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“Viver a distopia?”: modernidade - pós-modernidade - espaço público: narrativas literárias e fílmicas

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS URBANOS E REGIONAIS CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

DEPARTAMENTO DE POLÍTICAS PÚBLICAS

THAIS DOS SANTOS VIEIRA GABI DE MACEDO

“VIVER A DISTOPIA?”:

Modernidade – Pós-modernidade – Espaço Público: narrativas literárias e fílmicas

NATAL/RN 2019

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THAIS DOS SANTOS VIEIRA GABI DE MACEDO

“VIVER A DISTOPIA?”:

Modernidade – Pós-modernidade – Espaço Público: narrativas literárias e fílmicas

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Estudos Urbanos e Regionais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito parcial para obtenção do título de mestre.

Orientador: Prof. Dr. Márcio Moraes Valença

Natal/RN 2019

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Agradecimentos

Agradeço, celebro e exalto a vida. Agradeço a possibilidade de dizer sim, todos os dias e eternamente, à vida, buscando e encontrando beleza e consolação, ainda que na transitoriedade. Celebro a oportunidade de experienciar a vida e descobrir na arte, na música e na poesia, genuíno deleite que inunda o coração. Exalto, sobretudo, seu mistério, que nos permite encontrar novos caminhos que levam à contínua descoberta de nós mesmos.

Sou grata à minha mãe, Rachel, que dedicou-se inteiramente no árduo trabalho de criar, educar e amar seus filhos, sempre buscando superar as (não poucas) dificuldades que incidem sobre a vida e, ainda assim, manter vivos os seus sonhos. Você foi o primeiro grande exemplo de força feminina que eu conheci. Obrigada. E ao meu pai, Gabi, meu primeiro professor, incentivador e alicerce de amor e carinho. Ambos têm a minha admiração e o meu sincero agradecimento.

Aos meus irmãos. Danielle, pelos cuidados e afeto destinados a mim desde muito cedo. Thiago, obrigada pelas trocas (embora eu mais aprenda com você do que o contrário), é um privilégio tê-lo como meu irmão. Sua inteligência perspicaz e sua sensibilidade foram fundamentais para a minha formação humana. Gabriel, obrigada por ser o nosso exemplo de dedicação, responsabilidade e empenho em tudo o que faz. Tenho muita admiração por você. Augusto, obrigada pelo seu grande coração, que está sempre voltado para a sua família. Gabriela, nossa caçula que cresceu e se transformou em uma mulher extraordinária, cheia de vida! Obrigada por se manter presente na distância. Estamos unidas por laços intransponíveis. Amo todos vocês. Agradeço também aos demais familiares Vieira e Macedo, especialmente, Lais, Júlia e Jessika Gabrielle. E à Ingrid Frutuoso, que é a irmã que eu escolhi para compartilhar a vida. Tenho orgulho de você e da nossa sólida amizade ao longo desses dez anos. Márcio, meu orientador querido. Este trabalho, desde a ideia inicial, quando ainda não sabíamos no que iria se tornar, tem o seu quinhão, seu suporte e seu incentivo. Você me ensinou muitas coisas ao longo dos últimos anos, dentre elas, a ser tocada “pelo mosquitinho da vida acadêmica”, como você bem disse certa vez, e a me apaixonar pela minha pesquisa, que, graças à você, une duas das coisas que conferem sentido à vida: a arte, no geral, e o cinema e a literatura, em particular. Por ser sempre tão meticuloso e atento não só à pesquisa acadêmica, mas em tudo o que faz; pelas prazeroas conversas (nem sempre relacionadas à pesquisa, muitas vezes ligadas a viagens, lugares, música, livros e filmes); pela compreensão paciente e carinhosa, e por sua humanidade: muito obrigada!

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Claudio, a quem tive o prazer de conhecer e assistir às suas aulas, nas quais suscitavam-se discussões instigantes acerca do trabalho, cidadania, entre outras questões, logo no início do curso de Gestão de Políticas Públicas. Suas aulas se diferenciavam pelas referências trazidas por meio de filmes, documentários e livros, e logo me fisgaram como tímida-aluna-curiosa. Obrigada. Você aferiu valor fundamental na minha formação, tanto na graduação, quanto na pós-graduação. Graças à sua leitura cuidadosa, trazendo críticas pertinentes na qualificação e indicações de diferentes obras, abriram-se novas percepções enriquecedoras para este trabalho. Agradeço ao meu companheiro e melhor amigo, Ramon. Minha admiração por você é um dos meus maiores incentivos. Sou grata pelos abraços reconfortantes, e pelas conversas estimulantes, nas quais me inspiro e aprendo. Pelos encontros, que aumentam potência, pelas rotas de fuga traçadas juntos, por seu amor e generosidade, obrigada.

Por fim, estendo meus agradecimentos ao Programa de pós-graduação em Estudos Urbanos e Regionais, aos colegas do grupo de pesquisa Estúdio Conceito, pelas enriquecedoras discussões e contribuições durante os últimos anos. Aprendo muito com vocês. Em especial, Júlia Dombroski, por sua solicitude ao aceitar realizar a arte na capa desde trabalho. Obrigada.

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RESUMO

Os caminhos nebulosos e tortuosos pelos quais ascendeu e frutificou a modernidade são também rastros que justificam a dificuldade de situar a sua origem na história do mundo. Ao se desenvolver e avançar pela Europa, a era moderna se difundiu de maneira diferente e em períodos distintos entre os países. Não obstante, consensualmente, ela ficou marcada em função de três grandes acontecimentos: a Reforma Protestante, o Iluminismo e a Revolução Francesa, esses eventos constituem a base estrutural da formação do capitalismo. Considerado, neste trabalho, em ampla perspectiva, o espaço público é o foco catalisador de tais transformações. O indivíduo, que antes se orientava por meio da tradição e da religião, bem como por sua relação direta com a natureza, perdeu suas garantias para se conduzir e passou a contar com novas interpretações das experiências cotidianas. Partindo da concepção de que os sujeitos são formados e formam seu meio, na modernidade, a monetarização das relações teve ressonância nas mais diversas interações sociais. Essas transformações ganham novas significações na pós-modernidade, que, sob o ponto de vista da economia política, pode ser situada na transição do fordismo para a acumulação flexível do capital. Nessa perspectiva, este trabalho busca investigar as transformações ocorridas no espaço público, que se estendem desde a modernidade até a pós-modernidade, procurando compreender as maneiras pelas quais as modificações econômicas, políticas, sociais e culturais afetaram a vida social urbana. Metodologicamente, pretende-se articular os conceitos teóricos apreendidos como base para categorias de análise de obras literárias e cinematográficas específicas. Sendo assim, é na perspectiva de compreender as modificações que ocorreram e ocorrem no espaço público na modernidade e na pós-modernidade, a partir de conceitos contemporâneos, de maneira analítica e dialética, que esta pesquisa avança.

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SUMÁRIO

LISTA DE QUADROS ... ix

LISTA DE IMAGENS ... x

NÃO HÁ INTRODUÇÃO... ... 11

UMA NOTA METODOLÓGICA... 12

1 A MODERNIDADE ... 14

1.1 O Discreto Charme da Burguesia: encenando papéis na Sociedade do Consumo ... 25

1.2 Formulando a Pós-modernidade ... 38

1.3 Transformações urbanas no capitalismo do século XX: New York, New York ... 40

1.4 Pós-modernismo: aspectos culturais da sociedade do simulacro ... 51

2 “O QUE ESTÁ POR VIR”: características-chave da Modernidade e da Pós-modernidade . 61 2.1 A Decadência de Uma Espécie: discutindo as transformações no Espaço Público ... 72

3 “FACES DA MODERNIDADE?”: ... 126

NÃO HÁ CONCLUSÃO... ... 146

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LISTA DE QUADROS

Quadro 1 – Categorias de análise ... 64 Quadro 2 – Literatura e cinema ... 76

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LISTA DE IMAGENS Imagem 1 ... 31 Imagem 2 ... 69 Imagem 3 ... 69 Imagem 4 ... 74 Imagem 5 ... 74 Imagem 6 ... 85 Imagem 7 ... 86 Imagem 8 ... 96 Imagem 9 ... 96 Imagem 10 ... 98 Imagem 11 ... 99 Imagem 12 ... 99 Imagem 13 ... 100 Imagem 14 ... 101 Imagem 15 ... 101 Imagem 16 ... 108 Imagem 17 ... 123 Imagem 18 ... 123 Imagem 19 ... 128 Imagem 20 ... 129

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UMA NOTA METODOLÓGICA

Com tudo escreve-se uma narrativa. Escreve-se com a beleza encontrada nas frestas da ligeireza do viver cotidiano, assim como faz Paterson1 em seus poemas, e escreve-se com a memória errante das experiências individuais, que se misturam com os grandes eventos da história. É o caso de Jake, protagonista de O Sol Também se Levanta2. Escreve-se porque,

muitas vezes, se é impelido a isso, pela força nascida da necessidade de traduzir os receios em palavras que, quando encontram-se com outras, transformam um sentimento individual em pensamento universal, comum a todos. Às vezes, escreve-se em forma de imagens que, juntas, viram uma narrativa fílmica, como “um modo divino de contar a vida”, como disse Felinni.

Esta pesquisa é composta, fundamentalmente, por histórias, narrativas que encontram seu lugar comum nas grandes cidades que, aqui, se apresentam multifacetadas. A fim de respeitar os critérios de clareza, exequibilidade e pertinência defendidos por Quivy e Campenhoudt (2008), para a pesquisa científica, formulou-se a seguinte questão: de que modo as transformações no espaço público da modernidade à pós-modernidade se manifestam, na literatura e no cinema, em um “desencantamento” do mundo? Desse modo, a pesquisa consiste, sinteticamente, em compreender o papel do espaço público, a partir da literatura e cinema, nas transformações políticas, econômicas, sociais e culturais na transição da modernidade para a pós-modernidade, primeiro no estabelecimento e na consolidação do espaço público, até o seu “declínio”, com base em um aporte teórico que abrange autores clássicos da economia política, filosofia e sociologia De maneira mais específica, pretende-se estabelecer, analisando-se uma seleção de textos de reconhecidos autores intérpretes da modernidade e da pós-modernidade, categorias de análise, as quais darão suporte ao terceiro capítulo, com minúcias das obras selecionadas. E também, procura-se articular e analisar os temas e conceitos, referentes às categorias analíticas estabelecidas a partir da leitura dos textos dos intérpretes mencionados, nas obras literárias e cinematográficas escolhidas, de maneira a averiguar as obras selecionadas como perspectivas das transformações do espaço público e suas reverberações na vida urbana e nas relações sociais.

Para realizar este estudo, de modo a responder à questão que move esta pesquisa e

1Paterson é um filme de 2016, do diretor norte-americano Jim Jarmusch, e narra a história de Patterson, um motorista de caminhão que encontra beleza e poesia na simplicidade do cotidiano.

2O sol também se levanta, publicado em 1926, é um romance escrito por Ernest Hemingway de forte teor autobiográfico. O romance se passa entre a França e a Espanha sob o olhar e as experiências de Jake, marcado pela participação na guerra civil espanhola.

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alcançar todos os objetivos intencionados, realizou-se uma pesquisa bibliográfica de autores modernos e contemporâneos, em vários campos do saber, que discutem os conceitos de modernidade e pós-modernidade. A organização e a seleção das fontes foram realizadas por meio de fichamentos de livros e artigos. A partir disso, inicialmente, estabeleceu-se a discussão desses diversos autores com o objetivo de utilizar seus conceitos a fim de construir as bases para o estabelecimento das categorias de análise, que ocorreu em seguida. São elas:

transformações dos aspectos físicos urbanos, padronização do estilo de vida, economia política, sensação de deslocamento temporal, comportamento social no espaço público, relação com o mercado, e Estado como fomentador. Ainda neste capítulo, descreveu-se o

resumo das obras, buscando relacioná-las, secundariamente, com as categorias de análise. Tais categorias de análise formam os parâmetros pelos quais sucedeu-se a interpretação e análise das obras literárias e fílmicas selecionadas, que constituem-se na modernidade, pela literatura de Kafka, mediante três romances: A Metamorfose (2006a), O

Processo (2003) e O Castelo (2006b). Em paralelo, ainda no âmbito da modernidade, o filme

inspirado na obra de Kafka, O Processo (1962), dirigido por Orson Welles, e três produções do Jacques Tati, Meu Tio (1958), Playtime: tempos de diversão (1967), e Traffic: as aventuras do

M. Hulot no tráfego louco (1971). Em uma espécie de transição da modernidade para a

pós-modernidade, tem-se três obras de ficção científica de Philip K. Dick, os contos Minority Report (2012 [1953]) e Lembramos para você a preço de atacado (2012 [1966]), e o romance

Androides Sonham com Ovelhas Elétricas? (2014 [1968]) e os filmes pós-modernos adaptados

da obra de Philip K. Dick, Minority Report – A Nova Lei (2002), O vingador do futuro (2012), e Blade Runner (1982), respectivamente. Irão completar o conjunto de obras da ficção científica pós-moderna, Matrix (1999), no cinema, e A cidade e a cidade (2014), na literatura. Já no terceiro capítulo, tem-se, então, uma discussão mais aprofundada sobre as categorias, utilizando-se dos exemplos das obras literárias e fílmicas, para formular as ideias e narrativa finais desta pesquisa.

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1 A MODERNIDADE

La originalidad consiste en volver al origen.

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Os caminhos nebulosos e tortuosos pelos quais ascendeu e frutificou a modernidade, são também rastros que justificam a dificuldade de situar a sua origem na história do mundo. Ao se desenvolver e avançar pela Europa, a era moderna se difundiu de maneira diferente e em períodos distintos entre os países. Desbravando as tradições da vida moderna, Marshall Berman, em sua obra célebre, Tudo que é sólido desmancha no ar (2007 [1982]), situa o princípio da modernidade há cerca de cinco séculos. Consensualmente, demarca-se a modernidade em virtude de três eventos históricos: a Reforma Protestante, o Iluminismo e a Revolução Francesa. Se a modernidade remonta, então, ao século XVI, e suas reverberações são experimentadas até os dias atuais, como um projeto inacabado, como disse Habermas, é correto afirmar que se trata de um fenômeno absolutamente multifacetado.

Nessa perspectiva, compreender como se deu a transição do mundo Antigo para a modernidade, quais elementos foram transportados e como a vida urbana cresceu e se desenvolveu transformando o próprio indivíduo nesse processo, possibilita um deslocamento no tempo para visitar o mundo ao qual alguns conceitos-chave se referem. Em decorrência disso, surgirão, lá atrás, questões significativas que constituem muitas das inquietações da própria contemporaneidade.

No livro A condição humana (2007 [1958]), Hannah Arendt realiza um estudo elaborado a respeito, entre outras coisas, das transformações nas esferas pública e privada e da ascensão da esfera social. Ela também busca compreender as origens da alienação na vida moderna. A autora aponta uma sobreposição do ativo (várias formas de engajamento ativo nas coisas desse mundo) sobre o contemplativo e, com isso, lança luz sobre importantes caminhos que estariam sendo traçados na era moderna. No pensamento arendtiano, a sobreposição do ativo em relação ao contemplativo é inerente ao surgimento do que a autora denomina de homo

faber, aquele que fabrica manualmente os instrumentos, quem produz o mundo por meio do seu

trabalho. Com esse novo tipo de indivíduo, nasce também a convicção de que qualquer motivação humana pode ser reduzida à ideia de utilidade, ou seja, o pensamento está diretamente ligado ao propósito de fabricar objetos. A palavra perdeu seu valor. Tudo passa a ter uma utilidade. “A era moderna denunciou a inutilidade da ação e do discurso e esteve preocupada com produtos tangíveis e lucros” (ARENDT, 2007, p. 232). Sendo assim, a substituição da ação pela fabricação demonstraria também a incapacidade do indivíduo de inserir sua identidade e se apresentar ao mundo. Aqui, Arendt (2007) está apontando para um declínio da capacidade de pensar e da própria linguagem.

A linguagem, para muitos filósofos, ocupa posição central nas reflexões sobre a vida humana. Em suas ideias, Aristóteles defende que apenas o ser humano é um “animal político”

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(social e cívico), pois só o indivíduo é provido de linguagem. Já para o pensamento rousseauriano, a linguagem é advinda da necessidade de a pessoa de se comunicar. A perda do discurso por meio da linguagem é assinalada por Heidegger, em Ser e Tempo (2006[1927]), com a elaboração de uma nova ontologia. Ele defende que, para que o ser (essência) possa se revelar, é necessário um ente (tudo que pode ser percebido pelos sentidos, tudo que existe no espaço e tempo e também aquilo que somos e o modo de sê-lo) capaz de notá-lo e o único ente que possui essa capacidade é o indivíduo, o “ser-aí”. O indivíduo é o ente que existe enquanto os outros entes apenas são. Para Heidegger (2006 [1927]), quando o homem está atento ao chamado do ser, vive na realidade e, sendo livre (por meio do ato de pensar), pode escolher assumir seu ser e sua linguagem demonstrará seu modo de ser.

No entanto, há o risco de o homem se afastar de seu ser, o que o leva a um apego maior pelos entes. Se isso ocorre, o indivíduo passa a viver sob a lógica do impessoal (a gente, os outros, todo mundo, eles), sendo sua linguagem um sintoma dessa queda, pois restringe-se a uma comunicação vazia, à ambiguidade, encobridores do verdadeiro sentido do ser. Nessa perspectiva, a ciência e a técnica são ocultadoras da questão do ser, porque objetivam sempre os entes (a ciência e a técnica). A questão aqui exposta por Heidegger (2006 [1927]) é a de que a técnica moderna não é mais um instrumento na mão do homem e talvez seja o contrário.

As complexidades que envolvem a questão da técnica podem ser observadas na imersão que Marshall Berman (2007) realiza na obra O Fausto, de Goethe, denominando-a de “A tragédia do desenvolvimento”. Entende muito bem a grandeza presente na produção de Goethe. Para Berman, O Fausto é considerado uma das mais importantes obras-primas da modernidade. Foi escrito em dois períodos e acompanhou Goethe durante boa parte de sua vida, desde meados de 1770, até pouco antes de o escritor falecer, em 1832, sendo publicado apenas postumamente. Nessa perspectiva, os personagens de Goethe assumem com bastante intensidade as inquietações e dramas que viveu o próprio autor e que circundavam a turbulenta vida moderna. O Fausto é um mergulho nas contradições de todo um movimento da sociedade ocidental cujos pensamentos são modernos, mas as condições materiais e sociais são, ainda, medievais. Portanto, a figura do Fausto representa o desejo pelo desenvolvimento, que para Goethe deveria se dar por meio da junção entre crescimento econômico e evolução cultural.

A história do Fausto se divide em três momentos importantes, as três metamorfoses do protagonista. A primeira metamorfose é denominada de O Sonhador, período no qual o personagem está à beira do suicídio quando clama pelos “poderes ocultos”, que mais tarde entenderemos tratar-se da personificação do dinheiro, ou do empresário capitalista, aquilo que torna possível a transformação do Fausto. Nesse momento, o protagonista vislumbra tudo que

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ele pode transformar; todos os anseios de desenvolvimento são, aqui, invocados. Na segunda metamorfose, O Amador, tem-se o Fausto que vivencia a decadência de um mundo medieval que a burguesia põe abaixo. Entretanto, esse processo não se dá por inteiro, são dois universos coexistindo com todas as implicações que isso pode desencadear. Nem todos vivem a modernidade, ela não atinge o mundo do Fausto de maneira uniforme e a personagem da Gretchen, por quem Fausto se apaixona, é a prova disso: ela é a representação e a memória, os costumes e os valores, mas também a beleza do mundo antigo para o Fausto. A terceira metamorfose é nomeada de O Fomentador. Aqui, as forças políticas, econômicas e sociais são reunidas. É o momento da divisão social do trabalho, dos grandes feitos gerados pela burguesia industrial, da força assustadora da organização industrial, visionária, sistemática e intensa. “O objetivo é passar por cima de tudo e todos, todas as barreiras humanas e naturais caem diante da corrida pela construção e produção” (BERMAN, 2007, p. 63).

A metáfora das metamorfoses representa, assim, a reconfiguração da vida social para se adaptar a um novo momento. Trata-se da ambiguidade de se ter forças modernas transformadoras da cidade e um modo de vida lutando contra arquétipos antigos muito enraigados entre os indivíduos. Berman (2007) explica que a última metamorfose de Fausto o transforma em uma nova espécie de homem e a força por trás dele é usada para tornar o Antigo mundo um lugar moderno e homogêneo. A derrocada do Fausto, a tragédia do desenvolvimento, é, então, a incapacidade de simbiose entre crescimento econômico e vida espiritual.

A relevância da obra está também em antever muitos dos processos pelos quais países europeus e o restante do mundo experimentariam apenas a partir do século XX. As grandes propostas de desenvolvimento, como a construção de equipamentos de captação de energia (hidrelétricas, usinas etc.), ferrovias, novas cidades inteiras, entre outras, significaram um projeto fáustico mais autêntico nos países desenvolvidos, em comparação ao empregado nos países subdesenvolvidos, em que os investimentos eram voltados para interesses de mercado e não ofereceram progresso para a maioria da população, correspondendo ao que Berman (2007) denomina de projetos “pseudofáusticos”. Portanto, a reflexão apresentada na análise do autor se traduz em como o desenvolvimento e a técnica podem confluir em função do indivíduo e não o oposto.

Nessa perspectiva, o uso que se faz da técnica é uma preocupação central entre aqueles que discutem a modernidade. Não obstante, não se trata de condenar a técnica, mas de compreender o que Arendt (2007) chama de o “divórcio entre conhecimento e pensamento”, ou o que Georg Simmel (1964) denomina de o crescimento do espírito objetivo em relação ao espírito subjetivo. Para tal, observam-se algumas discussões suscitadas em A Condição

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Humana.

Na elucidação sobre a Vida Ativa, Arendt (2007) designa três atividades que a integram, são elas: o labor, o trabalho e a ação. A primeira atividade, o labor, corresponde às necessidades humanas, em sentido físico, inclusive, biológico, cuja condição humana é o próprio mundo; a segunda atividade, o trabalho, representa o artificialismo da experiência humana a partir das coisas que se encontram no mundo e sua condição humana é a mundanidade; e a terceira atividade, a ação, que seria, dentre todas, a mais nobre atividade. A ação é exercida entre os indivíduos de forma direta, sem mediação de coisas e sua condição humana é a pluralidade. Esses conceitos são imprescindíveis para apreender as transformações que ocorrem mais tarde em relação ao labor e ao trabalho.

Se na Grécia Antiga o labor era executado pelos escravos para que os homens da Polis pudessem participar da vida pública, na modernidade o homo faber inaugura novos sentidos para o labor, que passa a ser a principal atividade no seio de uma nova esfera social constituída agora por operários/assalariados. Se antes as atividades que diziam respeito à sobrevivência eram relegadas à esfera privada, agora, essas atividades são admitidas na esfera pública. Com isso, criaram-se também distinções entre trabalho manual e intelectual, ou trabalho produtivo e improdutivo, uma vez que, como já foi dito, toda ação deve demonstrar sua utilidade. Esse novo sentido de labor está intimamente ligado ao consumo, como explica Arendt (2007), por meio de Marx. Os produtos do labor devem ser consumidos rapidamente, elevando a produção a altos patamares, assim como devem ter um novo uso. Quando antes os artefatos eram duráveis, agora devem ser constantemente utilizados, descartados e/ou substituídos.

O “divórcio entre o conhecimento e o pensamento” nada mais é do que o enaltecimento do labor em nossa sociedade, momento em que a vida contemplativa deu lugar à vida ativa e à atividade de pensar foi suprimida. Simmel, em As grandes cidades e a vida do espírito (1964 [1903]), aponta para a atrofia da cultura individual mediante a hipertrofia da cultura objetiva. Ou seja, o crescimento científico e tecnológico se desenvolve muito além do que ele nomeia de “vida do espírito” e o espírito objetivo é crescente em relação à cultura individual. Isto é, o que ocorre é uma objetificação intensa das relações sociais mediada pelo dinheiro; a vida assume formas abstratas, dentre as quais, o dinheiro é a mais preponderante delas. Mas voltaremos a essas questões mais adiante.

As transfigurações da modernidade modificaram a paisagem urbana, com a construção de amplas zonas industriais, fábricas, ferrovias, engenhos a vapor, entre outros, mas também geraram um novo tipo de indivíduo. No entanto, entende-se, a partir de uma analogia com O

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evoluções no campo da técnica, que poderiam amenizar e aperfeiçoar o trabalho humano, terminam por exauri-lo ainda mais. Como assinala Berman (2007, p. 15):

Ser moderno é encontrar-se em um ambiente que promete aventura, poder, alegria, crescimento, autotransformação e transformação das coisas em redor – mas ao mesmo tempo ameaça destruir tudo o que temos, tudo o que sabemos, tudo o que somos. A experiência ambiental da modernidade anula todas as fronteiras geográficas e raciais, de classe e nacionalidade, de religião e ideologia: nesse sentido, pode-se dizer que a modernidade une a espécie humana. Porém, é uma unidade paradoxal uma unidade de desunidade: ela nos despeja a todos num turbilhão de permanente desintegração e mudança, de luta e contradição, de ambiguidade e angústia. Ser moderno é fazer parte de um universo no qual, como disse Marx: “tudo o que é sólido desmancha no ar”.

A definição de Berman (2007) se traduz nos diversos desdobramentos que trouxe a modernidade, ou seja, o fluxo cada vez maior de pessoas em direção aos centros urbanos, o advento da globalização, novas tecnologias produzindo novas formas de comunicação em massa, transformações de caráter político, econômico e social, destruição e criação concomitantes do espaço urbano, tudo isso fundamentado sob o poder de um mercado capitalista e da ascensão de uma burguesia urbana e industrial e financeira.

Essa burguesia moderna, a partir do pensamento marxista, deve sempre se inovar e se reinventar numa interminável competição, ela não pode subsistir sem constantemente renovar os seus meios de produção. Apesar da previsibilidade buscada e estabelecida pela burocracia, a sociedade burguesa moderna vive em um ambiente cíclico de destruição-construção. Todavia, Berman (2007) explica que Marx, ao trabalhar a ideia da teoria das crises, defende que o constante retorno cíclico dessas crises levaria a sociedade burguesa à extinção, guiando o próprio capitalismo à sua ruína. Isso já se mostrou ser falso, porque ainda que essas crises produzam resultados diversos, como mais recessão e destruição, a burguesia entende como contornar as crises e tirar proveito delas. Em paralelo, essa gangorra de inovação e destruição permanentes não modifica apenas o mundo físico, mas altera o próprio indivíduo, transformando-o em uma nova espécie de pessoa, pois, para que se sobreviva nessa sociedade moderna é necessário assumir características que a representem, como fluidez e flexibilidade. “Tudo que é sólido desmancha no ar” é, como veremos, absolutamente condizente e representativo do sentimento de diluição e fragmentação da vida moderna.

No tocante às transformações nos valores do indivíduo, a modernidade subverteu a crença em um Deus que estava acima de todas as coisas, na exaltação da ciência e da técnica. Com “a morte de Deus e o advento do niilismo”, a religião e a tradição não ocupam mais o

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mesmo espaço no mundo. Esses elementos balizavam a interpretação das pessoas perante a vida cotidiana e os acontecimentos tinham seus lugares conhecidos. Ao fazer sua entrada na modernidade, o indivíduo perdeu as garantias religiosas para se guiar no mundo e passou a contar com a tentativa de construção de novos critérios que determinassem padrões para enfrentar os imprevistos e as casualidades da vida moderna, como o estabelecimento de leis previstas em uma sociedade burocrática, racional e moderna.

Para Sennett (2016), essa questão pode ser explicada pelos termos seculares que mudaram drasticamente entre o século XVIII e XIX. No século XVIII, podia-se atribuir às coisas e às pessoas uma ordem da natureza (a ordem da natureza era uma ideia da secularidade, como o transcendental). Já o secularismo que surge no século XIX significava o completo oposto; sensações, fatos e sentimentos imediatos já não tinham de se encaixar em um esquema preexistente para serem compreendidos; eles significavam a realidade por si mesmos. “Os fatos são mais fiáveis do que o sistema – ou, melhor dizendo, a sucessão lógica dos fatos tornou-se sistema” (SENNETT, 2016, p. 40).

A ordem da natureza do século XVIII, na qual os momentos tinham um lugar e a natureza transcendia os fenômenos, foi assim substituída. “Num mundo onde a imanência é o princípio do conhecimento secular, tudo tem importância, porque tudo poderia ter importância” (SENNETT, 2016, p. 41). Nada tem um significado prévio. A reestruturação do código de conhecimento secular teve um efeito radical sobre a vida pública e Sennett (2016) explica que a transição do Antigo Regime para o capitalismo industrial, por meio da Revolução Industrial, se deu de uma forma muito mais complexa e contínua do que uma ruptura abrupta no calendário. Não há essa ruptura drástica; o que ocorre, na verdade, é que uma condição de vida vai se infiltrando, aos poucos, na outra, sem que os indivíduos se deem conta instantaneamente.

A filosofia e metafísica modernas, geradoras da ideia de verdade, defendida por Platão e Aristóteles, são, durante muitos anos, para Nietzsche, objeto de crítica. Nietzsche assume uma horizontalidade de pensamento que o aproximará, mais tarde, de pensadores pós-estruturalistas como Gilles Deleuze e Felix Guattari. De acordo com o pensamento de Claudio Ulpiano3, sob a perspectiva nietzscheana, a base estrutural da verdade são a identidade e a permanência, pois em um mundo de paixões contraditórias e confusos sentimentos em relação ao tempo, tais elementos (a identidade e a permanência) proporcionam conforto e apaziguamento. Dito isso, o pensador da verdade, ou seja, aquele para quem a vida se baseia na dualidade entre o bem e

3Claudio Ulpiano foi um professor de filosofia da USP que dedicou-se intensamente, entre outras coisas, à obra de filósofos como Nietzsche e Deleuze. Sua produção abundante está disponível em um acervo que contempla aulas em áudio e transcritas no site https://acervoclaudioulpiano.com

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o mal (aqui Nietzsche faz uma crítica ao pensadores pós-socráticos, como Platão) negaria as paixões e negaria o tempo, causador das angústias advindas das mutações e contradições; negaria, então, o modo de ver as coisas como elas são, em função do modo de vê-las como elas deveriam ser. Em O Nascimento da Tragédia, Nietzsche (1992) diz que o “conhecimento mata a ação”; essa é a base da filosofia moderna. A negação da vida em prol de uma “moral de rebanho”, transformando a todos em iguais e terminando por instigar patologias sociais como a “má consciência” e o “ressentimento’, como subterfúgios à incapacidade do indivíduo de lidar com os sofrimentos provenientes de se viver. Nietzsche chamou esse processo de niilismo.

O niilismo seria, então, uma resposta do indivíduo em negar e se contrapor tanto às crenças religiosas (a morte de Deus), quanto a uma promessa de emancipação pela racionalidade moderna. Isto é, “A derrocada da interpretação moral do mundo, que não tem mais nenhuma sanção depois de ter tentado refugiar-se no além: termina no niilismo” (NIETZSCHE, 2007, p. 27). Não obstante, apesar de uma leitura superficial de Nietzsche apresentar suas ideias como pessimistas, para o filósofo alemão, o desafio está, justamente, em superar esse estado, e transcender aos valores moralizantes e homogeneizantes da sociedade. Assim, o indivíduo livre que ultrapassa o niilismo é denominado por Nietzsche (2007) de über-

mensch, ou além-homem (também conhecido como super-homem). Rogério Leite (2017)

destaca o caráter revolucionário da filosofia nietzscheana em seus estudos sobre os aspectos culturais do consumo (estudos esses sobre o espaço público na contemporaneidade). Isto é, Leite (2017) defende que a superação do niilismo implicaria na também refutação do indivíduo como um “ser-valor”, ou seja, um ser- mercadoria. Os estudos de Rogério Leite (2017) fazem parte de um conjunto de pesquisadores contemporâneos, como Canclini (2008) e Lipovetsky (2007), interessados em novas perguntas e respostas acerca do consumo. Pretende-se explorar melhor tais perspectivas no tópico 1.4 (Pós-modernismo: aspectos culturais da sociedade do simulacro).

Voltando para a condição da vida moderna, esta era incrustada de uma lógica monetária que invadiu as cidades grandes e transformou as relações interpessoais. As grandes cidades são o lugar onde o economicismo se manifesta nos mais diversos aspectos da vida urbana e, assim, o comportamento humano também é transformado de acordo com essa lógica. Para Simmel (1964), a monetarização das relações, mais intensa nas grandes cidades, pauta o entendimento do indivíduo com o mundo, enfatizando aquilo que é comum a todos e menosprezando acontecimentos específicos.

Dessa maneira, a técnica da vida das cidades grandes não poderia se realizar sem que todas as ações fossem estabelecidas a partir de um sistema temporal permanente. A

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contabilidade, a pontualidade e a exatidão estão sempre presentes no cotidiano do indivíduo urbano. Essa “intensificação da vida nervosa” desencadeia, para Simmel (1964), o caráter blasé e a reserva. Ambos dizem respeito a um certo tipo de comportamento típico do habitante da cidade grande. O ar blasé é uma reação do indivíduo aos inúmeros estímulos externos por ele recebidos na cidade, a multiplicidade de informações e acontecimentos presentes no cotidiano urbano, os contatos impessoais e transitórios constantes que não permitem uma conduta pautada pela alma e sim pelo entendimento. É como uma resposta imunológica que leva o habitante da cidade a agir com automatismo e indiferença. A segunda característica, a reserva, é pautada por um sentimento de aversão. Essa sensação está voltada para os frequentes encontros que as pessoas vivenciam nas grandes cidades, pois não seria possível reagir a todos esses estímulos com o mesmo grau de intimidade com que aqueles que habitam em cidades menores, onde todos são conhecidos entre si, reagem. Assim, essa reserva garante ao indivíduo uma impressão de liberdade, em circunstâncias em que os encontros na cidade são constantes.

De fato, a reserva e a indiferença mútuas, as condições espirituais de vida dos círculos mais vastos, nunca foram sentidas de modo mais forte, no seu efeito para a independência do indivíduo, do que na turba mais compacta da grande cidade, porque o aperto e a proximidade corporal é que tornam verdadeiramente explícita a distância espiritual; e, claro está́, apenas o reverso desta liberdade se, sob certas circunstâncias, em nenhum lugar alguém se sente tão solitário e abandonado como justamente na multidão da grande cidade (SIMMEL, 1964. p. 13-14).

Há também uma outra característica representativa do ser moderno, que é a individualização, para Berman (2007), e a individualização espiritual, para Simmel (1964). No primeiro, isso ocorre pela ausência de valores, um tipo de indivíduo ligado ao passado cujas roupas não lhe servem mais e o presente não lhe traz todas as respostas de que precisa; no segundo, ocorre em função de duas causas. A primeira é a tentativa do indivíduo de sobressair-se em meio a uma sociedade especializada a partir da divisão do trabalho, levando-o aos comportamentos mais excêntricos e exagerados; a segunda é a grande quantidade de rápidos encontros na cidade grande, fazendo com que o citadino tente se apresentar da melhor forma possível, como quem assume um papel.

A perspectiva do indivíduo moderno desempenhando um papel tem uma longa história na discussão sobre a modernidade e é extensamente trabalhada por Erving Goffman, ao longo de toda sua trajetória como escritor, e por Richard Sennett, em O Declínio do Homem Público (2016). Goffman (1985) estudou como o indivíduo apresenta a si mesmo e as suas atividades às outras pessoas em situações comuns, também os meios pelos quais o indivíduo regula as

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impressões dos outros sobre si, e o que se pode ou não fazer frente a outras pessoas. Essas outras pessoas constituem, para Goffman, a plateia. Já Sennett (2016) busca investigar as mudanças dos “papéis públicos” ao longo da história, para entender a transposição entre público e privado na vida moderna. Para ambos os autores, na vida real, o papel desempenhado por um indivíduo é talhado de acordo com os papéis desempenhados pelos outros presentes. Voltaremos a eles no tópico seguinte, em que trataremos de explicar o que são esses papéis de representação e a ligação destes com o “palco” e suas transformações a partir das próprias mudanças ocorridas na sociedade ao longo dos séculos XVIII, XIX e XX.

Mas se iremos mergulhar nos papéis públicos e na sua relação com as transições do espaço público e, aqui, vamos considerar “espaço público” e “esfera pública” assim como utilizados por alguns autores, como termos cujos significados são equivalentes, então, antes disso, é fundamental elucidar algumas questões: O que é a esfera pública? Qual a sua importância para interpretar a modernidade? Para responder tais perguntas, vejamos algumas definições.

Ao trabalhar a ideia de esfera pública, Arendt (2007) pormenoriza o sentido de público. Isto é, para ela, o termo “público” está intimamente relacionado à visão de uma realidade mais facilmente aceita por todos, e essa realidade só é conhecida e assentida porque ocorre no âmbito da esfera pública, como demonstra a sua fala:

Uma vez que a nossa percepção da realidade depende totalmente da aparência, e portanto da existência de uma esfera pública na qual as coisas possam emergir da treva da existência resguardada, até mesmo a meia-luz que ilumina nossa vida privada e íntima deriva, em última análise, da luz muito mais intensa da esfera pública (ARENDT, 2007, p. 61).

Assim, a diluição do abismo que os mais antigos tinham de ultrapassar para sair do campo da esfera privada e da família para atingir a esfera pública, onde o real cria as condições para existir à luz da elaboração de concepções comuns, é uma experiência absolutamente moderna. De maneira análoga, Richard Sennett (2016) retoma os significados iniciais de “público” e “privado”, para compreender a transformação básica em relação à cultura ocidental que leva ao desequilíbrio entre público e privado. Inicialmente, público surgiu como “bem comum” e privado como “privilegiados” (conotações semelhantes às atuais). “Público” significava aberto à ação de qualquer pessoa, enquanto “privado” significava uma região protegida da vida, definida pela família e pelos amigos. Posteriormente, o significado de público foi ganhando outros elementos, como lugares longe da vida privada, e o centro dessa vida pública eram as grandes cidades, a capital. Em decorrência disso, os indivíduos buscaram

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uma saída por meio da tentativa de estar em privacidade como um fim em si mesmo.

O que Sennett (2016) nomina de “desequilíbrio entre público e privado” é a própria dissolução do espaço público para Hannah Arendt (2007). A autora tematiza e articula questões a respeito de uma ideia de espaço público como espaço significativo no qual a ação e o discurso dos indivíduos podem ganhar relevância e sentido na construção de “um mundo comum para os homens”. Assim, espaço público, para Arendt (2007), possui uma ampla dimensão, já que é por onde a deliberação política e a participação se manifestam e onde os indivíduos se reconhecem. A história que acompanha a vida moderna é a própria história do esfacelamento do espaço público, reverberando em desprezo por questões de cunho político e de caráter público, egocentrismo, competição e operacionalização de tudo que existe, transformando as coisas em instrumentos para determinado fim. A perda desse mundo comum, para Arendt (2007), ratifica a personalidade de um indivíduo dotada de egoísmo, para quem os outros nada interessam e para quem os problemas do mundo não lhe dizem respeito. Falamos então de uma destruição das esferas pública e privada que, na sociedade de massas, engloba todos os grupos na ascensão da esfera social.

Não obstante, a discussão envolvendo público e privado de Sennett (2016) e esfera pública no sentido arendtiano (2007), possui interfaces com a noção de espaço público, da qual este trabalho faz uso. Leite (2007), sociólogo contemporâneo, sugere algumas diferenciações entre os usos dos termos espaço urbano e espaço público, a partir das perspectivas de Arendt e Habermas. O autor defende que, embora todo espaço público esteja dentro do espaço urbano, nem todo espaço urbano é, necessariamente, constituído pelo espaço público. Isto é, um espaço urbano apenas representa um espaço público quando nele apresentam características espaciais

e de ações (LEITE, 2007). Quando essas práticas e ações propiciam certas significações, como

a de lugar e de pertencimento trata-se de espaços públicos: “locais onde as diferenças se publicizam e se confrontam politicamente” (LEITE, 2007, p. 116).

A compreensão de espaço público utilizada neste trabalho aproxima-se mais das perspectivas dos estudos de urbanismo, em que esfera pública, espaço público e espaço urbano se correlacionam. Essas percepções levam em conta diferentes fatores sociais, políticos, econômicos e culturais, incidindo nas transformações do espaço público, em que pese o entendimento de que a própria ideia de um espaço público heterogêneo, que sofre mutações ao longo dos séculos (incluindo estudos mais recentes sobre espaços públicos virtuais), é cada vez mais reivindicada. Nesse sentido, deseja-se investigar tais transformações e quais os seus efeitos para a vida urbana moderna no tópico que se segue.

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evento histórico gradual que se infiltrou na vida urbana modificando profundamente a sociedade. Também tentou-se sistematizar os autores de modo que seus argumentos em comum pudessem transmitir alguns fundamentos consensuais sobre o processo de instauração da modernidade.

Dentre os efeitos desencadeados pela modernidade expressos neste trabalho, um deles tem relevância fulcral para esta discussão: é o esfacelamento da esfera pública. O declínio da vida pública está entrelaçado às mudanças no uso do espaço urbano e às reformas urbanas ocorridas inicialmente em Paris e Londres e, mais tarde, replicadas em outras cidades do mundo. Além dessa experiência, há outros aspectos, relatados por Sennett (2016), que são fundamentais para as transições na vida pública, são eles: a transfiguração nos papéis públicos a partir da introdução do elemento psicológico na personalidade dos citadinos e a transformação da economia por meio da inserção de um mercado de produção em massa erigido sob o pilar do “fetichismo da mercadoria”. Esses dois aspectos do declínio da vida pública serão trabalhados a seguir, dando especial ênfase à alteração dos papéis públicos. Não há uma ordem hierárquica, uma vez que serão discutidas as implicações, causas e efeitos do declínio da vida pública. Assim, serão abordados, intermitentemente, os papéis de representação, as reformas urbanas e a economia capitalista de produção em massa.

1.1 O Discreto Charme da Burguesia: encenando papéis na Sociedade do Consumo

Cada pessoa, mergulhada em si mesma, comporta-se como se fora estranha ao destino de todas as demais. Seus filhos e seus amigos constituem para ela a totalidade da espécie humana. Em suas transações com seus concidadãos, pode misturar-se a eles, sem no entanto vê-los; toca-os, mas não os sente; existe apenas em si mesma e para si mesma. E se, nessas condições, um certo sentido de família ainda permanecer em sua mente, já não lhe resta sentido de sociedade.

Toqueville Como anteriormente mencionado, em muito se discute a individualização e a predominância do eu a partir da ascensão da era moderna. A substituição de locais públicos de encontro por áreas privadas, a obsessão narcisista e a incapacidade de ser efetivamente expressivo com o outro são alguns dos sinais do declínio da autenticidade do indivíduo. Nessa ótica, encarar as relações sociais como constituídas de papéis de representação teatral de gestos,

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etiqueta e convenções, pode sugerir relações entre a mudança dos papéis de representação e o declínio do espaço público.

Foi por volta do século XVIII que nasceu a concepção de espectadores uns dos outros na cidade, onde todos desempenham um e, muitas vezes, vários papéis. Um papel é um tipo de comportamento mais apropriado para determinada situação social e o uso de papéis está intrínseco a códigos de crença e esses códigos, em conjunto com o comportamento, constituem o papel. Assim, a ideia dos papéis se envolve com uma perspectiva de mundo como um teatro. Erving Goffman, em A representação do eu na vida cotidiana (1985), afirma que as pessoas se expressam por meio de duas formas, a primeira é pelo que elas transmitem com o uso da comunicação em si, e a segunda por meio de ações que elas emitem que podem ser consideradas por outras pessoas como ações sintomáticas do ator. Focaremos nessa segunda maneira de expressão para mostrar que, ao desempenhar um papel, o indivíduo espera que seus observadores levem a sério a impressão sustentada e, ao chegar próximo de outras pessoas, o indivíduo pode agir de maneira calculada, tentando levar os outros a uma resposta esperada, como também pode agir de maneira não exatamente calculada, sendo apenas porque determinado grupo, no qual ele se encaixa, ou posição social, requeira algum tipo de comportamento.

Dois grandes escritores franceses transportaram para suas obras a crença no uso de papéis de representação e numa sociedade como teatro, ou seja, a ideia de indivíduos representando papéis sociais, são eles Baudelaire e Balzac. As expressões de atores citadinos por meio de seus gestos, falas e comportamentos são brilhantemente demonstradas nos poemas de Baudelaire e nos romances de Balzac, com a diferenciação entre provincianos e cosmopolitas nitidamente presente em obras como As Ilusões perdidas (1837), Eugênia Grandet (1981[1833]) e A Mulher de Trinta Anos (1842), mas também personagens pormenorizadamente descritos por trás de papéis públicos, pois, muitas vezes, era na presença da família quando mais se representava um papel. Ou, acontece o que Goffman (1985) chama de “nossa segunda natureza”, quando, em certo sentido, na medida em que a máscara revela a concepção que criamos de nós mesmos, o papel a que nos obrigamos a assumir é o nosso mais verdadeiro eu, transformando-se em nossa segunda natureza. Mas as máscaras revelam ainda um outro elemento: quanto mais um indivíduo se concentra em demonstrar sentir de modo genuíno e não de acordo com o que o conteúdo objetivo oferece como sensação, mais a subjetividade se torna um fim em si mesma, menos expressiva ela será. Como demonstra Sartre (apud GOFFMAN, 1985, p. 39): “O aluno atento que deseja ser atento, olhos fixos no professor, ouvidos bem abertos, consome-se tanto por representar o papel de atento que termina por não

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ouvir mais nada”. O fato é que, como explica Sennett (2016), na medida em que as condições sociais deterioram a vida pública, mais as pessoas são tolhidas, rotineiramente, de exercer a capacidade de representar papéis, já que a representação exige um público de estranhos, uma plateia, e esta cessa de existir com o esfacelamento da vida pública.

Nessa perspectiva, quando um indivíduo se mostra perante os outros, seu comportamento deverá incorporar e exprimir os valores oficialmente reconhecidos e aceitos pela sociedade, sendo a representação diretamente influenciada e realizada a partir de valores sociais estabelecidos. Assim, o indivíduo pode se envolver em um grande número de representações conforme seja necessário, o que implica, para Goffman (1985), uma multiplicidade de individualidades sociais diferentes na medida em que esteja inserido nessa pluralidade de grupos sociais distintos e em consonância com seus interesses de inserção neles, levando as pessoas a mostrar diferentes facetas de si mesmas a cada um desses diversos grupos. Isso faz sentido quando observa-se a maneira pela qual as pessoas se mostram em aspectos diferentes para filhos, amigos íntimos, colegas distantes, o chefe, empregados etc. Mesmo porque, em consonância com o pensamento de Simmel (1964), Goffman (1985) argumenta que a vida urbana tornar-se-ia insuportavelmente desgastante se todos os contatos entre as pessoas desencadeassem a participação nos temores, aborrecimentos e revelações íntimas de cada um, se mostrássemos autenticamente pensamentos genuínos e sublevações internas a todos com os quais nos encontrássemos. É justamente essa “intensificação da vida nervosa” tão verdadeiramente estimulante nas grandes cidades que fomenta o caráter blasé descrito por Simmel (1964), transferindo o lugar mais profundo de enraizamento das reações pautadas pelo sentimento para um lugar mais superficial, o do entendimento, do intelectualismo, tornando possíveis as relações sociais nas cidades grandes.

Tendo em vista que papéis de representação são também papéis sociais desempenhados dentro de diferentes grupos sociais, com a intensificação da vida social e urbana, as pessoas se preocupam cada vez mais com a maneira de se portar frente ao advento de uma vida pública moderna cheia de encontros. Esse foi o momento da proliferação dos folhetins de etiqueta e comportamento social, para auxiliar as pessoas a se portar nesses encontros entre citadinos. São os folhetins de boas maneiras, distribuídos nos EUA no século XIX, mencionados por Goffman (1985), e aqueles descritos por Walter Benjamin (1994), lançados em Paris ainda no século XVIII. Sennett (2016) diz que a ponte entre palco e rua pode ser observada em uma sociedade em que há rígidas regras de etiqueta; nesse sentido, o comportamento de uma pessoa será minuciosamente observado e analisado, por meio de detalhes, gestos, indícios de sinais, ou fala, a fim de notar qual o seu lugar na sociedade.

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As transformações na vida pública que serão abordadas aqui são, principalmente, as de Paris, uma das maiores cidades industriais do Ocidente por volta de 1750, que viveu a ascensão de uma sociedade burguesa moderna e um salto populacional grandioso entre o final do século XVIII e o início do século XIX, boa parte em função de grupos migratórios do campo. Sennett (2016) esclarece que a burguesia do século XVIII não possuía as mesmas funções econômicas, tampouco dispunha da mesma percepção de si que a burguesia do século XIX, mesmo porque a vida pública não tem o seu surgimento no século XVIII. Já existiam traços dela muito antes, mas é nesse século que ganhou forma uma nova versão da vida pública, construída em torno de uma burguesia em ascensão e de uma aristocracia em derrocada.

O florescimento de uma burguesia no século XVIII criou um ambiente de estranhos (plateia) no qual as pessoas se parecem cada vez mais iguais às outras. Deve-se compreender que esse novo momento com uma nova classe, a burguesia, despertou um sentimento de estranhamento, a sensação inesgotável de uma classe que sabia que representava algo novo, mas não entendia exatamente o que era. Sennett (2016) lembra que, no tocante às grandes cidades, a falta de tato sobre como se portar fez com que fosse suspendida a possibilidade de falar de si próprio, como uma forma de se proteger no primeiro contato entre estranhos. Assim, antigas determinações já não têm o mesmo efeito e valor, pois o momento exige novos códigos sociais. Nesse sentido, em meio a essa plateia de estranhos, é necessário então desenvolver e replicar entre si comportamentos consensuais, como forma de aceitação e participação em grupos sociais, tornando-se todos extremamente parecidos.

A insatisfação de notar essa similitude entre as pessoas é percebida na fala de Michel, personagem do escritor francês André Gide, no marcante romance O Imoralista (1991[1902]), escrito no final do século XIX, e publicado em 1902, causando grande alvoroço na sociedade burguesa da época, por chocar com a criação de um dos primeiros protagonistas homossexuais da literatura. Após passar um dia inteiro encontrando diferentes pessoas do seu círculo social burguês, Michel desabafa aborrecido para a esposa: “Todos eles se parecem. Cada um repete os outros. Quando converso com um, tenho a impressão de conversar com muitos” (GIDE, 1991, p. 89). Todavia, na obra de Gide, o protagonista está se referindo a um grupo restrito de burgueses.

Então, a maneira pela qual a sociedade burguesa urbana, no século XVIII, saiu de um contexto de extrema insociabilidade para uma sociedade excessivamente sociável, pode ser compreendida pela ligação de códigos de credibilidade ativos entre teatro e vida cotidiana. Rousseau considerava insuportável a vida nas cidades grandes porque as condições de vida nesses lugares obrigavam as pessoas a se portarem como atores, com a finalidade de serem

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sociáveis, minimizando sua própria existência como pessoa. Para ele, a grande cidade é um ambiente do qual não se pode dizer que tipo de estranho vive nele, porque cada um pode ocultar sua conduta dos olhares públicos e tornar visível apenas por sua reputação. Mesmo as roupas tinham esse papel de definir essa reputação para aquele que estava olhando, terminando por estabelecer claramente uma conexão entre comportamento e roupas utilizados nos palcos e nas ruas.

O percurso que nos leva de uma vida social abundante para o seu declínio perpassa, fundamentalmente, por transformações na economia do capitalismo industrial no século XIX. Nesse século, boa parte da economia das capitais ainda exaltava o que existia nas principais capitais do Antigo Regime: comércio, finanças e burocracia. Com uma população quadruplicada do início para o final do século XIX, a economia interna dessas capitais (principalmente Paris e Londres), por meio de lojas e venda a varejo, gerou uma nova atividade econômica. O comércio varejista se tornou cada vez mais lucrativo, com grandes mercados ao ar livre e gigantescas lojas de departamento. Com o novo comércio, emergiu também uma variedade de complexos problemas na vida pública no século XIX.

David Harvey (2006) traz um exemplo que é centra para essa discussão. Em um artigo intitulado The Political Economy of Public Space (2006), Harvey alerta que a maneira como se experimenta a cidade influencia e é influenciada pela forma como as pessoas se posicionam politicamente no mundo, assim como as concepções que elas possuem em relação à cidade filtram e orientam as interpretações sobre o que a experiência urbana poderia ser. O autor defende que a reorganização radical do espaço público associada a outras duas condições, organização institucional e espaço privado, pode gerar amplas consequências políticas na esfera pública, como ocorreu na Paris do século XIX. O exemplo trabalhado por Harvey é o da reorganização urbana de Paris por Haussmann, sob o período do Segundo Império.

Um dos principais objetivos da reforma urbana proposta por Haussmann para Paris é o de liberar o tecido urbano para permitir o fluxo de manejos militares. A reorganização atinge cerca de um terço do tecido da cidade com o intuito de uma grande expansão. Nessa lógica, é produzido um urbanismo totalmente racionalista e técnico, desconsiderando o aspecto histórico. A criação dos bulevares direciona o foco das intervenções para a melhoria da circulação de veículos, tornando o acesso rápido, facilitado por toda a cidade como visão estratégica, definindo uma imagem geral de modernidade que se buscava. Mas o que se escondia atrás da fachada moderna era, literalmente, um lodaçal, conforme explica Berman (2007), por meio de Baudelaire: “eu cruzava o bulevar, com muita pressa, chapinhando na lama, em meio ao caos, com a morte galopando na minha direção, de todos os lados” (BAUDELAIRE apud BERMAN

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2007, p. 186). O caos a que Baudelaire se refere era enfrentado pelo homem moderno, que se vestia como homem moderno e caminhava como um pedestre lançado ao tormento de sujeira e desorganização, que transitava em meio a esse confuso espaço pseudomoderno: “o borbulhante tráfego da rua e do bulevar não conhece fronteiras espaciais ou temporais, espalha-se na direção de qualquer espaço urbano, impõe seu ritmo ao tempo de todas as pessoas, transforma todo o ambiente moderno em caos” (BERMAN, 2007, p. 186). Mas não só isso, a fim de acabar com o problema da insalubridade, eliminam-se bairros inteiros considerados degradados. As ruas passam a ser arborizadas e recebem sistema de iluminação. A velha cidade medieval, com traçado orgânico e ruas estreitas, é completamente reestruturada com grandes eixos e contornada por um anel viário. São criadas praças com monumentos que servem como “cenário” de uma cidade nova e moderna.

As reformas de Haussman encobrem interesses privados por trás do fator psicológico que as intervenções objetivavam atingir. Durante o golpe militar que se instaurou no Segundo Império, os bulevares tinham acesso negado aos que lutavam por uma república social e deveriam atuar em função dos interesses privados dos burgueses; assim, significavam espaços de exclusão para quem desafiava a ordem social. Na esfera pública, a construção dos novos espaços era decisivamente dependente de prerrogativas privadas. Na destruição e construção de novos bairros, como Sennett (2016) demonstra, o objetivo de homogeneização se deu em consonância com as reformas, assim como para segregar ricos e pobres, diferenciando, inclusive, os preços de alimentos, aluguel e outros serviços nesses locais, em contraposição ao Antigo Regime, quando pessoas de diferentes classes moravam num mesmo prédio e eram os andares que diferenciavam os estratos sociais: os mais ricos moravam nos primeiros andares e os últimos eram destinados aos mais pobres e estudantes, não querendo dizer, com isso, obviamente, que o Antigo Regime oferecia uma vida urbana menos desigual, pelo contrário, com a ascensão do período Moderno, a criação do estado e da burocracia permitiram uma série de avanços importantes, como o direito à cidadania. Assim, cada espaço da cidade foi pensado para desenvolver uma atividade, reduzindo Paris em pequenas partículas de cidade. Homogeneizar os bairros permitiu que os investidores soubessem exatamente em que depositar seu dinheiro e onde fazê-lo.

O surgimento de teatros, cabarés, óperas e cafés também foi multiplicado nesse período. Os cafés, que no século XVIII eram um lugar em que não se fazia distinção de classe, pois não era de bom grado entrar nesse critério durante as conversas ocorridas dentro desses estabelecimentos, possibilitando interações entre pessoas de diferentes estratos sociais, no século seguinte, ao se multiplicarem e ganharem novos padrões estéticos, se tornam um local

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de exclusão e potencialmente conflituoso. Em A Pintura da Vida Moderna (2004), T. J. Clark analisa as obras dos grandes impressionistas à luz da vida social francesa no século XIX. Nesse livro, Clark expõe a pintura L'Absinthe, de Edgar Degas:

Imagem 1

Fonte: Pinterest (página de web).

Nela, retrata duas figuras, uma mulher e um homem que se sentam num café. O homem, vestindo chapéu e terno um tanto desajeitados, tem um olhar desatento sobre o que acontece ao seu redor, como que alheio a tudo, enquanto a mulher, vestida mais formalmente e também usando um chapéu, olha perdida e vagamente para baixo com um semblante de profunda melancolia. Embora compartilhem a mesma mesa, não há qualquer comunicação entre eles. A pintura é uma representação da solidão nos indivíduos e do aumento do isolamento social em Paris no período de rápido crescimento industrial e expansão da cidade no século XIX.

As contradições modernas expostas nas reformas de Paris e, mais especificamente nos cafés, também são encontradas no esplendoroso poema de Baudelaire “Os Olhos dos Pobres” (BAUDELAIRE apud BERMAN 2007, p. 178-179). O poema do escritor francês, cuja vasta obra descreve cenas precisas e intensas da vida urbana em Paris no século XIX, desvela sutis articulações do indivíduo moderno com a atmosfera urbana:

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compreendê-lo do que a mim explicá-compreendê-lo; pois acho que você é o mais becompreendê-lo exempcompreendê-lo da impermeabilidade feminina que se possa encontrar. Tínhamos passado juntos um longo dia, que a mim me pareceu curto. Tínhamos nos prometido que todos os nossos pensamentos seriam comuns, que nossas almas, daqui por diante, seriam uma só; sonho que nada tem de original, no fim das contas, salvo o fato de que, se os homens o sonharam, nenhum o realizou. De noite, um pouco cansada, você quis se sentar num café novo na esquina de um bulevar novo, todo sujo ainda de entulho e já mostrando gloriosamente seus esplendores inacabados. O café resplandecia. O próprio gás disseminava ali todo o ardor de uma estréia e iluminava com todas as suas forças as paredes ofuscantes de brancura, as superfícies faiscantes dos espelhos, os ouros das madeiras e cornijas, os pajens de caras rechonchudas puxados por coleiras de cães, as damas rindo para o falcão em suas mãos, as ninfas e deusas portando frutos na cabeça, os patês e a caça, as Hebes e os Ganimedes estendendo a pequena ânfora de bavarezas, o obelisco bicolor dos sorvetes matizados; toda a história e toda a mitologia a serviço da comilança.

Plantado diante de nós, na calçada, um bravo homem dos seus quarenta anos, de rosto cansado, barba grisalha, trazia pela mão um menino e no outro braço um pequeno ser ainda muito frágil para andar. Ele desempenhava o ofício de empregada e levava as crianças para tomarem o ar da tarde. Todos em farrapos. Estes três rostos eram extraordinariamente sérios e os seis olhos contemplavam fixamente o novo café com idêntica admiração, mas diversamente nuançada pela idade. Os olhos do pai diziam: “Como é bonito! Como é bonito! Parece que todo o ouro do pobre mundo veio parar nessas paredes”. Os olhos do menino: “Como é bonito, como é bonito, mas é uma casa onde só entra gente que não é como nós”. Quanto aos olhos do menor, estavam fascinados demais para exprimir outra coisa que não uma alegria estúpida e profunda.

Dizem os cancionistas que o prazer torna a alma boa e amolece o coração. Não somente essa família de olhos me enternecia, mas ainda me sentia um tanto envergonhado de nossas garrafas e copos, maiores que nossa sede. Voltei os olhos para os seus, querido amor, para ler neles meu pensamento; mergulhava em seus olhos tão belos e tão estranhamente doces, nos seus olhos verdes habitados pelo Capricho e inspirados pela Lua, quando você me disse: “Essa gente é insuportável, com seus olhos abertos como portas de cocheira! Não poderia pedir ao maître para os tirar daqui?”.

Como é difícil nos entendermos, querido anjo, e o quanto o pensamento é incomunicável, mesmo entre pessoas que se amam! (BAUDELAIRE, 2010, p. 75).

A beleza no poema de Baudelaire (2010) está nas contradições do pensamento moderno representadas no casal de amantes, cujas consciências e reflexões são opostas. A moça simboliza a classe burguesa, que deseja homogeneizar e segregar as pessoas e repele a família pobre; e o rapaz, constrangido por “seu copo maior que a sede”, tenta encontrar alguma compreensão na amante; mas o poema também é contraditório em relação à família pobre, que pode olhar e até entrar no café, mas não é permitido se reconhecer como indivíduos que possuem o direito de compartilhar o mesmo lugar que os outros, sentindo-se completamente excluídos ali. Há ainda a incomunicabilidade do amor moderno, que, se pudesse se expressar, poderia estabelecer diferentes motivações políticas, como descreve Berman (2007, p. 148-149):

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Um par amoroso dividido pela política é razão suficiente de desgosto. Todavia há outras razões: talvez, quando ele olhou fundo nos olhos dela, tenha de fato, conforme esperava, lido meus pensamentos ali. Talvez, a despeito de afirmar nobremente sua irmandade com a universal família de olhos, ele partilhe com ela o desprezível desejo de negar relações com os pobres, de pô-los fora do alcance da visão e do espírito. Talvez ele odeie essa mulher porque os olhos dela lhe revelaram uma parte de si mesmo que ele se recusa a enfrentar. Talvez a maior divisão não se dê entre o narrador e sua amante, mas dentro do próprio homem. Se assim é, isso nos mostra como as contradições que animam a cidade moderna ressoam na vida interior do homem na rua.

Com o Segundo Império houve também a instalação de iluminação para as ruas de Paris. As luzes a gás permitiram que as galerias e outras lojas pudessem permanecer abertas e as pessoas pudessem caminhar até tarde da noite pela cidade. Em seus textos sobre a obra do poeta francês Charles Baudelaire, Walter Benjamin (1994) elucida sobre como esse fenômeno propiciou o surgimento do flâneur, que, com um prazer praticamente voyeurístico, deleitava-se em observar os moradores da cidade exercendo suas atividades diárias nas ruas de Paris. Os cafés e galerias são onde o flâneur se sente em casa e ele não enxerga os problemas da cidade porque a observa sob o véu da multidão:

Uma embriaguez acomete aquele que longamente vagou sem rumo pelas ruas. A cada passo, o andar ganha uma potência crescente; sempre menor se torna a sedução das lojas, dos bistrôs, das mulheres sorridentes e sempre mais irresistível o magnetismo da próxima esquina, de uma massa de folhas distantes, de um nome de rua. Então vem a fome. Mas ele não quer saber das mil e uma maneiras de aplacá-la. Como um animal ascético, vagueia através de bairros desconhecidos até que, no mais profundo esgotamento, afunda em seu quarto, que o recebe estranho e frio (BENJAMIN, 1994, p. 186).

Esta era a experiência do flâneur, a de passear anônimo pela multidão e encarar as coisas e as pessoas com uma curiosidade minuciosa. A figura do flâneur surge como representação de um indivíduo burguês cujo principal privilégio é possuir tempo disponível para flanar sem com isso realizar diretamente objetivos específicos: basta o prazer de vagar buscando observar os atrativos urbanos disponíveis aos seus olhos. Ao mesmo tempo, havia os folhetins com fisiologias urbanas. Como comenta Benjamin (1994), os folhetins ofereciam uma visão distorcida da cidade e seus acontecimentos, com estereótipos que não condiziam com a realidade. Os textos descreviam uma imagem urbana apaziguadora e podiam ser adquiridos em feiras ao ar livre por baixo custo. Esse tipo de informe literário logo entrou em decadência e deu lugar ao surgimento de um novo tipo de literatura, que conferia ao leitores uma proximidade maior com a sua realidade, centrada na figura análoga à do flâneur, a figura do detetive. Esse

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