reflete o espelho, é a imagem verdadeira, constatando, mais uma vez, que era a aparência que dava sentido às coisas, que se tornava verdade para o mundo. Jacobina vivia, então, sob o regime da opinião do outro.

Mentira repetida passa a ser verdade, era o que também insinuava Lélio na crônica de 19 de julho de 1885, ao narrar a história de Guedes, um homem que havia trinta e cinco anos ―[espreitava] um trimestre de popularidade, um bimestre, um mestre (sic) que fosse‖. Segundo Lélio, ―ultimamente já se contentava com uma semana, um dia, até uma hora, uma só de popularidade, de andar falado por salas e esquinas‖.194

Guedes já havia feito de tudo para alcançar o seu objetivo, tentara arrancar as armas da legação inglesa durante a Questão Christie, atirara-se à traseira do ―coche triunfal‖ do Rio Branco quando da Lei de 28 de setembro de 1871, tentara uma ―orchata higiênica‖, ―uma loteria de crianças‖, até mesmo uma ―polca‖. Diante de tantos fracassos, Lélio, ironicamente, recomendava:

Agora, se realmente quer popularidade, abra mão de planos complicados; limite-se a fazer anunciar, por meio de alusões engenhosas, que é o Guedes, que é esclarecido, e varie os termos, passe de esclarecido a ilustrado, e de ilustrado a

contos ―Teoria do Medalhão‖, ―Sereníssima República‖ e ―O Segredo do Bonzo‖. Segundo o autor, nos três contos o acesso à ―verdade pública‖ requer atenção e uma ―apurada vigilância‖ para distinguir aparência e verdade (BOSI, Alfredo. “A máscara e a fenda‖. In: BOSI et al. Machado de Assis, op. cit., pp. 437-457).

193

Cf. Assis, Machado de. ―O segredo do Bonzo‖, Papéis Avulsos, p. 324.

eminente, e acrescente que é bonito, ce qui ne gâte rien. O leitor não acredita, nos quinze dias; no fim de vinte fica um tanto perplexo; passados trinta, pergunta se realmente não se enganou; ao cabo de cinqüenta, jura que se enganou, que é o Guedes, o verdadeiro Guedes. Três meses depois, mata a quem lhe disser o contrário.

Faça isso, meu amigo; é o segredo do mulungu composto e da salsaparrilha, tanto da Bristol com da de Sands. Esperar a cadeira de vereador é muito demorado. E depois, as idéias são tão poucas – digo os motivos de popularidade – que quando a gente está pensando em plantar uma, já outro está colhendo os frutos da que plantou também.195

O remédio prescrito por Lélio era simples: convencer através da repetição, tornar-se verdade na opinião dos outros. E isso não valia apenas para Guedes e sua busca pela popularidade, mas para a medicina, para os diversos xaropes anunciados nos jornais e, por que não, para a ciência moderna. Tal idéia já havia sido tema da crônica do dia 19 de março de 1885196, quando Lélio enfatizara que era ―um dos espíritos mais abalizados‖ do seu

tempo:

Toda gente sabe que eu, sempre que é preciso elogiar-me, não recorro aos vizinhos; sirvo-me da prata da casa, que é prata velha e de lei. Agora mesmo, podia dizer prata ordinária ou casquinha; mas não digo. Digo prata de lei.

O sistema da mutualidade, inventado por Trissotin e Vadius, tem o defeito da dependência em que nos põe uns dos outros. Diz Trissotin e Vadius: Aux

ballades surtout vous êtes admirable. Se Vadius, em vez de responder, como na

comédia: Et dans lês bouts-rimés je vous trouve adorable197, disser simplesmente: A

195 Cf. Lélio, ―Balas de Estalo‖, Gazeta de Notícias, 19/07/1885. 196 Cf. anexo 12.

197 O diálogo entre os personagens Trissotin e Vadius foi retirado da peça Les femmes savantes (As Eruditas,

segundo tradução de Millôr Fernandes), escrita por Molière em 1672 e que satirizava a afetação dos salões aristocráticos pelos modismos da falsa erudição, ou do saber usado como instrumento de prestígio e poder sociais. Esta comédia narra a história de duas irmãs, Henriette e Armande, filhas de Philaminte e Chrysale, uma rica senhora deslumbrada com o mundo das letras e da filosofia e um fidalgo da alta sociedade parisiense, submisso às ordens de sua mulher. Philaminte desejava casar Henriette com Trissotin, um

propósito, que é que há do mistério? – lá se vai todo o plano de Trissotin, que

gastou seu versinho bonito, sem receber nada.

Em vez disso, inaugurei o meu sistema, fundado no princípio de que o homem deve dizer tudo o que pensa. Se o meu vizinho crê que é um pascácio, por que é que não há de escrevê-lo? Se eu cuido que sou um cidadão conspícuo e ilustrado, por que hei de calá-lo? A verdade, quer ofenda ao meu vizinho, quer me lisonjeie, deve ser pública. Nua saiu ela do poço, nua deve ir às casas particulares. Quando muito, põem-se-lhe umas pulseiras de ouro; em vez de dizer ilustrado, direi – profundamente ilustrado.

Agora vejam. Isto é que é justo, claro, transparente e racional, não o tinha podido até aqui metê-lo no bestunto dos meus contemporâneos. Vivia como uma espécie de Maomé sem Ali, pregava no vácuo, falava a surdos. Nas câmaras continuava a dobrar-se o colo humilde de Trissotin: ―Perante esta câmara tão rica de talentos, eu, o último de seus membros...‖ Logo Vadius retificando: ―Não apoiado! V. Excia. é um dos ornamentos do país!‖ Concordo que é bonito, mas está trocado. [...]

Não há mais que um Deus, e Maomé é o seu profeta. Agora posso fugir para Medina, a verdade vencerá, a despeito da fraqueza de uns, da maldade de outros, e do erro de todos.

Corações que sufocais em gérmen os mais belos adjetivos do mundo, deixai que eles brotem francamente, que cresçam e apareçam, que floresçam, que frutifiquem! São os frutos da sinceridade. Eia, corações medrosos, sacudi o medo, bradai que sois grandes e divinos. As primeiras pessoas que ouvirem a confissão de um desses corações retos dirão sorrindo umas para as outras:

- Ele diz que é nobre e divino. As segundas:

- Parece que ele é nobre e divino. As terceiras:

oportunista que tentava conseguir, através de seus versos, a mão e o dote de uma das moças. Mas Henriette, ao contrário de sua irmã, não se encantava com a poesia de seu pretendente, preferindo para noivo Clitandre, jovem preterido por sua irmã devido à sua simplicidade intelectual. O diálogo citado por Lélio encontra-se na cena III do ato III da peça, onde Vadius, um pedante como Trissotin, é chamado para conhecer a fidalga Philaminte. O que o cronista chama ―sistema de mutualidade‖ era a troca de elogios falsos e exagerados ditos entre os dois personagens, ora amigos, ora rivais, para ganharem confiança e se beneficiarem do deslumbramento das ricas senhoras. Trissotin: Aux ballades surtout vous êtes admirable/ Vadius: Et dans les bouts-rimés je vous trouve adorable./ Trissotin : Si la France pouvait connaître votre prix./ Vadius : Si le siècle rendait justice aux beaux esprits./ Trissotin: En carrosse doré vous iriez par les rues.

- Com certeza ele é nobre e divino. As quartas:

- Não há nada mais nobre e divino. As quintas:

- Ele é o que é mais nobre e divino. As sextas:

- Ele é o único que é nobre e divino.

E tu descansarás nas sétimas, que amaciarão para ti o regaço absoluto. Tudo porque eu, um dos caracteres mais elevados do nosso tempo, espírito esclarecido e abalizado, iniciei a prática do verdadeiro princípio. E o que é que se dá comigo mesmo? Lulu Sênior, que é hoje (com razão) um dos meus mais estrênuos admiradores, já não me chama de outra coisa: - espírito abalizado para cá, espírito abalizado para lá.198

Mais uma vez a verdade é tomada como opinião, opinião pronunciada no Parlamento, publicada nos jornais, dependente de fiéis como a religião de Maomé. Uma verdade que não precisa ser dependente do sistema de ―mutualidade‖ de Vadius e Trissotin, ineficiente na opinião de Lélio, mas que deve ser dita, criada pelos próprios interessados e propagada aos quatro ventos. Uma verdade que não precisa de constatação e que pode, inclusive, adornar-se de umas ―pulseiras de ouro‖. Em um mundo onde imagem e propaganda valem mais, onde idéias não precisavam ser entendidas, mas decoradas, tudo se transformava em adjetivo, em retórica. Em 1885, já melancólico com os rumos tomados pela política nacional na questão da abolição da escravidão, ao ser interrogado pelos ―impostos inconstitucionais‖, em mais um de seus diálogos fantásticos encetados nas ―balas de estalo‖, Lélio dizia que ―se fosse imperador‖ a primeira coisa que faria era ―ser o primeiro cético‖ de seu tempo. Em seguida, dizia que, através de um decreto, aboliria todos os ―adjetivos do Estado‖ e assim cumpria a máxima, ―que [era] tudo o que [tinha] colhido

da história e da política‖, que dizia que ―os adjetivos [passavam], e os substantivos [ficavam]‖. Os adjetivos, argumentava Lélio, ―[corrompiam] tudo, ou quase tudo‖.199

Em um mundo onde a imagem e a propaganda valiam tanto, onde as idéias não precisavam se sustentar, tudo parecia se tornar mero adjetivo, ―pulseiras de ouro‖, questão de retórica.

E se a verdade era aquilo que se dizia ser, Lélio, ironicamente, como bom criador de ―invenções espirituosas‖, defendia na crônica de 26 de fevereiro de 1885 o direito, por exemplo, dos nobres vereadores de alterarem seus discursos antes de serem publicados, dizendo que ―os bons costumes eram como roseiras‖ que havia plantado em seu jardim, ―pegavam‖. Se à primeira vista só se podia imprimir nos anais ―o que realmente se [lera] ou [proferira] na câmara‖, Lélio ―defendia‖ a inserção de trechos não ditos por este ser um ―costume útil e legítimo‖ da política nacional:

A prova de que o é, vamos achá-la no desenvolvimento que lhe deu a atual câmara. Esta corporação não tem taquígrafos, mas tem ambições e um bonito futuro. Como fazer, para dar direito de cidade na ata das sessões a cada transpiração da loqüela dos vereadores? Deste modo: - cada orador, acabada a sessão, vai para casa escrever o discurso, manda-o ao secretário, que o inscreve na ata. Soube disto, porque na última sessão um dos vereadores alegou que alguns colegas escrevem às vezes, não só o que disseram, como o que não disseram; asserção que foi logo contestada, e com razão.

Digo que com razão, porque os acréscimos podem considerar-se lógicos, naturais, deduzidos, por esta regra de que tout est dans tout; e se eu, ao copiar o meu discurso, acrescento-lhe um argumento, é porque ele estava no argumento anterior, e a pena não fez mais do que partejá-lo. Não é aditamento, é restituição. E mais; em rigor, deve entender-se que o aumento foi apresentado e ouvido. Isto quanto à substância. Pelo que toca às flores de retórica, toda a gente está de acordo que o silêncio do gabinete é muito mais propício a esse gênero de vegetação, do que

o tumulto de um debate. E depois, digam-me, se eu não publicar as minhas belezas literárias por conta da câmara a que pertenço, há de ser por conta das câmaras a que pertencem os outros? Seguramente não.

Partindo da lógica do axioma grego tout est dans tout, citado por Aristóteles, tudo está em tudo, Lélio, argumentava, dizendo ter descido ―ao fundo das coisas‖, que se tudo era pura retórica retirada de manuais de florilégios de oratória, como havia sugerido em crônica de 10 de julho de 1883, nada mais ―natural‖ que usar do ―silêncio do gabinete‖, fugindo do ―tumulto de um debate‖ para melhor escolher as idéias que seriam publicadas. Se parecer era mais importante que ser, nada mais compreensível, segundo o argumento de Lélio, que a alteração dos pronunciamentos parlamentares para a publicação. Tomados como retórica e não como discussão concreta sobre os problemas da cidade, os discursos parlamentares eram tratados por Lélio como ―belezas literárias‖, fantasiosas por vezes, feitos para serem ditos diante do espectador, ou seja, diante da câmara, em seu teatro político. Verdades ―inventadas‖, discursos não pronunciados, mas que depois eram compartilhados com a nação nas publicações oficiais do governo, ou seja, uma ficção compartilhada, que não estava em páginas de literatura, mas nas atas da Câmara.

Entretanto, mais uma vez Lélio aplicava empulhações ao seu leitor. Na crônica de 20 de julho de 1884, na qual ele atribuía à Lafayette Rodrigues, ex- chefe do gabinete de ministros, um livro de ―memórias‖ de 300 páginas intitulado História que não aconteceu, já estava um dos seus argumentos para a questão dos debates parlamentares: ―na política não