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Foi em meio a uma crise política e partidária no império que Machado de Assis entrou para a série ―Balas de Estalo‖. A escolha de Lélio mobilizava não só referências clássicas da literatura humorística, como também acontecimentos políticos contemporâneos à entrada do literato para a série em 2 de julho de 1883. A política nacional, até então o principal tema da série e sempre representada pelos baleiros como farsa ou como espetáculo teatral burlesco, certamente foi a principal inspiração de Machado na escolha desse pseudônimo, que remetia não só ao humor, mas à própria criação do teatro moderno. Em 1958, quando Magalhães Júnior levantou as primeiras hipóteses sobre a escolha do nome Lélio por Machado de Assis, aventou-se a possibilidade de a personagem ter sido recolhida na comédia L’Etourdi, de Molière, escrita em 1655.102 Se observados o contexto

102

―Sob o disfarce do pseudônimo, recolhido nas comédias de Molière, - Lélio que é filho de Pandolfe e namorado de Célia em L’ Etourdi, - versou temas da atualidade política e social, assuntos graves e assuntos

imediato à criação da assinatura e a citação recorrente de Molière nas crônicas de Machado de Assis desde a década de 1860, nas quais este autor foi diversas vezes utilizado e parodiado por Machado para tratar da vida política do império103, tal hipótese tornava-se

bastante plausível. Além disso, Lélio, o estouvado, um apaixonado pela bela escrava Célia, que vendo seus planos de casamento serem ameaçados por seu rival Leandro, pede ajuda ao seu valete Mascarilho na conquista de sua amada, carregava características bastante próximas do narrador criado por Machado de Assis na série ―Balas de Estalo‖. Impulsivo e, principalmente, atrapalhado, tanto na peça quanto na série, ambos se mostravam confusos e perplexos diante dos acontecimentos, o que muitas vezes originava atitudes exageradas e desordenadas, proporcionando o efeito humorístico.104

No entanto, quando olhamos para os acontecimentos políticos mais imediatos à entrada de Machado de Assis para as ―Balas de Estalo‖, percebemos que a referência pode estar sim em Molière, mas não diretamente na peça L’Etourdi, e sim em Sganarelle, escrita em 1660 como um tributo do autor francês à Commedia dell‘Arte. Pouco antes de Machado entrar para a série, Lafayette Rodrigues Pereira, ex-republicano, jurista, homem de letras, escolhido por D. Pedro II para ocupar o cargo de chefe do gabinete de ministros, tinha se tornado notícia na cidade tema de várias crônicas, motivo de discussão nos cafés da cidade e no Parlamento. Ao citar um dos personagens mais famosos de Molière na Câmara dos Deputados, Sganarelle, no dia 19 de junho de 1883, Lafayette causou grande frisson na imprensa carioca. Logo após assumir o cargo de chefe do gabinete de ministros, ao ser interrogado pelo conservador Andrade Figueira, que queria saber se ele manteria as frívolos, em tom sempre faceto e vivaz‖ (ASSIS, Machado de. Crônicas de Lélio, R. Magalhães Jr. (org.), op. cit., 1958, p. 4.

103 Lúcia Granja, ao estudar as crônicas deste autor publicadas no Diário do Rio de Janeiro, na década de

1860, menciona a forma como Molière teria auxiliado Machado de Assis em muitas de suas ironias em relação aos políticos (Granja, op. cit., p.78).

mesmas medidas do governo anterior no que se referia ao projeto sobre a divisão de rendas gerais e provinciais do império - uma questão que havia sido o motivo da queda do ministério anterior -, Lafayette Rodrigues, político liberal, habilidosamente, dizia à Câmara dar uma ―resposta de Sganarelle‖ para a questão: ―Podia ser que sim, podia ser que não‖.105

Causando grande burburinho na Câmara, no dia seguinte à sessão, a citação de Molière ainda ecoava na pauta das discussões dos inimigos do ministério, os quais achavam que a atitude de Lafayette havia sido de cinismo e deboche.106 No debate do dia 20 de junho, o

deputado Fernandes de Oliveira, usando de toda a sua retórica, retomou a questão, dizendo que a escolha de Lafayette só podia ser uma ―caçoada‖, já que este vinha ao Parlamento dar ―respostas de Sganarello (sic)‖.107

Lafayette ficou então conhecido por sua frase ―pode ser que sim, pode ser que não‖, e tornou-se motivo de críticas e chacotas por parte da imprensa, principalmente nas ―Cousas Políticas‖ de Ferreira de Araújo e nas ―Balas de Estalo‖ de Lulu Sênior.

105 ―Darei uma resposta que ao nobre deputado talvez pareça resposta de Sganarello: pode ser que sim, pode

ser que não. Pode ser que sim, se o Governo, depois de estudo refletido, se convencer de que o projeto satisfaz os interesses que se têm em vista; pode ser que não, se o Governo se convencer de que o projeto é imperfeito; em tal caso organizará outro em harmonia com as suas vistas, e este será presente ao Parlamento‖, discursou Lafayette Rodrigues Pereira na Câmara dos Deputados. (Cf. Sessão em 19 de junho de 1883, APB-CD, vol.II, pp. 23 e 24).

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A fala de Lafayette, citando Sganarelle de Molière, tornou-se parte da biografia do ex-ministro, como podemos observar no discurso feito por Alfredo Pujol no dia de sua posse na Academia Brasileira de Letras. Pujol, terceiro ocupante da Cadeira 23, eleito em 14 de novembro de 1917, sucedeu Lafayette Rodrigues Pereira e foi recebido em 23 de julho de 1919 pelo Acadêmico Pedro Lessa. Em seu discurso, Pujol lembrou a citação de Molière por Lafayette feita na câmara dos deputados. Segundo Pujol: ―A frase de Lafayette – pode ser que sim, pode ser que não, foi depois repetida, e até hoje se repete, como solução evasiva de escapula e arteirice, para conjurar situações embaraçadas, suspeitas ou equívocas. Foi, aliás, neste sentido que astuciosamente a proferiu o personagem de Molière, quando lhe perguntam se é ele que se chama Sganarello: ―Oui et non, selon ce que vous lui voulez.‖ Mas a resposta de Lafayette não tem o ardil nem a malícia de Sganarello. Valeu-lhe, não obstante, por todo o resto da sua vida, e ainda depois da sua morte, a reputação de um espírito dissimulado, tortuoso e maligno. – É o homem das ―soluções oblíquas‖, do ―pode ser que sim, pode ser que não‖, de ―uma vela a Deus e outra ao diabo‖, dizia-se dele, a cada passo, nos jornais. Consolava- o a lição da história apontando-lhe o exemplo de Emile Ollivier, perdido para sempre por uma palavra inocente, maldosamente interpretada, e o de Guizot, a quem adversários atribuíram um conselho imoral aos seus eleitores, mutilando-lhe perversamente um discurso. (Cf. PUJOL, Alfredo. Discurso do Sr. Alfredo Pujol. Disponível em: <http://www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=8415&sid=242>. Acesso em: 19 dez. 2009.

Sganarelle, como já foi dito, apareceu em várias das peças do dramaturgo francês, sendo interpretado, na maioria das vezes, pelo próprio Molière. Ele foi personagem das peças Le Médecin Volant (1645), Sganarelle ou Le Cocu Imaginaire (1660), L’École des maris (1661), L’Amour médecin (1665) , Le médecin malgré lui (1666) e Le mariage forcée (1672). Em algumas destas peças Sganarelle aparece como o impostor, o falso médico, que ao ser indagado sobre a cura da doença, apresentava um diagnóstico retórico, que não oferecia informações de fato, que continha um discurso que circulava sempre em torno de si mesmo, que prescrevia remédios puramente inventados, sempre a proferir obviedades.108

No caso do discurso de Lafayette, tudo levava a crer que o Sganarelle citado era o personagem central da peça Le médecin malgré lui. Sganarelle era um lenhador, que após brigar com sua esposa, se vê obrigado a fingir-se de médico para curar a filha de um homem rico. Ao mesmo tempo em que se tornara ―médico à força‖, arranjava tempo para se envolver com a ama de leite da casa e ajudar no amor de um casal de jovens separados pelas convenções sociais. Típico personagem da Commedia dell'Arte, ao mesmo tempo em que ajudava os jovens apaixonados, tentava tirar vantagem de todos. Na cena V, ato I, ao ser indagado por Valére sobre o seu verdadeiro nome, respondia Sganarelle: ―Oui et non, selon ce que vous lui voulez‖. A pluralidade de peças com a mesma personagem causara, entretanto, breve confusão no Parlamento, o que estende ainda mais a discussão na imprensa, como podemos ver na crônica de Lulu Sênior:

Os barões de hoje, por serviços prestados ao Estado, com escala pela rua do Sacramento, não te ouvem e não te leem, truão. Um deputado moço, (...), disse em um arrebatamento de eloquência e erudição – que Sganarello (sic) é um Tartufo, é um truão. E sabes o que lhe

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Cf., por exemplo, as peças Le Médecin volant e Le médecin malgré lui. Cf. também análise dessa personagem nas crônicas de Machado de Assis em GRANJA, op. cit., p. 89.

responderam? – Apoiado! (...) não é indispensável conhecer-te a ti, (...), mas também sei que, se um deputado brasileiro pode passar sem conhecer-te, ainda passa melhor não citando sem te conhecer. (...) O ministro que respondeu com as palavras do filho da tua observação, podia ter-se comparado melhor a um dos teus Sganarellos (sic), dizendo que era presidente do conselho como ele fora médico: - à força. Mas a impressão geral parece que foi que o homem tinha tido a idéia de comparar-se àquele dos teus Sganarellos, que constitui na tua obra a família lamentável de que é chefe Georges Dandin, Qui l’a voulu; nem ao menos, a digna promotoria lhe concedeu a circunstância atenuante de dizer como o do Médecin volant, que o seu nome de Sganarelle seria trocado pelo de Cornelius.

Lulu Sênior aproveita-se desta crônica não só para criticar o uso superficial e equivocado de Molière na Câmara, mas para definir Lafayette por meio da obra do autor, comparando-o ao falso médico. Sganarello não era um Tartufo, com dizia o nobre deputado, mas estava mais para O médico à força, ou ainda para ministro ―por acaso‖, como sugerira Araújo em sua coluna. A comparação que o cronista faz do ministro com Georges Dandin, umas das personagens centrais da peça O Marido da Fidalga109, também

não parecia fortuita. Dandin é um camponês rico que se casa com uma mulher de origem nobre e, ao desconfiar da traição da esposa, percebe o grande equívoco que cometeu ao casar-se com alguém de origem social tão diferente e arrepende-se da união. Ao longo da peça, evidencia-se a dificuldade que ele encontra de adentrar esse mundo da fidalguia, começando pela própria impossibilidade de diálogo com seus sogros, nobres de origem, distantes do mundo burguês de Dandin. Para Lulu Sênior, Lafayette, assim como o marido traído pela fidalga, cometeu um grande engano ao ingressar num mundo do qual há tempos conservara-se distante e pelo qual nunca havia feito nada. Ex-republicano, Lafayette, aos

109

Cf. MOLIÈRE, A Escola de Maridos; O Marido da Fidalga; Tradução de Jenny Klabin Segal. São Paulo: Irmãos Pongetti, 1937.

olhos de Lulu Sênior, regressava aos braços da monarquia contrariando seus atos passados apenas pelo poder de ser chefe do gabinete de ministros. Ao final da crônica, Lulu Sênior, ainda insistindo nas incoerências da política nacional, faz uma pequena confusão – certamente proposital – entre as peças de Molière, embaralhando personagens como Dandin e os Sganarelles de duas peças diferentes (O médico à força e O corno imaginário), com o fim de obter um efeito cômico ao reproduzir as citações feitas na Câmara dos Deputados.

Ao que tudo indica, em 2 de julho de 1883, quando entrou para a série, Machado de Assis também deu sequência à brincadeira de Lulu Sênior ao escolher Lélio como pseudônimo. A referência, que poderia não ser tão óbvia para a maioria do público leitor, certamente não passou despercebida por seus amigos literatos. Para incorporar as discussões que vinham sendo feitas na série pouco antes de sua entrada, para manter o compromisso com o humor e com a política como tema central, Machado escolhia Lélio, uma das personagens da peça Sganarelle ou o corno imaginário, de Molière, fazendo uma óbvia referência ao episódio do ministro Lafayette. No entanto, tal como Lulu Sênior, ou como os nobres senhores deputados, sua escolha também será fruto de uma pequena ―confusão‖ literária, uma vez que a peça escolhida não era exatamente aquela a que Lafayette havia se referido na Câmara. A peça escolhida por Machado trazia um Sganarelle que não era um impostor, um falso médico que dava as famosas respostas retóricas. Lélio de Machado provavelmente foi retirado de uma peça que contava a história de um marido – Sganarelle - que acreditava estar sendo traído por sua esposa com um jovem galanteador - Lélio -, que na realidade era namorado de Célia, a filha de um burguês de Paris. Depois de muitas confusões, somente no final da peça Sganarelle descobre que tudo não havia

passado de um mal entendido iniciado por sua esposa, e que ele havia sido apenas um ―corno imaginário‖.110

Machado de Assis, ao escolher Lélio fazia, provavelmente, uma referência indireta ao episódio de Lafayette e partilhava da piada do momento, confirmando seu compromisso com o trabalho coletivo realizado na série. Parecia importante entrar para a série e já imediatamente fazer parte do debate. A escolha do pseudônimo, longe de representar o anonimato, delimitava a participação do literato na coluna e demonstrava suas intenções ao inserir-se no grupo. A insistência na brincadeira sobre Lafayette revelava também quais seriam alguns dos eixos temáticos que permeariam muitos de seus textos, tais como a teatralidade da política e a retórica por trás dos discursos oficiais, fossem políticos, científicos ou quaisquer outros. Lélio falaria dos absurdos cotidianos cometidos no mundo da política e das invenções e das contradições criadas por aqueles que queriam se manter no controle do país, tal como fazia o falso médico de Molière, personagem que originalmente tinha sido citado por Lafayette. Ao errar propositalmente a peça do dramaturgo francês, ao escolher Lélio e não Sganarelle para ser seu narrador, Machado de Assis tornava sua citação mais cifrada, indicando que, apesar do esforço para se enquadrar na proposta geral da série e no contexto político na qual ela se inseria, haveria um esforço, por parte do autor, de criar outros significados para sua participação, mais individualizados, diferenciando-se, em parte, do formato coletivo de ―Balas‖.

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Embora a escolha de Lélio não fosse uma referência direta à peça de Molière citada por Lafayete, segundo Eliane Fernanda Cunha Ferreira, Machado de Assis, por outro lado, citou diretamente a peça ―Le médecin malgré lui‖, de Molière, em diversos textos, o que demonstra, certamente, o interesse do autor por essa peça do escritor francês. Le médecin malgré lui apareceu no conto ―Capítulo dos chapéus‖, no qual um diálogo da peça serviu de epígrafe; em crônica de 14 de agosto de 1864, escrita para o Diário do Rio de Janeiro, para satirizar o ministro Zacarias; em crônica de 02 de fevereiro de 1873, escrita para a Semana Ilustrada e assinada pelo ―Dr. Semana‖, com o mesmo título do conto; em 22 de setembro de 1886, sob o pseudônimo João das Regras; e, finalmente, em ―Bons Dias!‖, no dia 11 de maio de 1888, em uma crônica na qual Policarpo relatava as discussões sobre a lei de abolição (cf. FERREIRA, Eliane Fernanda Cunha. Para traduzir o século XIX: Machado de Assis. São Paulo: Annabume; Rio de Janeiro: ABL, 2004, 208p., pp. 114- 120).

Se desde a primeira crônica, ―Balas de Estalo‖ havia se configurado como uma série que fazia sistematicamente comentários sobre os pequenos absurdos do cotidiano, Machado de Assis, ou Lélio, já na primeira crônica mostrava que era possível ir além. Embora realizasse esse exercício de comentar acontecimentos inusitados, pequenos fatos disparatados publicados no jornal, ditos na Câmara, nas ruas, seguindo o princípio criado por ele mesmo de ―pour un comble, voilá un comble‖ 111, como anunciou na crônica de 9

de setembro de 1884, Lélio parecia buscar as tais ―pérolas‖ um pouco mais fundo, indo atrás dos princípios das coisas, das contradições e absurdos mais estruturais dos acontecimentos, que nem sempre ficavam tão óbvios aos leitores ou mesmo eram discutidos pelos outros cronistas. Lélio, acusado por um amigo de rir de tudo, respondia, em crônica de 26 de janeiro de 1885, que havia pessoas que não sabiam, ou não se lembravam de raspar o que havia dentro da ―casca do riso‖, de encontrar o que estava por trás da piada. Dizia ainda, na crônica de 26 de fevereiro de 1885, que ele descia ―ao fundo das coisas‖ para melhor compreendê-las, que as idéias eram como nozes e que ele, Lélio, até então não havia descoberto melhor processo para saber o que estava dentro, senão quebrando-as.112 Não foi à toa que Lélio passou a ser citado pelos outros cronistas do grupo

como o filósofo das ―Balas‖.

Mesmo não tendo apresentado um programa formal sobre a sua participação na série, já em sua primeira bala, Lélio anunciava, de uma forma geral, onde iria procurar as ―pérolas‖ do cotidiano imperial. Foi assim que, no dia 2 de julho de 1883113

, comentou a inauguração de enfermaria dosimétrica na Sociedade Portuguesa de Beneficência no Rio de Janeiro. ―Não basta abrir enfermarias; é útil explicá-las‖, afirmava o cronista a respeito do

111 Cf. Lélio, ―Balas de Estalo‖, 09/09/1884. 112

Cf. Lélio, ―Balas de Estalo‖, 03/04/1885.

novo sistema terapêutico criado por Borggraeve na penúltima década do século XIX e que tinha ganhado espaço institucionalizado dentro do hospital: a dosimetria. Um sistema que defendia a utilização exclusiva de substâncias ativas e puras, tomadas em grânulos e, principalmente, em doses exatas. Estava dada a bala de estalo: se a dosimetria queria dizer que ―os remédios dados em doses exatas e puras‖ curavam ―melhor ou mais radicalmente, ou mais depressa‖, seria ―grande crueza privar os restantes enfermos de tão excelso benefício‖. Para Lélio, ―uns ficariam meio curados, ou mal curados‖, outros sairiam dali ―lestos e pimpões‖. O acontecimento em si, a abertura da enfermaria, não se configurava como um acontecimento absurdo ou merecedor de uma bala de estalo. O que incomodava o baleiro filósofo, entretanto, era a existência de um princípio contraditório embutido na própria definição da ciência dosimétrica. Tratada como uma evolução da medicina, uma nova descoberta para a cura de doenças, Lélio ressaltava que, apesar de trazer o nome de ―nascença‖, de parecer natural, a dosimetria precisava ser discutida, compreendida. Reconhecendo a liberdade do paciente em escolher entre a alopatia e a homeopatia, ―porque são dois sistemas – ou duas escolas‖, afirmava que a dosimetria, sendo a ―perfeita composição dos remédios‖, não dava ao doente a possibilidade de ―medicar-se mal‖. Ao contrário, cabia ao paciente apenas o ―velho grito muçulmano‖ de ―crê ou morre‖. Extrapolando a argumentação, Lélio dizia que a dosimetria deveria considerar, ao menos, o uso de ambos os modos, ―as doses bem medidas e as doses mal medidas‖, o que melhor explicaria a criação da enfermaria. Uma vez que não encontra solução para o problema, concluirá que a dosimetria era uma ―religião‖ que ainda não se encontrava no tempo de ―ter hereges nem cismáticos‖, mas sim no das ―primeiras pescas de doentes‖. Pedia à Beneficência que atendesse aos seus ―conselhos‖ e não negasse a cem doentes ―o que tão liberalmente‖ distribuía a sete ou quinze. ―Que o semelhante cure ao semelhante, ou o

contrário ao contrário, são afirmações que se excluem: mas, contrário ou semelhante, é de rigor que as doses sejam as mesmas‖, dizia ele.

A contradição transforma-se em questão de princípios. Seria permitido, seria científico, medicar-se mal? Como se explicaria um sistema de cura que parte do pressuposto que os outros tratamentos administram substâncias impuras e inexatas aos doentes? Se a dosimetria não conseguia explicar-se a si própria, teria ela então que ser tomada pelos pacientes como um ato de fé? ―Crê ou morre‖, é o que conclui o narrador. Mas ciência e religião não seriam também, em princípio, contraditórias? Depois de percorrer a crônica, descobrimos que a ciência é a bala de estalo de sua primeira