• Nenhum resultado encontrado

III – A S NOVAS FRENTES DE BATALHA : O CONTO E A CRÔNICA

Parte significativa da crítica machadiana esforça-se por entender as razões que levaram Machado de Assis a mudar alguns rumos de sua obra no ano de 1880 com a publicação das Memórias Póstumas de Brás Cubas. Depois de se afastar do jornal O Cruzeiro70, em setembro de 1878, Machado passou pelo que se costuma chamar de um momento de ―crise‖. Doente, ameaçado pela cegueira, ele interrompe suas atividades literárias entre dezembro de 1878 e março de 1879. Depois dessa ausência, ele retorna aos jornais e, em dezembro de 1879, publica o artigo ―A nova geração‖, evidenciando que muitos dos questionamentos que o haviam levado a um confronto sobre a obra de Eça de Queirós ainda estavam em sua mente. Entre a publicação de Iaiá Garcia, no início de 1878, e o surgimento das Memórias Póstumas, em janeiro de 1880, considera-se que Machado tenha vivido um período de transição entre o que comumente se chama de sua fase ―romântica‖ e a sua futura ―fase madura‖.71

O que antes parecia inexplicável e surpreendente, hoje, entretanto, já é visto pela crítica como uma mudança resultante não de um rompimento brusco com a prosa dos primeiros romances, mas de um lento e paciente processo de amadurecimento literário.

70 Magalhães Junior afirma que Machado de Assis teria se retirado do Cruzeiro por não compartilhar a aliança

feita entre Henrique Correa Moreira, o ―Pato Tonto‖, proprietário do jornal, e Martinho Campos, reconhecido como escravocrata (MAGALHÃES JUNIOR. Vida e obra. Vol. II, op. cit., p.251).

71

Sobra a divisão da obra de Machado de Assis em diferentes períodos cf. Roberto Schwarz, Um mestre na periferia do capitalismo, São Paulo, Duas cidades, 1991.

As discussões sobre o naturalismo e a noção de verdade embutida na prática científica provavelmente fizeram parte desse processo de ―amadurecimento‖ da obra de Machado de Assis. E se por muito tempo os críticos restringiam-se a observar as mudanças ocorridas nos romances, comparando sempre Iaiá Garcia e Memórias Póstumas, por exemplo, sabe-se hoje em dia que Machado trabalhou essas questões não apenas nesse gênero, mas fez dos contos e das crônicas um espaço também de reflexão literária. Para John Gledson e Lúcia Granja, por exemplo, a ―experimentação que finalmente produziu Memórias póstumas e Papéis Avulsos” aconteceu em ―muitas frentes‖, sendo o resultado de uma combinação ―extraordinária‖ de ―paciência‖, ―persistência‖ e ―ousadia‖ por parte de Machado. Segundo os autores, o literato tinha, bem antes da publicação de Memórias Póstumas, a consciência de suas próprias ―ambições criativas‖ e que fez de tudo para alcançá-las.72 Gledson e Granja defendem ainda que em 1872, com a publicação de ―A

parasita azul‖, o conto que abre as Histórias da meia-noite, já se podia notar alguns aspectos preparativos para Memórias Póstumas. Os autores apontam também que já em alguns contos que integraram Papéis Avulsos (1882), mas que já haviam sido publicados antes mesmo de 1880, como é o caso de ―Na Arca‖, ―A chinela turca‖ e ―Uma visita de Alcebíades‖, já se podia notar esse longo processo de transformação na obra machadiana.73

Além dos contos, Gledson e Granja também atribuem papel importante às crônicas nesse processo de transformação na obra de Machado. Para eles, ―Notas Semanais‖, a série publicada sob o pseudônimo Eleazar, entre 2 de junho e 1º de setembro de 1878, logo após o encerramento da série ―História de Trinta Dias‖, tornou-se um espaço de ―experimentação‖ literária que levaria Machado à sua fase ―madura‖. Vale lembrar que, ao

72Cf. GLEDSON, J.; GRANJA, L.. ―Introdução‖ in ASSIS, Machado de. Notas Semanais, Gledson, John;

Lúcia Granja (org.). Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2008, p.17.

publicar as ―Notas Semanais‖, o literato já havia se transformado em um dos personagens centrais da batalha contra o realismo naturalista na polêmica sobre o livro de Eça de Queirós. Fato que, para Gledson e Granja, teria contribuído na transformação da série do Cruzeiro em um importante instrumento de debate, com o qual o literato evidenciaria as lacunas do projeto da ―nova geração‖.74

Para os autores, o gênero cronístico surgia, então, como um espaço onde Machado colocaria em prática algumas de suas inquietações literárias. Os autores argumentam ainda que, se por um lado, Machado vinha realizando experiências narrativas no conto, usando, por exemplo, a paródia - para que então conseguisse transpor os limites impostos pelo embate com os modelos romântico e realista75 -, por outro, ousava tratar a questão da relação entre realidade e ficção de forma

inusitada nas crônicas. Situadas no contexto dessas polêmicas, as ―Notas Semanais‖ conduziriam, então, o leitor a perceber a existência de uma ―ficção pactuada‖76

na sociedade, problematizando a bandeira tão defendida pela ―nova geração‖ da verdade na literatura. Machado, segundo os autores, parecia querer argumentar no sentido de mostrar que se o romantismo havia entrado num processo evidente de decadência, tão pouco a forma realista/naturalista correspondia às necessidades literárias da sociedade brasileira.

74

Daniela Magalhães da Silveira também argumenta que a produção de Machado de Assis n‘O Cruzeiro dá continuidade às discussões iniciadas ainda na revista A Epocha – Revista da Quinzena – Fantasias, Romances, Letras, Teatros, Belas-artes sobre a produção de uma literatura tipicamente nacional. Foi nessa publicação, que mantinha colunas de literatura, com fantasias e crônicas, e de ―letras, ciências e artes‖, que Machado de Assis publicou contos como ―A chinela turca‖, assinado por Manassés, em 1875. Periódico idealizado por Joaquim Nabuco, surgiu em um contexto de grandes polêmicas literárias no Rio de Janeiro, entre as quais a protagonizada pelo próprio Nabuco e José de Alencar, sobre o drama ―O Jesuíta‖. Segundo Silveira, Nabuco teria utilizado o espaço d‘A Epocha para dar continuidade às idéiass defendidas durante a polêmica com Alencar (SILVEIRA, Daniela Magalhães da, op. cit., 2009, pp. 24-25).

75 Para John Gledson, a paródia ocupa lugar central na mudança complexa que aconteceu a Machado de Assis

por volta de 1880, na ―crise dos 40 anos‖. Ela está presente em ―A parasita azul‖, mas de modo ainda hesitante, mas depois de cinco ou seis anos, surgia, como ―Minerva da cabeça de Júpiter‖ em ―Na arca‖ ou em Memórias Póstumas (GLEDSON, op. cit., 2008, p. 20).

Gledson e Granja afirmam também que, para realizar o projeto de dar continuidade à discussão sobre as relações entre realidade e ficção, Machado criara uma espécie de ―método‖ na confecção das crônicas de ―Notas Semanais‖ que consistia em levar as questões tratadas a graus paradoxais, para então conduzi-las ao absurdo total, um exercício que resultaria na demonstração de que a ficção era universal e que a verdade podia, igualmente, não existir.77 Nessas crônicas haveria, então, uma visão de mundo que seria em

si uma ficção, e na qual a maior parte das pessoas viveria e agiria de acordo com mitos e ficções comumente estabelecidos.78 Uma conclusão que parecia afrontar, filosoficamente, o

século da ciência e do conhecimento objetivo, no qual, teoricamente, já quase não existiam ―mistérios‖.

Gledson e Granja defendem que a escolha de Machado por esse método surgia como uma espécie de resposta também à chegada das chamadas ―idéias novas‖ ao Brasil. Crítico com relação à ―ingestão irrestrita de idéias estrangeiras‖, Machado, segundo os autores, via que os princípios sociais que regiam a sociedade carioca, e brasileira, não se encaixavam adequadamente em nenhuma ciência ou política estrangeira. Ou seja, se a verdade nacional não se adaptava a sistemas políticos e filosóficos pré-existentes, que prevalecesse, então, a ficção. Se a realidade brasileira não podia ser considerada nem adequadamente descrita segundo categorias e sistemas de pensamentos europeus, devido a um tipo de ―meninice social‖, de ―infância constitucional‖, tampouco os modelos romântico e naturalista pareciam suficientes para esta tarefa, uma vez que envolviam, segundo Gledson e Granja, ―distorções simplórias‖ daquela realidade. Diante dessa constatação, segundo os autores, Machado teria recorrido à fantasia, para prestar contas de

77

Cf. GLEDSON; GRANJA, idem, 2008, p.35.

acontecimentos que as explicações científicas não alcançavam.79 Logo, para Gledson e

Granja, as crônicas das ―Notas Semanais‖ representavam, como nunca antes havia ocorrido no gênero, uma linha de ―investigação e experimentação artística‖ resultante do ―beco sem saída ficcional‖ que Iaiá Garcia havia representado para Machado. Segundo os autores, a forma assumida pela crônica de Machado na série revelaria a complexidade da situação histórica em que o autor se encontrava, demonstrando que onde ―nenhuma doutrina‖ se ajustava ou podia ser confiada, a única solução parecia ser a ficção. Pelo menos na literatura.80 Um caminho que, segundo os autores, levaria Machado de Assis a um defunto

autor, por exemplo. A estratégia da subversão do senso comum e da lógica revelariam, segundo Gledson e Granja, que Machado havia adotado o método no qual as ―mentiras‖ eram usadas para ressaltar as ―verdades‖.81

Para estes autores, as crônicas d‘O Cruzeiro demonstrariam, então, que a ficção passara a ser uma ―atitude‖ da prosa machadiana, por meio da combinação entre a alegoria e o fantástico, ou por meio da incorporação da paródia, da sátira e da ironia, tudo isso como ―uma forma possível de reinventar a verossimilhança em relação ao real e à própria ficção‖.82

Gledson e Granja afirmariam, por último, que nunca a forma da crônica fora tão útil para Machado como um espaço de descoberta e experimentação.83

Entretanto, Leonardo Pereira, ao estudar e organizar as crônicas que Machado publicou na Ilustração Brasileira, sob o pseudônimo Manassés, entre julho de 1876 e abril de 1878, ou seja, pouco antes do surgimento das ―Notas Semanais‖, afirma que já nessa época, antes mesmo do período em que os críticos normalmente detectam um ―sensível

79 Cf. GLEDSON; GRANJA, idem, 2008, p.77. 80 Cf. GLEDSON; GRANJA, idem, 2008, p.79. 81 Cf. GLEDSON; GRANJA, idem, 2008, p.71. 82

Cf. GLEDSON; GRANJA, idem, 2008, p.75.

amadurecimento‖ na prosa do literato, havia sinais da reflexão de Machado sobre a forma literária e sua correspondência com a realidade. Se a discussão acerca nas novas tendências artísticas se acirrou com a chegada d‘O Primo Basílio, ―História de Quinze Dias‖ mostrava, por outro lado, que Machado de Assis já há algum tempo vinha pensando no tema. Com procedimentos inovadores como a adoção de um pseudônimo, que não era apenas um disfarce, mas um artefato literário para problematizar o ponto de vista narrativo, em 1876, utilizando a crônica, o autor já parecia enfatizar para seu leitor que a realidade estava, necessariamente, sempre fadada ao crivo e às escolhas de quem contava as histórias.

Para alcançar tal objetivo, a escolha do gênero cronístico provavelmente não era fortuita. A utilização da crônica nessas reflexões surgia, não apenas por ela ser considerada um espaço de ―experimentação‖ literária, ou porque possuía ―parâmetros mais flexíveis‖ no momento da confecção do texto, como alegam Gledson e Granja84, mas por ser um gênero

que até então era associado ao relato de verdades imediatas. Tradicionalmente definida como um misto de jornalismo e literatura, confeccionada a partir dos ―fatos‖ publicados no jornal, e não da ficção e da imaginação de seu autor, a crônica provavelmente se mostrava um ótimo veículo para Machado deflagrar as lacunas do projeto moderno de ―objetividade‖. Segundo Leonardo Pereira, Machado parecia aconselhar, nas entrelinhas de cada um de seus textos, a leitura a contrapelo, a desconfiança em relação ao narrador, evidenciando que também o ―historiador‖ da semana precisava ser lido com cautela. O texto não deveria ser tomado como espelho, mas como construção, mesmo quando se tratava das singelas crônicas semanais e até mesmo quando vinha sob o pomposo título de ―História‖, ciência que na época estava revestida de sentidos positivistas e objetivos. Segundo Pereira, as contradições, os duplos sentidos eram parte intrínseca da confecção

desses textos, até mesmo na escolha da assinatura. Manassés era, ao mesmo tempo, aquele que recordava os fatos da semana, mas também aquele que, segundo a origem hebraica da palavra, ―fazia esquecer‖.85

Era preciso cautela. Para Leonardo Pereira, com a ―História de Quinze Dias‖ Machado rompia com uma tradição mais ―clássica‖ na produção de crônicas86, inserindo um novo sentido a estes pequenos textos semanais: a subjetividade87.

Tudo isso em um contexto no qual se pregava a aliança entre literatura e ciência com o intuito de atingir uma maior objetividade na descrição do real.

As análises de Gledson e Granja sobre a série ―Notas Semanais‖ são, entretanto, fundamentais na medida em que revelam que, ao longo da década de 1870, a reflexão sobre ficção e realidade foi uma constante na obra de Machado, demonstrando ainda que o autor frequentemente utilizou das mais variadas estratégias para solucionar esses impasses literários. Estratégias que iam desde a criação de uma voz narrativa, como sugere Leonardo quanto a Manassés, até a criação de paródias e fantasias que deflagrassem a impossibilidade da refletir objetivamente sobre o real na literatura. É importante ressaltar que a observação de Gledson e Granja sobre a tentativa de Machado de reinvenção da verossimilhança artística é fundamental para compreender esses debates nos quais o autor estava inserido.

85

Cf. PEREIRA, Leonardo, ―Introdução‖, in ASSIS, Machado de. História de Quinze Dias; organização, introdução e notas: Leonardo Affonso de Miranda Pereira. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2009, pp.18- 21. Cf. também MAGALHÃES JUNIOR. de. Vida e obra de Machado de Assis, op. cit., p. 184.

86 Leonardo Pereira toma por referência as ―definições clássicas‖ dadas a partir da produção de grandes

cronistas da década de 1860, como José de Alencar e Joaquim Manuel de Macedo, cujos textos eram marcados mais pelo caráter de registro, de comentário ligeiro. Conferir, a título de exemplo, MACEDO, Joaquim Manuel de. Labirinto, Jefferson Cano (org.), Campinas, SP: Mercado de Letras, 2006; e ALENCAR, José de. Ao correr da pena, São Paulo, Martins Fontes, 2006.

87

Para Leonardo Pereira, a adoção de um narrador não confiável, que se afastaria da objetividade do narrador onipresente, definindo um ponto de vista parcial, representava a possibilidade de expressar as tensões e fissuras da sociedade na qual ele se inseria. Através de lacunas e contradições de tais narradores, Machado construiria as tramas de sua ficção. E isso era o que diferenciava as crônicas de Manassés das crônicas publicadas anteriormente por Machado de Assis. Segundo Pereira, ainda que de forma menos explícita e mais fluida do que nos romances, a série ―História de Quinze Dias‖ já fazia da própria perspectiva da narração um elemento de sua prosa. Se Machado não chegava naquele momento a fazê-lo através de um personagem tão desenvolvido e coerente quanto os que apareceriam depois em outros de seus romances e crônicas, os mecanismos narrativos ali adotados iluminam dimensões significativas do desenvolvimento de seu estilo em diferentes gêneros (PEREIRA, Leonardo, ―Introdução‖ in História de quinze dias, op. cit., pp.38-40).

Desde a polêmica sobre O Primo Basílio que essa se tornou, definitivamente, uma questão importante na obra de Machado. Acusado muitas vezes de apego ao modelo romântico, de indiferença em relação às modernas tendências em literatura, Machado provavelmente realizou um esforço contínuo para romper ou, pelo menos, transformar em pauta recorrente, a forma como esses modelos literários tão rígidos pareciam aprisionar a criação artística.

Na década seguinte, Machado dará sequência a essas reflexões sobre a realidade na literatura, radicalizando, entretanto, o seu argumento. Se, para Gledson e Granja, Machado optara pela ficção, pela fantasia nas ―Notas Semanais‖, por uma impossibilidade de descrever a realidade brasileira segundo os modelos científicos e políticos europeus, nas crônicas de ―Balas de Estalo‖, publicadas a partir de 1883, podemos observar que a desconstrução da noção de verdade objetiva serve não só para a literatura, mas também para a discussão sobre a política e a ciência. A colaboração de Machado nessa série sugere que o problema não estava apenas na inadequação dos modelos europeus à realidade brasileira, mas sim no que o autor parecia considerar a verdadeira impostura: a idéia de que essas ―novas idéias‖ científicas eram objetivas e imparciais e não que, como qualquer outro discurso, criavam as suas próprias ―invenções espirituosas‖, com o intuito de atender a interesses particulares. Em ―Balas‖, Machado irá explorar, entre outras coisas, o caráter de retórica que estaria embutido em todos os âmbitos da sociedade, o que, em termos literários, inviabilizaria, ainda mais, o projeto da literatura de aliar-se à ciência com a finalidade de atingir a objetividade necessária para a criação de um romance de análise e de tese imparcial.

Machado, provavelmente, não estava combatendo a simples noção de cópia, fotografia fiel da realidade, coisa que críticos como Sílvio Romero e Araripe Júnior já

haviam feito.88 Também parecia não estar se referindo apenas à idéias de seguir ou não a

―grande teoria da arte‖ ocidental, pautada nos conceitos de verossimilhança. Machado provavelmente se opunha à idéia de que a ciência era a grande responsável pela aproximação mais objetiva da arte com o seu referencial. Com as ―Balas de Estalo‖, o que o autor parece sugerir é que tudo era retórica, inclusive a ciência, argumento enfatizado já na primeira crônica da série, quando o seu personagem, Lélio, escolhe o tema da dosimetria para demonstrar que a ciência também tinha suas contradições, que também era texto e construção. A discussão provavelmente nunca foi apenas estética. Se Machado estava preocupado com os rumos que a forma literária iria tomar a partir do naturalismo, também parece claro que ele estava preocupado com o discurso cientificista que se tornava explicação para tudo, até mesmo para a arte.

Acredito que não tenha sido somente devido à ―meninice social‖ do Brasil que Machado tenha recorrido à ficção e à fantasia em suas crônicas. O exagero, o absurdo, a ―mentira‖ no caso de ―Balas‖ permeia todos os âmbitos sociais. Ela não é privilégio da arte, ela não é a forma que a arte encontrou para descrever e entender a sociedade, ela é parte da realidade. Mentiras não, ―invenções espirituosas‖, ironicamente tratadas em várias crônicas como retórica. Machado escolhe, entre suas diversas referências, um ―mentiroso‖ como

88

Em 1882, Sílvio Romero afirmava: ―É preciso que nos entendamos: eu também suponho ser naturalista, quero também a verdade dos fatos, e é justamente por isto que julgo estreita a fórmula de Zola‖. ―Distingo entre naturalismo e naturalismo... A literatura não é só produto da natureza, não tem por fim descrever as paisagens da terra, ou tirar fotografias do mundo exterior. A literatura é um produto humano, histórico e social, evolutivo das nossas faculdades estéticas, e, com Buckle contra Zola, creio que a história ao lado dos fatores naturais há os fatores mentais neutralizadores da natureza‖. Afirmava que a literatura não era um procedimento matemático e exato, logo, não existiria uma reprodução totalmente isenta e fiel, que seria um erro achar que ―a obra mais bela seria a mais exata‖. Para Romero, era indispensável a introdução do ―elemento humano‖, da cultura que transformava a natureza e a realidade. E concluía: ―Ficamos sempre longe da certeza matemática; temos, porém, ao menos um instrumento de crítica, que pode prestar grandes serviços, impedindo-nos de perder-nos nas fantasias das preocupações sistemáticas‖. Ou seja, cabia, ao literato, através da ciência e da observação, chegar o mais próximo possível da realidade, sem deixar de entender os fenômenos que transformavam essa natureza e a ação do próprio escritor. (Cf. ROMERO, ―O Naturalismo em Literatura‖, op. cit., p.355).

fonte inspiradora para criar mais um narrador que integraria o grupo de ―Balas de Estalo‖. Lélio, um inventor de ―dissimulações‖, mas que, na prática, buscava algumas ―verdades‖ sobre a realidade em que estava inserido. Com isso, não afirmo que Machado, em uma epifania ―pós-modernista‖, estivesse dizendo que a realidade não existia, que o que existia eram apenas discursos sobre o real. Machado provavelmente combatia a fragilidade das falas unânimes e totalizantes da ciência no século XIX. Ele escolhe Lélio para dizer, como o ministro, que tudo podia ser que sim ou que não. Ele enfrenta uma batalha específica contra a aceitação indiscriminada das ―novas idéias‖ pela intelectualidade brasileira, ressaltando que todo conhecimento, toda enunciado era construído a partir de um ponto de vista e que sempre tinha suas lacunas e os seus propósitos. E, sem dúvida, essa é uma das questões centrais no debate travado inclusive com Sílvio Romero. Um debate que não ocorre diretamente, mas que aparecerá na produção literária de Machado de Assis. Em