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II – NOVOS RUMOS DA CRÔNICA : O ESTATUTO FICCIONAL

Foi em 1881 que Machado publicou seus primeiros textos na Gazeta, entre eles alguns contos que se transformaram futuramente em grandes referências da sua obra e de seu estilo literário23. Entretanto, foi somente em julho de 1883, com a estréia do autor na

série cronística ―Balas de Estalo‖, que os leitores cariocas passaram a contar regularmente com textos de Machado na Gazeta de Notícias. Aos 44 anos, já consagrado pelo seu romance Memórias Póstumas de Brás Cubas, o escritor aceitava novamente o desafio de participar de uma publicação coletiva, tal como havia feito entre os anos de 1869 e 1876, na série ―Badaladas‖, da Semana Ilustrada24

, com a diferença de que agora não mais se esconderia atrás de um pseudônimo coletivo, como havia sido o caso com o ―Dr. Semana‖, mas teria sua própria assinatura dentro da série.

Ao entrar para as ―Balas de Estalo‖ sob o pseudônimo Lélio, Machado já era chefe de seção da Secretaria da Agricultura desde 1876 e como tal, teoricamente tinha bons motivos para a utilização de pseudônimos que escondessem sua identidade. Afinal de

23 Alguns dos primeiros contos publicados por Machado na Gazeta de Notícias são ―Teoria do Medalhão‖,

18/12/1881, ―Uma Visita de Alcebíades‖, de 01/01/1882, ―A Sereníssima República‖, de 20/08/1882, ―Verba Testamentária‖, de 08/10/1882 e ―A Igreja do Diabo‖, de 17/02/1883.

24 Entre os anos de 1869 e 1876, Machado colaborou na série ―Badaladas‖ da Semana Ilustrada, revista

editada pelos irmãos Carlos e Henrique Fleiuss. Nessa série, por detrás do pseudônimo ―Dr. Semana‖ escondiam-se vários redatores da revista, o que dificulta a identificação dos textos de Machado de Assis (SOUZA, Karen Fernanda Rodrigues de, As cores do traço. Paternalismo, raça e identidade nacional na Semana Illustrada (1869-1876), Dissertação de mestrado em História Social, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Campinas, SP: 2007, 187p.

contas, quaisquer comentários sobre a administração imperial na imprensa poderiam lhe render alguns constrangimentos. Uma demonstração disso ocorrera no início de 1883, pouco tempo depois de ter publicado os seus Papéis Avulsos, quando surgiram ―estranhas deduções políticas‖ das quais o autor teve que ser defendido. A acusação? A de que no seu conto ―A Sereníssima República‖, uma sátira à corrupção eleitoral no tempo do Império, ele teria feito insinuações à candidatura polêmica de Leonel de Alencar, irmão de José de Alencar, quando este se elegeu deputado pelo Amazonas. Corrupção, diplomas falsos e calorosas discussões na Câmara em 1869 fizeram com que Alencar se sentisse incomodado com o texto de Machado de Assis.25 Desconfortável para o literato, essa situação,

entretanto, não tinha sido uma situação isolada. Ainda no mesmo ano, ele havia sido alvo de outras suspeitas políticas embaraçosas após a publicação de seu conto ―O Lapso‖, em 17 de abril de 1883. Sobre esse conto, no qual um médico holandês, o doutor Jeremias Halma, descobrira a doença do lapso, um mal que consistia na perda ou esquecimento da noção da dívida, insinuava-se que o autor havia feito referências ao então ministro do império, Leão Veloso, apontado por seus inimigos políticos como um grande devedor. A referência, sempre negada por Machado, virou alvo de comentários maliciosos, que diziam ser a história uma alusão ao ministro que, depois de governar o Ceará, em 1867, deixou a província sem que ninguém ―lhe fiasse sequer uma caixa de fósforos‖26

. Para o chefe de

25 Segundo Magalhães Júnior, Leonel de Alencar, nas eleições de 1869, nunca estivera no Amazonas, mas

fora inserido na chapa conservadora dessa província por exigência de Jose de Alencar, então ministro da Justiça, e só foi empossado depois de uma batalha parlamentar, na qual outros candidatos questionavam o seu diploma de eleito. Dez anos depois, o deputado ainda revelava ―melindres‖ ao que lhe parecesse alusão, ainda que vaga a esse escândalo eleitoral. Ao serem publicados os seus Papéis Avulsos, Leonel de Alencar queixou- se a Araripe Júnior da brincadeira, ao que o crítico, em carta de 07 de maio de 1883, teve que defender o literato: ―Não tens razão em supor que o Assis lhe fizesse alusões nos Papéis Avulsos. O Assis é um homem que só ofende por engano [...]. Os seus últimos trabalhos incontestavelmente contêm acerbas críticas ao meio em que vivemos; mas tudo lhe resulta do espírito de generalização‖ (MAGALHÃES JÚNIOR, Vida e Obra, op.cit., p. 38).

26

A história da insinuação sobre o ministro do império encontra-se na carta escrita por Araripe Júnior a Leonel de Alencar. (Cf. MAGALHÃES JÚNIOR, Vida e Obra, op. cit., pp. 38 - 39).

seção da Secretaria da Agricultura, a situação era, no mínimo, embaraçosa. Criticar um integrante do ministério por sua falta de pontualidade em dívidas pessoais poderia custar o emprego do literato.

Resolvidos estes mal entendidos, Machado seguiu tanto como funcionário do império, quanto como assíduo colaborador dos jornais da Corte, e evitar situações como estas e, ao mesmo tempo manter a autonomia de suas idéias, certamente tornaram-se questões recorrentes durante toda a sua vida. O autor precisava evitar comentários como o do jornal O Corsário, que em setembro de 1883 escrevia: ―Sr. Ministro da Agricultura: Vossa Excelência deve demitir o Machado, porque este empregado público desmoraliza-o, desmoralizando o governo que V. Exa. faz parte, escrevendo ―Balas de Estalo‖. Seus textos, independente do gênero literário, continuavam a satirizar e criticar instituições e práticas políticas imperiais, mas Machado tinha a clara percepção de que era preciso intervir sem confrontar27. Diante dessas polêmicas, a criação da assinatura Lélio para as

―Balas de Estalo‖ parecia ser uma oportuna estratégia do literato para fugir de futuras retaliações por seus escritos. Se entre os seus objetivos estava o de ―submeter o aparato político e ideológico das formas de dominação ao crivo de uma análise e produção subversivas‖ que pusessem em evidencia o seu caráter ―arbitrário e fraudulento‖28

, Machado de Assis, para garantir sua autonomia, precisaria recorrer a estratégias que o resguardasse de futuras retaliações, e o anonimato passava a ser um instrumento indispensável.

27 Cf. PEREIRA, Leonardo A. de M., ―Introdução‖, in ASSIS, Machado de. História de Quinze Dias;

organização, introdução e notas: Leonardo Affonso de Miranda Pereira. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2009, p. 45.

28

Cf. FACIOLI, Valentim, ―Várias histórias para um homem célebre‖, in BOSI, Alfredo [et. al.] Machado de Assis. São Paulo: Ática, 1982, p.32.

Entretanto, apesar da necessidade de se preservar enquanto funcionário público, evitando comentários como os do jornal O Corsário, Lélio, pseudônimo inédito na carreira do autor, ao que tudo indica, não foi criado com o objetivo exclusivo de resguardar a identidade de Machado de Assis, já que muitos sabiam que por trás daquela assinatura estava o autor das Memórias Póstumas e dos Papéis Avulsos. Diferente de Policarpo, sua assinatura na série Bons Dias!, publicada alguns anos mais tarde, e cuja autoria só foi identificada em 1956 por José Galante de Sousa, Lélio não preservou a identidade de seu criador. Em 1 de janeiro de 1884, Décio, ao fazer um balanço da série no ano de 1883, já o chamava de ―literato chefe, poeta, dramaturgo e romancista‖ que havia deposto a sua ―coroa de burocracia da agricultura‖ e a ―sua filosofia brás cúbica‖ para fazer em ―Balas de Estalo‖ ―uma boa reclame (sic) à Camisaria Especial‖29

. Porém, mesmo sendo pública a sua autoria, na série ele não era simplesmente o funcionário público criticando os seus chefes, nem era simplesmente cópia de Brás Cubas e seu modo todo peculiar de ver o mundo. Ele era Lélio. A máscara, que não servia para ocultar, guardava outras intenções para o uso desse personagem retirado por Machado de Assis de textos consagrados da literatura cômica ocidental. Diferente de alguns integrantes da série, ele manteve, ao que tudo indica, uma única assinatura, procurando, de uma forma geral, manter a unidade de seus textos através da construção de um personagem-narrador que levava uma assinatura diversa do seu nome, e que não era utilizada como disfarce, mas como uma instauração de graus de complexidade à sua fala, o que, de certa forma, lhe garantia maior liberdade e autonomia.

29Nesta crônica, Décio explica para o leitor, já no começo do ano, como até então tinha funcionado a série

―Balas de Estalo‖, quem eram os seus narradores e qual o papel de cada um deles na publicação. A referência à Camisaria Especial está ligada à crônica que Machado de Assis publicou no dia 15/07/1883, na qual comentava um anúncio que havia lido nos ―A Pedido‖. Sob a inspiração e influência dos textos de Homero, Lélio narrou a história de um freguês que, pagando menos por uma mercadoria, voltou à Camisaria para devolver a diferença. Depois desta bala, Lélio ficou conhecido entre os seus colegas como aquele que fazia propaganda à Camisaria Especial (―Balas de Estalo‖, Gazeta de Notícias, 15/07/1883).

Uma máscara ficcional que servia, entre outras coisas, para proteger o funcionário público, não através do anonimato, mas através do distanciamento criado entre autor e narrador, e também para inserir um estatuto literário àqueles textos cotidianos.

Em 1883 Machado de Assis já era cronista experiente e desde suas primeiras crônicas no Diário do Rio de Janeiro, muita coisa havia mudado. Essa transformação pode ser acompanhada, por exemplo, na leitura da cada uma das séries escritas por ele ao longo de sua carreira. Nos seus ―Comentários da Semana‖, sob as assinaturas de M. A., ou ainda M. de A., por exemplo, deixou impressas suas opiniões políticas, suas afinidades ideológicas com os liberais e suas referências autorais no gênero cronístico30. Na década de

1860, seu texto ainda refletia antigos moldes do folhetim, fosse na organização dos temas, no tom, na transição dos assuntos31. Vários de seus artigos surgiam da sua experiência

como repórter do Senado, da sua leitura do jornal, fazendo com que os temas das crônicas seguissem, inclusive, a mesma ordem dos noticiários32. O exercício constante da escrita da

crônica trouxe, entretanto, novos elementos para Machado, que foram sendo lentamente incorporados. Da crônica engajada dos anos de 1861 e 1862, Machado de Assis, em seu retorno em 1864, passava às crônicas mais leves, mais ―casuais‖, abordando temas que iam da ―política amena‖ à vida cultural da Corte. Agora publicadas no rodapé, aproximando-se, como diz Lúcia Granja, da matriz européia do folhetim, suas crônicas passaram a aparecer sob o titulo de ―Ao Acaso‖, revelando o compromisso com o modelo clássico desse gênero literário33. É nesse momento que Machado se aventura em novas estratégias lingüísticas,

usando da ironia, da paródia e da citação literária para ―assegurar suas possibilidades de

30 Manoel Antonio de Almeida e José de Alencar estão entre os exemplos possíveis de inspiração no gênero

cronístico para Machado de Assis no início de sua carreira.

31 Cf. GRANJA, Lúcia. Machado de Assis: escritor em formação (à roda dos jornais), op.cit., p. 34. 32

Cf. GRANJA, Lúcia, op. cit., p. 34.

expressão‖. Era preciso alterar a forma para criar múltiplos significados em seus textos, descolando-se, assim, das opiniões fixas dos jornais em que eram publicadas. Sempre em tom de diálogo com o leitor, as crônicas vão construir um espaço de reflexão sobre o cotidiano, a política, o teatro, a sociedade brasileira, mas agora criando novas formas de expressão para que fosse garantindo ao cronista uma maior liberdade de opinião. E nesse ponto é a literatura que vai possibilitar a transformação desses textos em falas mais complexas e multifacetadas. Considerada até hoje um gênero híbrido entre jornalismo e literatura34, a crônica foi ganhando nas mãos de Machado novas perspectivas. Se a

literatura até então tinha se inserido em seus textos através de citações, paródias e cenas teatrais, na década de 1870 ela estará presente em outras instâncias do texto. Na elaboração de um narrador, que podia manter maior ou menor unidade ficcional, na escolha de um determinado pseudônimo, na apresentação de um ―programa‖ mínimo, estipulando temas e abordagens. Ou seja, a partir de finais da década de 1870, Machado passará a criar vozes narrativas dentro de suas crônicas – embora isso aconteça de modo diferente em cada série específica. Com o claro intuito de tornar aquele que era considerado um gênero de relato dos acontecimentos35 em algo mais complexo e subjetivo, o literato passou, então, a tornar

as estruturas desses textos mais literárias, evidenciando que a crônica, embora tivesse seus

34

Com a tarefa de registrar o ―circunstancial‖, o cronista transforma-se em uma espécie de ―narrador- repórter‖, que relata os fatos. A crônica é uma soma de jornalismo e literatura, limitada pelo espaço do jornal e que convive com diversas outras colunas do periódico. Com aparente simplicidade e transitoriedade, o texto cronístico reserva para si, entretanto, requintes e estratégias literárias que o afastam da objetividade pura e simples do acontecimento imediato (SÁ, Jorge de. A crônica, São Paulo: Ática, 1985, pp.05-11).

35Antes mesmo da noção de crônica moderna, podemos ressaltar os significados adquiridos pelo termo

cronista, que originalmente remetia-se àquele que ―compilava e historiava os fatos‖, objetivamente, e que depois será substituído pelo termo historiador (SILVEIRA, Jorge Fernandes. ―Fernão Lopes e José Saramago – Viagem, paisagem, linguagem – cousa de ver‖. In CÂNDIDO, A. [et. Al.], 1992, op. cit., p.29). A crônica moderna vai se revestir de novos sentidos, abdicando dessa tarefa de comentar de forma objetiva o acontecido, abrindo espaço para o comentário pessoal, para o olhar subjetivo, sempre em busca do ―significado do efêmero e do fragmentário‖ (NEVES, Margarida de Souza. ―História da Crônica, Crônica da história‖ in REZENDE, Beatriz (organizadora). Cronistas do Rio. Rio de Janeiro: José Olympio: CCBB, 1995, pp. 17-31).

compromissos temáticos com os acontecimentos do cotidiano e do jornal, também estava intrinsecamente ligada à opinião, à perspectiva de quem as escrevia36. E o pseudônimo,

mais ou menos elaborado ficcionalmente, surgia como uma ferramenta importante para evidenciar essas instâncias narrativas para o leitor.

Machado, desde o início de sua carreira, já havia se utilizado de muitos pseudônimos, como era prática entre os seus contemporâneos. Ele já havia sido Gil em alguns ―Comentários da Semana‖, Sileno na Imprensa Acadêmica, Job e Lara em algumas peças publicadas no Jornal das Famílias e J.J. em contos escritos entre 1866 e 187537. Com

as crônicas não foi diferente. Se nos textos publicados na década de 1860 ele assinou simplesmente suas iniciais, M. A. ou M. de A.38, assumindo assim diretamente suas

opiniões ao recontar a semana, nas suas ―Histórias de Quinze Dias‖ (1876-1878) ele passou a ser Manassés, inovando significativamente a relação que até então havia estabelecido entre a assinatura do pseudônimo e os significados mais gerais de seus textos cronísticos. Segundo Leonardo Pereira, o pseudônimo era agora responsável por dar o tom aos textos de Machado e não era usado como simples artefato para esconder sua identidade. Com Manassés, o pseudônimo ganhou status de ―artifício literário‖, indicando um ―rebuscamento da forma‖ na produção de crônicas e, embora o pseudônimo não chegasse a se configurar como personagem, era ele quem indicava a ―perspectiva narrativa‖ adotada por Machado em seus artigos quinzenais, dando unidade temática e política à coluna da

36 Em suas crônicas, Machado recolhia as notícias dispersas no jornal, dava-lhes ―enquadramento de

significação‖. O narrador, embuçado em um pseudônimo, estabelecia um jogo ficcional com o leitor, procurando sobrepor o enunciado literário ao dado empírico, ―desqualificando a transparência‖ da simples notícia (BRAYNER; REZENDE; MEYER. ―Machado de Assis cronista‖ in CÂNDIDO, A. [et.al.], 1992, op. cit., p. 413).

37 Cf. SOUSA, José Galante de. Bibliografia de Machado de Assis, op.cit., pp. 26-30.

38 Nos seus ―Comentários da Semana‖, Machado de Assis assinou suas iniciais, com exceção de alguns textos,

em que assinou Gil (ASSIS, Machado de. Comentários da Semana. Organização, introdução e notas: Lúcia Granja e Jefferson Cano. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2008).

Ilustração Brasileira39. Machado vai ensinar ao leitor que o narrador nem sempre é

totalmente ―confiável‖, que por trás de um texto aparentemente trivial, moldado pelos antigos protocolos da crônica e do folhetim, podiam estar contidos muitos outros significados. Para Leonardo Pereira, é com Manassés que o autor vai passar a abordar o gênero cronístico por uma perspectiva ―abertamente literária‖.40

Aproveitando-se dessa experiência anterior, Machado escreverá, na década de 1880, as ―Balas de Estalo‖. É a partir desse exercício de construção de uma voz narrativa cada vez mais evidente41, que Machado cria novos modelos para o seu texto cronístico. A

abordagem direta e engajada dos anos 186042, já relativizada na década de 1870 por

Manassés, é agora mais uma vez transformada. Lélio será uma nova tentativa de Machado de problematizar o gênero cronístico, trazendo ainda mais para o primeiro plano o seu caráter literário e extrapolando a questão do narrador que escolhe, reconta e até mesmo explica para o leitor os acontecimentos da cidade. Agora, a fala do cronista chegaria muitas vezes por caminhos indiretos, por delírios, pela visita de assombrações, pelo diálogo com

39 PEREIRA, Leonardo, ―Introdução‖ in ASSIS, Machado de. História de Quinze Dias, op.cit., p.18. 40 Cf. PEREIRA, Leonardo, ―Introdução‖ in ASSIS, Machado de. História de Quinze Dias, op.cit., pp.50-51. 41 Sidney Chalhoub em artigo sobre a série ―A+B‖, de Machado de Assis, diz que ler as crônicas de Machado

é sempre um exercício de se perguntar se as idéias ou conteúdos mais transparentes destes textos são os próprios de Machado, ou se devemos considerá-los idéias de personagens narradores, ―personagens de ficção, construídos mais ou menos laboriosamente, e por isso mais ou menos distantes do autor‖. E conclui dizendo que é impossível decidir, de antemão, sobre qualquer série cronística, impossível saber se podemos ―ler esses textos como expressão das idéias de Machado, mesmo que minados por sua ironia, ou , ao contrário, se devemos lê-los na clave d‘algum narrador ficcional, do naipe de Brás Cubas ou Dom Casmurro, e por isso muito distante da perspectiva do próprio Machado‖. Como solução para o impasse, o autor afirma ser necessário considerar a hipótese de haver diferentes níveis ou possibilidades de leitura da mesma série de crônicas, em momentos diversos ou em relação a temas variados, o que ―nos levaria a situações de maior ou menor elaboração narrativa‖. Para Chalhoub, o problema se resolveria ―na empiria‖, ―na análise interna da série e de cada texto dentro da série, no entrecruzamento de fontes, no alinhavar dos nexos e dos assuntos‖ (CHALHOUB, Sidney. ―A arte de alinhavar histórias: a série A+B de Machado de Assis‖ in CHALHOUB, S; NEVES, Margarida de Souza; PEREIRA, L. A. de M.(org.). Histórias em cousas miúdas: capítulos de história social da crônica no Brasil. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2005, p. 70).

42 Machado iniciou sua trajetória de cronista no Diário do Rio de Janeiro com a série ―Comentários da

Semana‖, publicada entre outubro de 1861 e julho de 1863. Depois de um breve intervalo, o autor voltou a escrever suas crônicas, mas agora sob o título de ―Ao Acaso‖, publicada entre junho de 1864 e maio de 1865 (GRANJA, Lúcia. Machado de Assis: escritor em formação, op.cit., p. 15).

os vermes, por cartas recebidas ou mesmo por personagens que ―ressuscitavam‖ da Antiguidade para contar suas próprias histórias. Em ―Balas‖, Machado realizará um esforço contínuo de chamar a atenção do leitor para o narrador de seus textos, num exercício cujo objetivo era mostrar que quem fala constrói uma perspectiva particular dos acontecimentos e que não havia a possibilidade de retratar objetivamente, imparcialmente, a realidade. Intitulando-se inventor de dissimulações43, Lélio muitas vezes joga sua narrativa para o

―outro‖, alguém que escreveu uma carta, que narrou uma história, ou ainda se utiliza da estratégia de ―transcrição‖ de um diálogo - experiência que levará ao extremo na série ―A+B‖44

.

Ele não iria mais recontar a semana, seu recorte temporal agora é mais curto, mais imediato. Suas ―balas‖ são flashes do cotidiano da cidade, do Parlamento. Ele não é mais o historiador dos últimos quinze dias da cidade, ele não vai mais ―organizar‖ o tempo para o seu leitor, distanciando-se assim ainda mais de uma visão clássica e mais tradicional da crônica. Ele é, nesta série, mais um dos ―artilheiros‖ que diariamente buscam o inusitado, o