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Tal como Pantaleão, Colombina e Arlequim, Lélio, o jovem enamorado, era originalmente um dos personagens fixos de um gênero teatral que surgiu no século XVI na Itália e que passou a ser considerado como a primeira manifestação de um teatro profissional: a Commedia dell‘Arte.90 Espetáculos populares cheios de cantos, danças,

acrobacias e mágicas, a Commedia dell‘Arte transformou-se em uma referência para artistas como Molière, Marivaux e Goldoni. Repleta de bufonarias, intrigas amorosas e sátiras sociais91, trupes de artistas, formadas por dez ou doze atores, realizavam

apresentações nas ruas e nos teatros da Itália, Inglaterra, França e Alemanha. De peças feitas a partir do improviso das falas (não havia texto fixo) e de um cenário fixo, surgiam temas, falas e histórias que nunca se repetiam de uma apresentação para a outra. Na

90A Commedia dell‘Arte foi assim considerada por se constituir de companhias formadas, pela primeira vez,

por atores especializados,que se associavam para apresentações regulares de peças de teatro (BARNI, Roberta (Org.); SCALA, Flaminio (Org.). A Loucura de Isabella e outras comédias da Commedia dell'Arte . 1ª. ed. São Paulo: Fapesp - Iluminuras, 2003. v. 1. 409 p. pp.15-50).

91

Cf. LAROUSSE, Pierre. Grand Dictionnaire Universel du XIX e. Siècle. Paris: Administration du Grand Dictionnaire Universel, 1866-1876, tomo IV, p. 711.

Commedia, toda situação dramática sempre podia ser convertida em algo pilhérico. Cada ator, a partir de suas características físicas e suas habilidades, adotava uma personagem, resultando daí uma relação de total simbiose entre o papel representado e aquele que o interpretava.92 Ao estudar os costumes e hábitos de cada tipo social que encarnariam, cabia

também aos atores uma intensa utilização da memória para o sucesso do improviso, uma vez que era preciso saber de cor citações literárias, declarações de amor, sentenças e máximas que pudessem ser acionadas no momento do espetáculo.93

Cada companhia teatral dividia-se em três grupos de personagens, caracterizadas como sínteses arquetipais dos grupos sociais reais: os com dinheiro (homens mais velhos que representavam tipos como o comerciante, o doutor e o capitão), os empregados (chamados de zanni) e os enamorados (jovens que a partir de intrigas amorosas conduziam o espetáculo). Utilizando-se de máscaras – o que permitia aos atores o abandono de suas individualidades – os personagens incorporavam tipos fixos da sociedade italiana da época, satirizando-os pelos seus costumes, suas roupas e suas falas. As ―máscaras reproduziam as características que os italianos atribuíam a cada região do país: o mercador da República de Veneza, o carregador de Bérgamo, o pedante de Bolonha, o apaixonado toscano, o capitão espanhol, italiano ou napolitano‖.94

Entre o grupo dos ricos, Pantalone (ou Pantaleão), era uma das figuras mais constantes da comédia. Representava a burguesia de Veneza, era velho e avarento e, originalmente, surgira como um rico apaixonado que, ao longo dos séculos, foi se tornando um tipo sovina, brusco, pai de família e resmungão. Neste grupo,

92 Alguns atores chegavam mesmo a adotar o nome de seus personagens, como é o caso Giovanni Battista

(1578-1650), filho de Francesco Andreini (1548-1624), ator de sucesso durante o reinado de Luís XIII, ficou conhecido por sua representação de enamorados, assumindo o nome de seu personagem mais famoso, Lelio. (LAROUSSE, op.cit., tomo I, p. 336.)

93 Cf. LAROUSSE, op.cit., p.711. 94

Cf. PANDOLFI, V. La Commedia dell’Arte. Storia e texto,1957-61, 6v. Apud BARNI, Roberta (Org.); SCALA, Flaminio (Org.). A Loucura de Isabella, op.cit., p.22.

havia ainda o Doutor, jurista ou médico, uma personagem extremamente verborrágica, com discurso vazio, empolado e cheio de pedantismo, que ficou conhecido com o nome de Balanzone. Já o grupo dos empregados, ou dos zanni, tem sua origem, de uma forma geral, no grupo real dos empregados de Bérgamo. A pobreza e a falta de trabalho levavam montanheses dos arredores de Bérgamo a descer para as cidades em busca de fortuna, onde se adaptavam aos trabalhos mais pesados. As populações dessas cidades, vendo-se ameaçadas pela concorrência destes trabalhadores, reagiam com hostilidade e zombaria, e aí resultavam representações satíricas sobre eles. Brighella e Arlequim são dois famosos zanni, retratados sempre como espertos, desbocados, desmiolados e de uma sensualidade ―quase infantil‖.95

Os empregados oscilavam entre o binário do esperto e do bobalhão, e sua participação na história era sempre marcada por artimanhas para ajudar ou mesmo driblar o seu amo. Também existiam as criadas femininas e entre as mais famosas estavam Fransceschina, Corallina, Colombina.

Por fim, ―desprovidos de toda a personalidade‖96

, único grupo de personagens a não utilizar máscara na Commmedia dell‘Arte, há os enamorados (ou os innamorati), que não carregavam traços tão marcantes como os outros tipos sociais. Ao ator, cabia ser jovem, elegante e belo para incorporar tal personagem, pois, uma vez que a máscara havia sido dispensada, a beleza deveria ser responsável pelo seu destaque no espetáculo. A introdução do elemento ―real‖ em meio às máscaras teve grande repercussão, representando o maior sucesso desse grupo de personagens junto ao público.97 Dentre os enamorados mais

conhecidos temos Fabrício, Horácio, Flávio, Leandro, Otávio e Lélio. Das apaixonadas

95 Cf. BARNI, op.cit., p.25.

96 Cf. MEYER, Marlyse. As Surpresas do Amor: a convenção no teatro de Marivaux. São Paulo: Edusp,

1992, p.73.

femininas, surgem nomes como Isabella, Lucila, Angélica, Flamínia e Lavínia. Vivendo com seus pais, os enamorados eram sempre ricos, ociosos e expressavam seus sentimentos em monólogos e diálogos afetados, o que exigia dos atores certa instrução literária para recitar de cor versos e canções. Originalmente, esse tipo de personagem não exigia papel central na tradicional Commedia dell‘Arte – com uma participação que servia apenas como pretexto para o início do jogo teatral. Somente nos séculos XVII e XVIII aparecerão mais vezes com o status de personagens principais nas peças de Andreini, Goldoni, Marivaux e Molière.

Lélio, a partir desses séculos, tornou-se, então, sinônimo de uma personagem bela, rica e apaixonada, que se apresentava sempre acompanhado de um valete (zanni), a quem pedia ajuda para conquistar seus amores. Quando frustrado em seus planos, tinha explosões de cólera que lembravam que um dia ele se tornaria também um futuro Pantaleão. Na França, onde a Commedia dell‘Arte começava a concretizar o seu sucesso, Lélio apareceu pela primeira vez na peça Lelio bandito, de Giovanni Battista Andreini em 1620, grande divulgador deste gênero naquele país. Outras nesse mesmo estilo vão surgir, tais como Lelio et Arlequin ravisseurs, Lelio fourbe intrigant e Lelio et Arlequin prisionnier par complaisance98, todas pautadas no improviso e na inexistência de um roteiro escrito.

A consagração deste gênero na França, entretanto, ocorreu como o surgimento de Molière (1622-1673), considerado o mestre da comédia satírica. Suas obras, seguindo o lema ―ridendo castigat mores‖, passaram a criticar profundamente os costumes da época, com peças e farsas, parcialmente escritas, que resgatavam antigos personagens e modelos da Commedia italiana. Em 1660, como um tributo ao gênero, ele estréia a peça Sganarelle ou Le Cocu Imaginaire, que tinha como um de seus personagens Lélio, o clássico

enamorado da Commedia.99 Foi tamanho o sucesso da peça, que Sganarelle tornou-se um

dos personagens mais famosos de Molière, ressurgindo em outras peças como Escola de Maridos (1661), O Casamento Forçado (1664), Dom Juan (1665) e Médico à Força (1666).

Sobrevivendo durante gerações em toda a Europa com suas máscaras e efeitos cômicos, a Commedia dell‘Arte, entretanto, passou por uma grande transformação no século XVIII. Inspirados pelo Iluminismo, os artistas passaram a propor o fim da comédia de enredo, substituindo-a pela comédia de caráter, já que naquele momento parecia importante revelar o homem em suas nuances, sem as suas máscaras sociais. E já no final do século XVIII foram proibidas as comédias não escritas e o improviso. Nesse contexto, o personagem Lélio voltava a aparecer, mas então ganhava novos contornos psicológicos e literários. Ele deixava de ser uma parte secundária na trama, responsável apenas pela condução da intriga amorosa, para tornar-se personagem principal, mais complexo, filosófico, preocupado em discutir os princípios do amor e das relações humanas. É com as peças de Marivaux, La Surprise de l’amour (1722) e Le Prince travesti (1724) que Lélio volta aos palcos franceses. Ao retomar esse tipo consagrado – dos enamorados, ―Marivaux dá-lhes um novo enfoque‖, mas ―conservando-lhe os atributos externos‖.100 A riqueza

corresponderia a uma liberdade social e psicológica, na qual estes heróis ―não ofereceriam complicações que tentariam reproduzir a complexidade da vida real". Sua psicologia teria uma função teatral, sempre movida por sentimentos como ―amor-próprio, ciúme, coquetismo, vaidade, orgulho, pudor, além de certa melancolia nos homens‖.101

Ele

99Lélio também já havia sido personagem da peça L’Etourdi (1653-1655), de Molière. 100 Cf. MEYER, op. cit., p.74.

101

continua sendo jovem, rico e solteiro, ocioso, e sua única preocupação, amar e entender os assuntos do coração. Em 1750, seria a vez de Carlo Goldoni (1707-1793), outro admirador do gênero e das obras de Molière, de se apropriar da personagem Lélio, porém mais uma vez adaptando-a aos novos tempos da comédia. Com a peça Le Menteur, Lélio dos Humildes, jovem, rico, galanteador e um mentiroso convicto, discutirá o princípio das coisas, tentando descobrir as razões e as consequências da mentira. Em um tributo a Molière, Goldoni traz à tona novas críticas aos costumes e hábitos sociais e amplia, mais uma vez, o repertório das questões filosóficas tratadas por Lélio.