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Enunciação e relações de sentido entre a Constituição Federativa do Brasil de 1988 e o Marco Civil da Internet (Lei 12.965/14)

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Academic year: 2021

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MIRESNEI BOMFIM DE OLIVEIRA

ENUNCIAÇÃO E RELAÇÕES DE SENTIDO ENTRE A

CONSTITUIÇÃO FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988 E O

MARCO CIVIL DA INTERNET (LEI 12.965/14)

CAMPINAS

2019

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MIRESNEI BOMFIM DE OLIVEIRA

ENUNCIAÇÃO E RELAÇÕES DE SENTIDO ENTRE A

CONSTITUIÇÃO FEDERATIVA DO BRASIL E O MARCO CIVIL DA

INTERNET (LEI 12.965/14)

Dissertação de mestrado apresentada ao Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas como parte dos requisitos exigidos para a obtenção do título de Mestre em Linguística.

Orientador: Prof. Dr. Eduardo Roberto Junqueira Guimarães

Este exemplar corresponde à versão final da dissertação de mestrado defendida pelo aluno Miresnei Bomfim de Oliveira e orientada pelo prof. Dr. Eduardo Roberto Junqueira Guimarães

CAMPINAS

2019

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Ficha catalográfica

Universidade Estadual de Campinas

Biblioteca do Instituto de Estudos da Linguagem Leandro dos Santos Nascimento - CRB 8/8343

Bomfim de Oliveira, Miresnei, 1970-

B639e Enunciação e relações de sentido entre a Constituição Federativa do Brasil de 1988 e o Marco Civil da Internet (Lei 12.965/14) / Miresnei Bomfim de Oliveira. – Campinas, SP : [s.n.], 2019.

Orientador: Eduardo Roberto Junqueira Guimarães.

Dissertação (mestrado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Estudos da Linguagem.

1. Semântica. 2. Controle da Constitucionalidade. 3. Significação (Linguística). 4. Sentido (Linguística). 5. Direito - Linguagem. I.

Guimarães, Eduardo Roberto Junqueira. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Estudos da Linguagem. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: Enunciation and meaning relations between Federal Constitution of Brazil of 1988 and The Brazilian Civil Rights Framework for The Internet (Law 12.965/14)

Palavras-chave em inglês: Semantics Constitutionality control Meaning (Linguistics) Sense (Linguistics) Law - Language

Área de concentração: Linguística Titulação: Mestre em Linguística Banca examinadora:

Eduardo Roberto Junqueira Guimarães [Orientador] Débora Raquel Hettwer Massmann

Emílio Gozze Pagotto Data de defesa: 13-12-2019

Programa de Pós-Graduação: Linguística

Identificação e informações acadêmicas do(a) aluno(a)

ORCID do autor: https://orcid.org/0000-0002-6610-0296

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BANCA EXAMINADORA:

Eduardo Roberto Junqueira Guimarães

Emilio Gozze Pagotto

Débora Raquel Hettwer Massmann

IEL/UNICAMP 2019

Ata da defesa, assinada pelos membros da Comissão Examinadora, consta no

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Não oblitero moscas com palavras. Uma espécie de canto me ocasiona. Respeito as oralidades. Eu escrevo o rumor das palavras. Não sou sandeu de gramáticas.

Só sei o nada aumentado.

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DEDICATÓRIA

Dedico este trabalho a meus pais, Mires (in memoriam) e Noeni, que representam para mim a materialidade de todo um esforço e luta históricos de sobrevivência e resistência frente às determinações econômico-sociais capitalistas em suas diferentes formas de exploração e manutenção das desigualdades sociais. Sua luta foi, e é, o que me moveu, e move, para que eu chegue até aqui e não decline de seguir em frente. Dedico também a meus familiares, em especial a meus filhos Gabriel (meu alter ego! rs), Tainah (por extensão ao Guilherme e o Henriquinho) e Bruno (nosso engenheiro!), que, além de sempre me inspirarem e significarem o novo para mim, sempre incentivaram o pai em sua busca extemporânea. Da mesma forma a meus irmãos Janaina e Emerson, em especial a ela, que sempre vibra (e chora) com minhas conquistas. A meus sobrinhos, Gigi, Paulinho e Malu. A meus poucos amigo/as e companheiro/as Daniela Morillos (companheira de muitas lutas), Luciane Vegners (por me mostrar novos rumos), Gisele Falcari (meu segundo alter ego!) e Eduardo Oliveira (o Edu, o chato! rs) pelo companheirismo sincero e o brilhantismo no olhar e nas contribuições diretas e indiretas sobre o viver e sobre as críticas sempre bem-vindas a meu trabalho. Aos colegas da Secretaria Acadêmica do IEL, pela dedicação, honestidade, educação e presteza nas orientações burocráticas várias, em especial ao colega Cláudio, pelos diversos e-mails pontual e prontamente respondidos. A todos os colegas de academia que, certamente, contribuíram imensamente para a formulação deste trabalho. Dedico este trabalho especialmente a meu orientador, prof. Eduardo Guimarães, pelo brilhantismo notório do olhar e pela paciência em ensinar, corrigir cada trecho deste trabalho como se a seu próprio, acima de tudo, um exemplo de humildade dada sua grandeza e importância para todos os colegas dessa militância que é atuar com semântica no Brasil. Minha dedicação se estende também especialmente a prof.ª Débora Massmann, membro titular de minha banca e que com todo carinho e competência, desde o início, na qualificação, incentivou-me a seguir nesse caminho analítico-crítico do direito; e também ao prof. Emílio, meu mestre em abstrações! Emílio é daqueles mestres a quem chamamos de um bon vivant. Também a prof.ª Claudia Freitas e Ana Cláudia pela disposição em contribuir. Enfim, a todos e todas que, direta ou indiretamente, contribuíram para minha formação acadêmica. Salve Nietzsche, Marx e Engels!

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RESUMO

O princípio do controle jurisdicional de constitucionalidade é o sistema pelo qual o ordenamento jurídico visa conservar a soberania da Carta Magna, pela ascendência de suas regras e costumes e pela verificação da compatibilidade vertical das normas infraconstitucionais em relação a ela. Este trabalho procurou analisar semântico- enunciativamente, de forma comparada, os textos jurídicos Constituição Federal do

Brasil de 1988 e Marco Civil da Internet (Lei 12.965/14), tomando-os enquanto

acontecimentos de enunciação. Dessa forma, procurou demonstrar, pelo “primado da diferença” de viés enunciativo, que a relação entre esses dois textos não se dá como uma conformação, mas sim como uma diferença, o que faz da tentativa de controle constitucional, na verdade, um controle de sentidos, o que afeta todo o sistema hermenêutico-jurídico. A questão do sentido é, portanto, tratada dentro dos domínios da semântica do acontecimento e, por isso, entendida como relativa ao estudo das relações de integração tanto entre os elementos e seus respectivos enunciados quanto entre estes e o texto de que fazem parte, determinados por modos de significar específicos da temporalidade própria do acontecimento de enunciação. Nessa perspectiva, a análise metodológica do presente trabalho foi realizada através de procedimentos que consideram os enunciados recortados como núcleos desses

corpora, sendo (a análise) realizada por recortes em trabalhos de sondagem

orientados pelo funcionamento da língua, principalmente em dois modos de relação fundamentais: o de articulação e o de reescrituração.

PALAVRAS-CHAVE: Semântica; Controle de constitucionalidade; Significação; Sentido; Direito-Linguagem.

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ABSTRACT

The principle of jurisdictional control over constitutionality is the system by which the legal system seeks to preserve the sovereignty of the Constitution by ascending its rules and customs and verifying the vertical compatibility of infra-constitutional norms in relation to it. This paper sought to analyze semantically and enunciatively, comparatively, the legal texts Federal Constitution of Brazil of 1988 and The Brazilian

Civil Rights Framework for the Internet (Federal Law 12.965/14), taking them as

events of enunciation. Thus, it sought to demonstrate, by the "primacy of difference" of enunciative bias, that the relationship between these two texts does not occur as a

conformation, but rather as a difference, which makes the attempt at constitutional

control in the indeed, a sense control , which affects the entire hermeneutic-legal system. The question of meaning is, therefore, dealt with within the semantic domains of the event and, therefore, understood as related to the study of the integration relations between the elements and their respective utterances as well as between them and the text of which they are part. by ways of meaning specific to the temporality proper to the event of enunciation. From this perspective, the methodological analysis of the present work was performed through procedures that consider the cut-off statements as nuclei of these corpora (the analysis) operated by cuttings in sounding- oriented probing works, mainly in two modes of relationship fundamental: articulation and rewriting.

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

CF/88 – Constituição Federativa do Brasil de 1988 MCI – Marco Civil da Internet

FNS – Formação Nominal Sujeito FN – Formação Nominal

FP – Formação predicativa GN – Grupo Nominal

CLG – Cours de linguistique générale EC – Emenda Constitucional

ADin – Ação Direta de Inconstitucionalidade L – Locutor

LT – Locutário al-x – alocutor-x at-x – alocutário-x

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO ... 11

2. A SEMÂNTICA DO ACONTECIMENTO: UMA BREVE INTRODUÇÃO... 18

2.1.A natureza científica da linguística ... 18

2.2.Bases para uma análise semântico-enunciativa das leis ... 22

2.3.O Texto como acontecimento de enunciação ... 23

3. RELAÇÕES ENTRE SEMÂNTICA E DIREITO ... 27

3.1.A Natureza ontológica do direito ... 27

3.1.1. O direito como uma téchne ... 39

3.2.Controle jurisdicional de constitucionalidade: o acontecimento como conformação ...45

3.2.1. O modus de interpretar do ordenamento jurídico ... 46

3.2.2. O controle como paradigma interpretativo ... 61

3.3.Marco Civil da Internet e Constituição Federal como acontecimentos enunciativos ...67

3.4.Configurações da cena enunciativa e espaço de enunciação jurídicos ... 74

3.4.1. O político e a enunciação no Marco Civil da Internet e na Constituição Federal do Brasil de 1988 ... 76

3.5.Agenciamento da enunciação no acontecimento jurídico ... 79

3.5.1. Análise do acontecimento produzido pelo dizer jurídico em cenas enunciativas ...81

4. ANÁLISE SEMÂNTICO-ENUNCIATIVA DA LEI 12.965/14 E DA CONSTITUÇÃO FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988 ... 86

4.1.Apresentação do objeto e do procedimento de análise ... 86

4.2.Análise do preâmbulo da lei 12.965/14 ... 88

4.4.Análise com base nas reescriturações enumerativas do texto da lei ... 99

4.5.O artigo 19 da lei 12.965/14 na perspectiva dos modos de relação da articulação e da reescrituração ... 114

4.6.O artigo 9º e o enunciado-título da FN neutralidade da rede ... 125

4.7.Análise do preâmbulo da Constituição Federativa do Brasil de 1988 ... 134

4.8.Análise comparada dos acontecimentos CF/88 e Lei 12.965/14: relação por conformação e por diferença ... 141

5. CONCLUSÕES ... 147

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1. INTRODUÇÃO

A “necessidade” de regulação da ordem social é tema que atravessa séculos. Isto porque, como não se sabe se é a necessidade que cria a situação ou é a situação que cria a necessidade, as relações sociais foram, desde os meados do século passado, impactadas pelas diversas demandas advindas das mais diversas formas de transformações nos mais diferentes usos tecnológicos. A internet passou de espaço virtual das mais diversas formas de “liquidez humana” a espaço de relações tão judiciáveis quanto os espaços não virtuais.

No Brasil, país que ocupa há tempo o topo de ranking de acesso à rede mundial, os denominados espaços virtuais foram efetivamente judicializados (judicialização de espaços virtuais) quando a “forma de ocupação” de seus usuários começou a atingir espaços alheios e culminar em demandas por direito e deveres. Por outro lado, houve a necessidade da criação de um Marco Civil que regulasse tais relações, o qual trouxe consigo demandas que vão além do direito.

Esse pano de fundo enseja outras relações, como dito, para além daquelas imediatizadas por uma relação lógica materializada pela forma ação-reação, uma vez que traz à baila discussões de ordem não apenas jurídicas, econômicas e políticas, mas também linguísticas, no caso em particular, semânticas. Isto porque não se trata de relações meramente empíricas, adstritas ao campo de uma “prática” virtual, mas, antes, de relações simbólicas de classes definidas na língua, em cuja materialidade encontram-se dispostas as diferentes “facetas” do real. No cerne destas relações, também estão a semântica e o direito, enquanto objeto da ciência jurídica.

Não é de hoje que os diferentes campos da linguística se inclinam para o estudo analítico das mais diferentes áreas do saber. No entanto, quando buscamos estudos mais específicos, como o das relações entre uma ciência da linguagem e uma ciência jurídica, apesar de parecerem acessíveis e óbvias, demandam esforços maiores que o esperado. Principalmente se o trato primar pelas especificidades, tanto da linguística quanto da ciência jurídica. Esta aproximação nos conduz obrigatoriamente a duas consequências: de um lado, a perguntar que lugar ocupa o Direito nesses entremeios; de outro, a uma espécie de “ajuste epistemológico”

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(admitindo a dificuldade do proposto) para a definição dos “papéis” e lugares que estas disciplinas, ou estes diferentes domínios do saber, ocupam nesta pesquisa.

Há vários motivos para se tentar explicar essa dificuldade, mas o que aparece de sobressalto é o fato de que esses domínios de conhecimento são fundamental e historicamente distintos num aspecto, o epistemológico. No lado

linguístico, por uma epistemologia que, desde Saussure1, encontra-se fundada numa

forma de conhecimento baseada na constituição de um objeto específico para a linguística, a língua. Isto em Saussure, que abre um novo caminho na história dos estudos da linguagem, com a produção de procedimentos específicos de análise. Com ele, exatamente na caracterização da linguística, esta é colocada como ligada à semiologia, ou seja, o estudo da linguagem é um estudo da significação, em última instância. Saussure constitui isso a partir de um conceito como o de signo, caracterizado por uma relação arbitrária entre seus elementos, o que se articula com a noção de valor do signo e de seus elementos, colocando a questão da significação como algo do plano das relações de linguagem.

No lado da ciência jurídica, observamos uma espécie de epistemologia que, a partir da relação sujeito-objeto, trata o conhecimento como produto de uma “transferência de propriedades” do objeto para o sujeito, para quem a coisa conhecida é parte integrante de um sujeito cognoscente. Com base nestes termos, dizemos: a ciência jurídica se apresenta como uma ciência social inexata de paradigma metafísico-jurídico, dada a dinamicidade de seu objeto, o direito. Além disso, como veremos, o princípio dessa ciência é o de sustentar verdades. Vamos desenvolver um pouco mais este aspecto.

Ao tratar das tarefas atinentes à teoria geral do direito, Pachukanis (1988) mostra como os conceitos ligados a qualquer domínio do direito são eminentemente abstratos. Para o autor, as categorias jurídicas abstratas e fundamentais do direito positivo não dependem do conteúdo concreto das normas jurídicas, de caráter espontâneo das relações jurídicas e das normas, isto porque tais categorias conservam sua significação mesmo diante das alterações ocorridas no conteúdo material concreto do direito. Assim, para os neokantianos, as categorias jurídicas

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fundamentais representam uma realidade situada acima da experiência, de modo que, o sujeito e o objeto das relações jurídicas, por exemplo, representam o a priori da experiência jurídica, quer dizer, categorias independentes do sujeito e do objeto desta ciência. Assim, a relação jurídica é a condição indispensável e única da ciência jurídica. Não há, pois, ciência sem relação jurídica.

Desse modo, para um neokantiano, “a ideia do direito” não precede a experiência, mas sim, após a experiência “prática”, o direito enquanto abstração. Deve, pois, uma teoria científica do direito ocupar-se dessas abstrações? Para alguns autores, há uma clara distinção entre uma jurisprudência dogmática e uma disciplina prática, em certo sentido técnica (PACHUKANIS, 1988). O autor cita Karner para dizer: “onde acaba a jurisprudência aí começa a ciência do direito” (PACHUKANIS, 1988, p. 17). Seria a jurisprudência capaz de evoluir para uma teoria geral do direito?

Segundo o direito neokantiano burguês, há duas categorias opostas para responder esta pergunta, a do Ser e a do Dever-Ser, que se traduzem enquanto duas espécies de pontos de vista científicos: o explicativo e o normativo. O primeiro encara os objetos sob o aspecto do seu comportamento empírico; o segundo considera os objetos sob o aspecto das regras precisas exprimidas através deles. Ainda, segundo Pachukanis (1988, p. 21), autores marxistas, em regra, quando tratam de conceitos jurídicos, pensam “no conteúdo concreto da regulamentação jurídica adaptada a uma determinada época (...) naquilo que os homens consideram como sendo o direito nesse estágio da evolução.”

Pachukanis (1988) trata, portanto, do conceito de direito exclusivamente em termos de conteúdo, sem nada a expor sobre a forma jurídica, não obstante considere que a teoria marxista deve, além de examinar o conteúdo material da regulamentação jurídica na história, dar uma explicação materialista dessa regulamentação.

Numa direção relativamente diferente, Althusser (1999) retoma Marx e Engels e apresenta três características apontadas por estes autores relativas ao Direito. É de se notar que, quando da apresentação desses conceitos, o autor não faz referência ao direito como uma “ciência do direito” ou “ciência jurídica”, uma não referência que, segundo o que podemos depreender do texto, está ligada justamente

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ao sentido dessas categorias do direito, que são: 1. A sistematicidade do direito; 2. A formalidade do direito; e 3. A repressividade do direito.

O sentido de sistematicidade e formalidade estão ligados de tal forma que aquela é apresentada como correlata desta. Assim, a sistematicidade do direito (dada como uma impossibilidade de contradição entre as regras que o constituem) e sua formalidade (dada enquanto uma formalidade personal, isto é, definida por atos formais que dizem respeito a pessoas jurídicas formalmente livres e iguais perante o direito, e não por uma formalidade moral) constituem o que Althusser (1999) chama de universalidade formal: o direito é válido para – e pode ser invocado por – toda pessoa juridicamente definida e reconhecida como pessoa jurídica (isso tem estreita relação com o modo de divisão do real). Isso (quero dizer: essa não cientificidade do direito) está mais claro na definição que o autor (p.83) atribui ao direito: “(é) um sistema de regras codificadas (Código Civil, Código Penal etc.) que são aplicadas, isto é, respeitadas e contornadas na prática cotidiana.”

O direito operaria, assim, por uma sistematicidade (dinâmica) que lhe é própria, constitutiva, que é “contornada” pela prática social. Este sentido o aproxima mais da língua e menos da linguística. Com isso, queremos dizer que, assim como a língua (com sua sistematicidade e dinâmica próprias!) configura-se enquanto objeto da linguística (dados o sujeito e a história), poderíamos dizer, então, que o direito configura-se como objeto de “uma” ciência jurídica (dados o sujeito e a história).

Com base nestes elementos, além dos que serão doravante apresentados, é que argumentamos no sentido de uma não cientificidade do Direito. Por isso, distinguimos, como o fazem alguns juristas, “direito” de “ciência do direito’ (termo que não usei em meu trabalho) ou “ciência jurídica”. O direito é, assim, uma téchne, em termos aristotélicos.

Neste trabalho, propomos a análise semântico-enunciativa de uma relação dada em termos de linguagem muito específica entre dois textos jurídicos de grande

importância para sociedade hodierna: o texto da “Constituição da República

Federativa do Brasil de 1988” e o do “Marco Civil da Internet de” (Lei 12.965 de 2014), cuja escolha orientou-se pelo que representa a Constituição para o ordenamento jurídico, enquanto um fato social implicado historicamente pelo processo de

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redemocratização brasileiro e, no lado do Marco Civil, por sua indiscutível materialidade, representativa que é de uma inflexão nos modos de relação social na ordem transnacional, dada uma divisão internacional de diferentes fatores sociais. Para tanto, apresentamos, a partir da semântica do acontecimento, de orientação enunciativa e materialista, um estudo comparativo desses textos, a partir de uma análise que seja capaz não só de demonstrar suas possíveis diferenças, como também, e na medida do possível, apontar os possíveis desdobramentos sociais decorrentes dessas diferenças.

A plausibilidade dessa análise assenta-se no fato de que, como procuramos demonstrar desde o início, no capítulo 1, a teoria semântica de que partimos possui particularidades que apresentam elementos capazes de demonstrar e discutir os pressupostos presentes em outra ciência, seja por questionamentos, seja por propostas de um novo olhar sobre determinados objetos. Para tanto, apresentamos a semântica do acontecimento como “ferramenta” para uma possível discussão relativa a algumas particularidades do direito, da ciência jurídica e do ordenamento jurídico como um todo.

O capítulo 2, por sua vez, procura aprofundar uma discussão sobre a natureza das ciências trazidas à baila pela análise. Assim, o conhecimento da natureza da ciência jurídica e da ciência linguística tornam-se elementos fundamentais para entender a comparação proposta no trabalho. No cômputo dessa relação/discussão está o papel do direito que, como objeto da ciência jurídica, exerce uma função fundamental para se entender como o discurso jurídico atravessa esse modo de fazer jurídico (téchne) em sua relação com o lugar que produz conhecimento para este fazer, a ciência jurídica. A questão é: como o sentido é tratado pela ciência jurídica, consequentemente, pelo direito?

Ainda neste capítulo, que é elaborado com vistas à comparação entre semântica e ciência jurídica, pensada a partir de sua disciplina prática, o direito, discutimos que relações são possíveis se pensar a partir da comparação entre a Lei

12.965/14 (Marco Civil da Internet2) e a Constituição da República Federativa do Brasil

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de 19883. Isso para pensar a relação entre os textos infraconstitucionais e o

constitucional, isto é, como o sentido é pensado e operado dada uma relação entre estes textos pautada no princípio do controle jurisdicional de constitucionalidade? Que bases teria a teoria da constitucionalidade para afirmar que é possível tratar o sentido da norma infraconstitucional como identificado, conformado ao texto constitucional?

O campo ou seção destinado a guardar a aplicação propriamente dita do procedimento analítico da teoria semântico-enunciativa, no capítulo 3 deste trabalho, destinou-se, por meio de suas ferramentas de análise, a apresentar, por meio de sondagens seguidas de recortes dos textos jurídicos comparados, como se dá o funcionamento dos diversos mecanismos por meio dos quais a significação e o sentido são trabalhados em uma semântica enunciativa. Por isso, a análise investigou quais as relações e inferências não previstas pela Teoria do Direito em seu rol de procedimentos interpretativos e, a partir do método comparativo, procurou demonstrar e questionar os princípios da constitucionalidade das leis. Assim, a análise, a título de exemplo, dos artigos 2º, 3º, 9º e 19 do Marco Civil e do artigo 5º da CF/88 (dos direitos sociais), além da análise do preâmbulo de ambas as leis, conduziram a investigação para as primeiras respostas às indagações feitas, no início, em relação ao objeto de pesquisa.

Este caminho permitiu algumas inferências, entre elas, algumas que deram conta de como o sentido pretendido pelo controle de constitucionalidade deve ser discutido se considerados outros domínios de conhecimento, neste caso, o caminho oferecido pela semântica do acontecimento. Por isso, em termos de significação, resta discutir se a passagem de um texto a outro se dá por uma conformação, o que confirmaria os preceitos do controle jurisdicional, ou se tal passagem se dá por uma

diferença, o que, no limite, permitiria colocar o conceito de controle de

constitucionalidade “em suspenso”, do ponto de vista da análise.

Isto posto, espera-se que a presente pesquisa tenha condições de expressar e demonstrar os liames existentes entre a linguagem jurídica, afinal direito é essencialmente linguagem, e o social e, nessa medida, demonstrar também que a semântica enunciativa, enquanto disciplina linguística e social, seja capaz de abrir

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caminhos para uma reflexão prática em direção às práticas sociais, isto é, em direção às ideologias que funcionam e movimentam as instituições sociais em geral. Segundo Streck (2000, p.29), “é no quadro da matriz hermenêutico-linguística que então terá que ser compreendida a condição essencial do direito na sua relação com a sociedade.” A hermenêutica jurídica refere e designa um mundo prático, material, ideológico, e é nesse quadro que deve atuar a Semântica Enunciativa oferecendo alternativas à sociedade.

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2. A SEMÂNTICA DO ACONTECIMENTO: UMA BREVE INTRODUÇÃO

2.1. A natureza científica da linguística

Em princípio, não há razão, nem necessidade, para que a linguística se preocupe em defender seu status científico, ainda que diante da inquestionabilidade do status de outras disciplinas como a física, a biologia ou a química (LYONS, 1981) e do fato de que tenha, desde Saussure, um objeto definido. Outro fato é que, em relação a este objeto, a ciência linguística percorreu caminhos “naturais” de uma ciência, seja em relação às insatisfações próprias de uma ciência (veja-se o caso dos estudos semânticos), seja em relação ao que Vogt (1977) chama de divisão do universo fenomenológico (língua/fala) operado por linguistas teóricos ao longo dos anos, que redundou em inflamadas discussões a respeito das conhecidas dicotomias funcionais, que levaram, por si mesmas, a disparidades de opinião em torno da natureza do objeto linguístico.

O uso que faço da expressão natureza científica no título deste capítulo não é empregado enquanto uma defesa do caráter científico da Linguística, inclinação

praticamente “desnecessária” em nossos dias, mas como um modo de tratar da

especificidade de sua natureza, o que a diferencia de outras ciências. Não obstante isso, para fins de esclarecimento e de contextualização, proponho, de início, uma breve reflexão histórico-conceitual de sua cientificidade para, em seguida, tratar dos aspectos mais específicos de sua natureza.

O primeiro capítulo do Cours de linguistique générale (CLG), obra póstuma do mestre genebrino Ferdinand de Saussure, organizada por seus alunos Charles Bally e Albert Sechehaye, já em seu primeiro parágrafo, trata a palavra ciência, acompanhada da palavra objeto, o que reflete, de saída, a preocupação de Saussure em apresentar uma profunda reflexão sobre a importância e preocupação em se apresentar um objeto e um método em uma ciência humana. Tal uso correspondia, segundo Bouquet (2004), entre outras coisas, a uma das preocupações do autor com a cientificidade da linguística, a qual refletia um movimento europeu, à época, de positivação dos objetos de estudos humanos, que permeou o período compreendido entre os séculos XIX e XX.

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Com efeito, não há razão, atualmente, para se construir um conjunto de argumentos no sentido de defender o status científico da linguística. Porém, muito há que se falar a respeito da natureza desse estudo científico da linguagem, dada sua importância e abrangência no cômputo das ciências naturais, além de sua repercussão nos estudos relativos a outros campos da ciência.

Parece lugar comum entre linguistas o fato de que, mesmo tendo percorrido caminhos anteriores e posteriores a Saussure, a ciência linguística tem em seu estudo, especificamente no Cours (pensado aqui com breve apriorismo) o epicentro e o ponto de partida para o entendimento de sua natureza, a de uma linguística

propriamente dita. E, se eventualmente pensarmos em alguma forma de

estruturalismo ligado à linguística, entenderemos por estruturalismo, alinhado à Hjelmslev (1991), uma posição científica que estuda a linguagem/língua, cuja essência é a de uma entidade autônoma de dependências internas, isto é, uma estrutura.

Por outro lado, evocar Saussure aqui implica apontar, como o fez Vogt (1977) ao tratar do conceito de intervalo semântico, tanto riquezas quanto as limitações no desenvolvimento de uma das principais disciplinas da linguística, a semântica. Ocorre que, ao postular seu status de ciência, a linguística tem de assumir a divisão de seu universo fenomenológico, operada por seu universo teórico. Dessa

divisão, nascem dicotomias funcionais, tais como sincronia/diacronia,

sentido/significação, enunciado/enunciação e, com destaque, a dicotomia língua/fala. É justamente a partir desse corte, operado na definição da linguística como ciência, que surge o mote de que seu objeto é a língua, e não a fala, a competência e não a performance (VOGT, 1977). Para o autor, a distinção língua/fala recobriu, historicamente, a fala como sendo o termo negativo, o que abriu espaço para que outras ciências, e não a linguística, tentassem explicá-la.

De volta a Saussure, sabe-se que é considerado o fundador da linguística moderna e, ainda que o estruturalismo não tenha sua origem nesse autor, Lyons (1990, p.11) nos mostra que sua importância consiste em formular bases fundamentais para a cientificidade linguística:

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[...] as bases de sua cientificamente tese estruturalista são que uma língua é uma estrutura relacional única, ou sistema, e as unidades que identificamos ou postulamos como construções teóricas, ao analisar a frase de uma língua particular (sons, palavras, significados, etc.), derivam tanto a sua essência como a sua existência das suas relações com outras unidades do mesmo sistema linguístico.

Segundo Paul Henry (1992, p. 14), a questão de Frege sobre a pressuposição em torno da ciência ou ilusão na linguagem ordinária, ainda que não mais aceitável hoje, permanece. Isto porque

“a consolidação das posições materialistas em epistemologia e em história das ciências transforma os pontos de vista sobre o que Frege chamava ciência (e ilusão); a começar pelo que concerne à própria linguística e à característica de seu objeto”

Dessa forma, para autores como Henry, Pêcheux e Gadet, a cientificidade não é colocada em termos estruturais, mas em termos materiais, isto é, enquanto uma materialidade de língua. Tanto que Gadet e Pêcheux (2004) afirmam que o objeto da linguística é o “real da língua”. Segundo estes dois autores, “a linguística não poderia se reduzir a uma concepção de mundo. Ela comporta intrinsecamente uma prática teórica que toma a língua como objeto próprio”, isto é, o objeto é este real da língua, mais precisamente, de uma prática linguística que trabalhe a relação da materialidade da língua com a materialidade da história.

Conforme Lyons (1982, p. 48), “o empirismo é muito mais do que a adoção de métodos empíricos de verificação e confirmação”, sua natureza remete-se ao fato de que o conhecimento provém da experiência, especificamente de dados da percepção e dos sentidos, indo de encontro ao racionalismo, para quem a mente interpreta os dados da experiência. Segundo Hjelmslev (1991, p. 33), “o método ‘cientificamente legítimo’ se resume, em última análise, ao método empiricamente adequado”.

Nesse campo, eleva-se em importância os questionamentos trazidos por Milner (2012, p. 9) ainda no prefácio de sua obra:

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[...] por um lado, porque eu sequer acreditava na epistemologia: se Koyré e Lacan têm razão, e a ciência, desde Galileu, é apenas um campo característico para a observação, em função da combinação de dois caracteres – constituição de uma escrita matematizável e validação de toda técnica eficaz -, então a questão epistemológica fundamental “tal conjunto de proposições é uma ciência?” revela-se não tendo como ser mais frívola; basta esclarecer se essas proposições pertencem ao campo da ciência, isto é, se apresentam as características requeridas. [...] Isso porque, se é preciso que o marxismo seja ciência, vemos justamente que a ciência não teria como ser definida modernamente: onde está a escrita do marxismo, onde está a técnica que ele validaria?

Isso posto, caberá aos linguistas questionarem-se quando da “imposição” da nomenclatura “ciência”, em nome de um cientificismo nomenclatural e vazio, contra a objetividade da pesquisa em uma área que tem mais a mostrar enquanto área com um objeto bem definido. Os questionamentos de Milner (2012) levam exatamente a esse tipo reflexão, justamente porque “nós”, linguistas, podemos correr o risco de, em nome da ciência, esquecermos o que há de mais fascinante na linguagem: o objeto indicado, desde Saussure, até os dias atuais.

Não pode, nem deve, o status científico tomar conta da dinâmica imanente do objeto científico da linguística. Ou seja, independentemente de classificações, a linguística não perderá seu status, qual seja, o de tratar a linguagem como nenhuma outra ciência o faz. Segundo Pêcheux (1988, p. 172), “a história da produção dos

conhecimentos não está acima ou separada da história da luta de classes”. Para o

autor, que postula contra um cientificismo de cunho idealista, “a produção histórica de um conhecimento científico dado [deve ser pensada] como o efeito (e a parte) de um processo histórico determinado, em última instância, pela própria produção econômica”.

Para o autor francês, não há que se falar em uma formulação do conhecimento científico alijada da história, por isso, ao se romper a epistemologia e se reconhecer a forma-sujeito do discurso, chega-se a uma conclusão importante no discurso: não há “discurso científico” puro.

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2.2. Bases para uma análise semântico-enunciativa das leis

Em O aparelho formal da Enunciação4, Émile Benveniste (1974) postula

logo de saída, em sua tese sobre a linguagem, que a enunciação ocorre no funcionamento da língua, diferente do que ocorre no modo e nas condições de funcionamento de emprego das formas. Desse modo, a enunciação, segundo o linguista francês, caracterizar-se-ia por “este colocar em funcionamento a língua por um ato individual de utilização” (Ibidem, p. 82), isto é, ela é “o evento do aparecimento de um enunciado” (GUIMARÃES, 2002). A questão que se coloca, contudo, é a que/quem este funcionamento está reportado, se a um locutor, se a uma centralidade do sujeito ou a qualquer outra rubrica. Nas últimas décadas, esta questão é colocada, muito particularmente, por uma abordagem teórico-metodológica denominada Semântica do Acontecimento (GUIMARÃES, 2002).

Assim colocada, a questão fundamental relativa ao objeto da ciência linguística passará a girar em torno então de uma órbita que incidirá, e implicará, segundo o que assevera Guimarães (2002), diretamente naquilo que se define por

língua e sujeito. De modo que o que se coloca pelo viés de uma semântica do

acontecimento é a possibilidade de um funcionamento enunciativo da língua não operado por um locutor ou por uma centralidade no sujeito, a partir do que fora colocado por Ducrot (1984) em sua teoria da polifonia da enunciação. Posto dessa forma, o acontecimento, ainda que um acontecimento de/na língua, não é operado por um sujeito em direção à língua, como um fazer histórico, e sim como um sujeito constituído (historicamente) por um funcionamento cuja essência encontra-se na reprodução de sua própria constituição como sujeito (GUIMARÃES, 2002). Assim, o acontecimento, que é caracterizado como o que faz diferença na sua própria ordem, constitui-se enquanto espaço de enunciação, o qual se constitui pelo funcionamento da língua/línguas, funcionamento este que agencia falantes a dizer, os quais são definidos enquanto figuras denominadas lugares de enunciação (GUIMARÃES, 2018).

4 O texto faz parte da obra Problemas de Linguística Geral vol. 2, do mesmo autor, em seu capítulo 5, edição de 1989.

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Outro ponto importante aqui é o fato de que, em não havendo um contexto que induza este ou aquele acontecimento, ou que interfira em seu funcionamento/processo, deduz-se que há um acontecimento que, de fora, põe a língua em funcionamento, em virtude de sua relação como o que Guimarães (2018) chama de falante. Nenhuma dessas postulações seria possível sem um olhar atento sobre a história da constituição da semântica, no final do século XIX, como disciplina das significações.

A análise linguística da qual parto neste trabalho tem suas bases principalmente nos trabalhos de Emile Benveniste (1989) como vimos, e de Michel Bréal (2008). Além desses autores, importa observar inclusive, ao longo deste texto, que contribuições há no trabalho de Oswald Ducrot (1972), principalmente no que diz respeito à sua concepção de língua e de atos de fala, especificamente nas interfaces que estabelece com a corrente pragmática e com a saussureana.

De início, sabe-se que, e isso se mostrou ao longo dos anos seguintes ao final do século XIX, noções como sentido, referência e significação, entre outras igualmente fundamentais à linguagem, fazem parte de um conjunto complexo de conceitos pertencentes principalmente à semântica, mas que, por razões diversas, não deve nem se limita a textos específicos, isso inclui, portanto, os textos jurídicos como textos fundamentalmente importantes sobre os quais deve inclinar a análise semântica.

2.3. O Texto como acontecimento de enunciação

As reflexões sobre o sentido nas línguas e na linguagem, do ponto de vista enunciativo, colocam no epicentro dessa discussão a relação falante(s) e língua(s). No percurso dessa busca, aparece o texto como modo fundamental de construção da abordagem teórico-metodológica denominada Semântica do Acontecimento, tal como apresentada brevemente acima.

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Conforme demonstrado em sua obra intitulada Texto e Argumentação, texto de 1987, Guimarães (2001) trata da “centralidade do texto” na reflexão que faz do fato de linguagem que os Estudos da Enunciação, com Oswald Ducrot e J. C Anscombre, introduziram como questão para a Linguística, conforme apontado por Oliveira (2012). Em rápidas palavras, ocupar-nos-emos aqui em demonstrar como o texto, enquanto unidade complexa em relação de integração com seus enunciados, pode ser considerado um acontecimento de enunciação.

Um dos pontos importantes nos estudos enunciativos é a noção de argumentação, que não é tratada segundo uma relação entre enunciados, mas a partir da organização textual dada pela enunciação. Por uma questão de escolha metodológica, ainda que não nos utilizemos da argumentação, a análise partirá do texto considerado enquanto acontecimento de enunciação em cujo interior os sentidos são determinados por diferentes modos de relação. Portanto, essa teoria assenta-se numa noção de texto segundo a qual duas questões devem ser consideradas: a) de um lado, deve-se levar em conta que há um acontecimento de leitura; e b) há um acontecimento de enunciação em que o texto foi enunciado. É em relação a este segundo fato de linguagem que o presente trabalho eminentemente debruça-se (GUIMARÃES, 2013).

A posição semanticista assumida aqui trata de colocar uma especificidade importante: a noção de texto não é, nem deve ser entendida ou reduzida àquilo que ele simplesmente refere, ou a aspectos meramente formais ou a uma noção de textualidade local entendida por relações referenciais internas de coerência capazes de sustentar a posição interpretativa de que um determinado leitor, por sua leitura,

buscaria encontrar algo escondido no texto, uma intenção, uma ideia, uma “moral”.

Por esta posição, a de semanticista, escolhemos certos “aspectos” da linguagem e, a partir deles, procederemos às análises que se projetam, uma sobre as outras, levando a uma interpretação sustentada do texto. (GUIMARÃES, 2013).

Ora, se assumimos com Guimarães (2007) o fato de que o sentido de um enunciado estabelece-se numa relação entre elementos linguísticos e o texto, e também entre textos, enquanto unidade integrativa de que esses fazem parte, então podemos igualmente assumir, e afirmar, que o texto, para além de suas peculiaridades formais “já conhecidas”, é o próprio acontecimento e, além disso, ser capazes, à luz

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da teoria, de responder à pergunta: o que é o acontecimento na perspectiva semântico-enunciativa?

Guimarães (2002, p. 11) considera que “algo é acontecimento enquanto diferença na sua própria ordem”. Quer isso dizer que o que caracteriza este acontecimento de linguagem é a diferença de que não se trata de um fato acontecido e recortado pelo tempo no qual estaria inserido, mas o fato de que ele (o acontecimento) é que temporaliza, pela linguagem. Um acontecimento de enunciação não é, portanto, um fato novo num tempo linear, dado por uma sucessão lógica, linear, mas um fato de linguagem que funciona enquanto uma diferença que temporaliza na enunciação de que constitui. “O acontecimento instala sua própria temporalidade: essa é a sua diferença” (GUIMARÃES, 2005c, p. 11).

Assim, importa salientar que Guimarães (2005c) distancia-se do posicionamento benvenisteano, segundo o qual o tempo da enunciação constitui-se pelo locutor ao enunciar. De modo que, para o autor da semântica do acontecimento, o presente do acontecimento não é o tempo no qual o locutor diz eu, em que se inaugura uma temporalidade, “fundada” por um sujeito. Este sujeito não é, portanto, a origem do tempo da linguagem, mas uma figura enunciativa tomada na temporalidade do acontecimento, na materialidade histórica.

Outro ponto é: como entender a natureza dessa temporalidade inaugurada pelo acontecimento na enunciação? Ela, a temporalidade, configura-se enquanto um presente que abre em si uma latência de futuro, que atribui projeção ao acontecimento, o que seria sua “interpretabilidade”. Há, assim, no dizer, um depois incontornável e próprio dele, contra o qual não há argumento, contornos ou rearranjos.

Ao definir enunciação, Guimarães (2018, p. 37, grifo nosso) o faz a partir de uma associação necessária com o conceito de acontecimento. Define-o, então, enquanto uma instância diferencial de ordem temporal própria, não empírica (não é um fato em si), ordem esta que lhe atribui o sentido específico de sua ocorrência. Diz o autor:

Esta definição considera, de um lado, que o acontecimento não pode ser visto como algo empírico, como se acontecimento fosse, simplesmente, o fato de que algo ocorre. Por exemplo, um ônibus colidir com um prédio seria um acontecimento, que poderia ser descrito pelo enunciado um ônibus bateu no

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prédio. A definição de acontecimento aqui considerada, diversamente dessa posição empirista, exige que algo seja relacionado a uma certa ordem que lhe atribui uma significação. Uma batida de um ônibus num prédio pode ser um ato que é parte de um roubo de um banco por uma quadrilha de ladrões, por exemplo, ou um acidente de trânsito. Num caso a colisão do ônibus é parte do acontecimento do roubo, no outro a colisão é um acontecimento no trânsito da cidade. Assim a ordem em que algo é considerado é que lhe

dá o sentido de acontecimento específico.

Desse modo, dizemos, com Guimarães (2018), que é justamente o fato de o acontecimento ser estabelecido a partir de uma diferença em sua própria ordem (inaugurar seu próprio tempo) que é o que leva a caracterizar a enunciação. Dessa forma, aquilo que é analisado deve estar circunscrito, dimensionado e, nesta dimensão, o acontecimento será caracterizado. Aquilo que ocorre é acontecimento na medida em que é tomado por suas especificidades numa dada história. É nesta medida que o que ocorre será um acontecimento diferente.

Outro ponto apontado por Guimarães (2018, p. 38) é que o que torna um acontecimento específico, dado um universo qualquer, isto é, o que dá especificidade ao que ocorre, é “uma temporalidade de sentidos: um passado, um presente e um futuro.” Justamente por isso, como dito acima, o acontecimento não está no tempo, mas na constituição de sua própria temporalidade. Assim, o passado do acontecimento não é algo anterior, mas o sentido de enunciações passadas; enquanto que o presente é o próprio da relação de enunciação e seu autor e, por fim, um futuro de sentidos que o acontecimento projeta.

Apoiados nessas considerações, dizemos que o texto, enquanto integrado que está por enunciados, é uma unidade complexa não unívoca que se caracteriza como o próprio acontecimento, objeto de nossa análise. No nosso caso, tomaremos os textos “Constituição Federal do Brasil” e “Marco Civil da Internet” (Lei 12.965/14)

como acontecimentos, consideradas suas peculiaridades enunciativas e,

posteriormente, comparados segundo os critérios e objetivos da presente análise. Assim, nos ocuparemos, por hora, em definir, brevemente, cada um desses acontecimentos/textos, consideradas suas peculiaridades históricas, discursivas e linguísticas no interior da ciência jurídica e do direito. É imprescindível notar, para a análise que segue, e para a definição do que seja sentido, partiremos do pressuposto

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teórico de que “enunciar num acontecimento é dizer algo com sentido, que se produz pela temporalidade própria de cada acontecimento.” (GUIMARÃES, 2018, p. 41).

3. RELAÇÕES ENTRE SEMÂNTICA E DIREITO

3.1. A Natureza ontológica do direito

Nesta seção, não trataremos da questão jurídica como uma epistemologia jurídica, que tem “a incumbência de estudar os pressupostos, os caracteres do objeto, o método do saber científico e de verificar suas relações e princípios” (DINIZ, 2014, p. 22). Antes, procuro entender seu caráter científico a partir das possíveis relações que estabelece com a ciência linguística. Além disso, tratarei de analisar, ainda que brevemente, na parte final, o ordenamento jurídico do ponto de vista discursivo/semântico, na medida em que esse enviesamento analítico aproxime-se da teoria semântica. Importa também frisar, de antemão, a diferença epistemológica entre direito e ciência jurídica, uma vez que não consideramos o direito como ciência (epistéme) mas sim como uma arte (techné), no sentido dado pelos gregos, isto é, como uma “forma de conhecimento prático”, mais especificamente, como se deve

fazer algo. Este aspecto do direito será pormenorizado no capítulo seguinte.

Isso pode ser visto na distinção apresentada e operada por Diniz (2014) em sua obra. Para a autora, uma introdução à ciência do direito é uma epistemologia

jurídica e, por isso, não deve ser tratada como uma alusão direta ao direito, mas sim

como uma alusão à ciência que trata dos fenômenos jurídicos, não devendo ser confundida com o direito. Este é concebido pela autora como objeto da ciência jurídica. Isso põe de início uma tendência que deveremos seguir relativamente a um de nossos objetos, talvez o principal: trataremos, menos, de ciência jurídica e mais de seu objeto, o direito, especificamente em seu “espaço funcional” mais próximo: o do ordenamento jurídico. Por fim, a autora enuncia o seguinte: “quem trata do direito está elaborando ciência jurídica, mas quem se ocupa com a ciência do direito está fazendo epistemologia” (DINIZ, 2014, p. 162).

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Reveste-se de interesse observar em que termos, segundo a autora, são colocados os conceitos de conhecimento, sujeito e objeto. Para ela, conhecer é trazer para o sujeito algo que se põe diante dele, que é o objeto. Nesse sentido, o conhecimento é visto como um “conteúdo” e o sujeito um recipiente desse conteúdo, a partir daquilo, o objeto, que se manifesta diante do sujeito, ponto do qual divergimos em vários aspectos, como veremos. Primeiramente, porque não tratamos na semântica enunciativa de um “sujeito do conhecimento”, mas sim de um sujeito da linguagem; depois, porque o conhecimento não é identificado com um conteúdo, mas sim pelo reconhecimento, inclusive pela linguística, do primado do ser sobre o conhecimento (HENRY, 1992), dado na materialidade da língua. Vemos, assim, uma relativa centralidade no sujeito nessas concepções jurídicas e, além disso, o conhecimento operado pela transferência das propriedades do objeto em direção ao sujeito pensante. O objeto, então, “representa” o conhecimento dentro do sujeito: um conteúdo (DINIZ, 2014).

Com isso, temos uma correlação dada por uma reciprocidade invariável, na qual o sujeito é dado por cognoscente e o objeto como cognoscível, entre aquele que conhece e aquilo que é conhecido pelo sujeito, respectivamente. Há aqui uma noção de passagem de um “eu” a sujeito cognoscente, em relação ao objeto que este sujeito conhece. Assim, por estes termos, entende-se que este objeto a ser conhecido não é um “em si”, mas dado a partir da relação que estabelece com o sujeito conhecedor, isto é, este objeto conhecido é uma imagem e não algo do mundo extramental. Por isso, o sujeito só é sujeito se identificado na relação com o objeto apreensível e o objeto somente é objeto quando apreendido pelo sujeito (STRECK, 2000).

Em outro campo, agora o da ciência, a atribuição “científico”, para qualquer área, é carregada de significado e determinadas implicações, e, no caso do direito, não é diferente.

Se analisarmos a abertura do tema realizada por Diniz, observaremos determinadas implicações recorrentes à noção de ciência no campo do direito (DINIZ, 2014, p. 33):

A ciência é, portanto, constituída de um conjunto de enunciados que tem por escopo a transmissão adequada de informações verídicas sobre o que existe,

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existiu ou existirá [...] o conhecimento científico é aquele que procura dar às suas constatações um caráter estritamente descritivo, genérico, comprovado e sistematizado. Constitui um corpo sistemático de enunciados verdadeiros [...] Como não se limita apenas a constatar o que existiu e o que existe, mas também o que existirá, o conhecimento científico possui um manifesto sentido operacional, constituindo um sistema de previsões prováveis e seguras, bem como de reprodução e inferência nos fenômenos que descreve. (grifo meu)

Vemos que, por essa visão de ciência, o que se apresenta com caráter de objetividade, na prática, não se realiza como tal. Isso porque termos como “adequada” e “verídica” têm, em si, conotações peculiares ao Direito. Assim, por essa visão, não resta à ciência a transmissão de informações, mas também que circulem no interior desse espectro veritativo, dados os parâmetros de cada área. Daí a ideia de “campo sistemático de enunciados verdadeiros”. Por fim, o sentido da operacionalidade ligado ao de inferência encontra-se sustentado no argumento da necessidade de sistematização do conhecimento, o que dará o tom dos objetivos da natureza da ciência jurídica.

A ideia de uma sistematização do direito vem de uma outra ideia, a de que sua natureza não deve ser pensada como um mero “conjunto de normas”, e sim como um sistema jurídico (FREITAS, 2004), sobre o qual este autor considera necessária uma reformulação, em termos de significado e extensão, uma vez que seu conteúdo, justamente por força dessa natureza valorativa, transcende o positivado.

Essa visão abarca em si, entre outros, o tema do textualismo, próprio das discussões de hermenêutica jurídica, que, de alguma forma dialogam tecnicamente (em termos de linguagem) com o que se concebe de direito enquanto ciência. Cabe, então, perscrutar mais de perto esse sentido de sistema atribuído ao direito.

Para o próprio Freitas (2004), o direito positivo não deve ser considerado um sistema fecha em si mesmo, isto é, à base de definições alheias ao mundo material e históricos, enquanto, apenas, valores, mas sim como um sistema aberto. O autor salienta que “como objeto de cognição e de compreensão, o sistema jurídico mostra-se dialeticamente unitário, aperfeiçoando-mostra-se no intérprete (...) o sistema jurídico nem é, nem pode ser fechado” (p.37), outorgando unidade ao ordenamento jurídico.

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O sentido de sistema, aplicado que está ao ordenamento jurídico, carrega, “por si mesmo”, uma “inexplicabilidade” suficiente para atribuir-lhe o estigma de ser obrigatório, conforme a explicação de Freitas (2004, p.38)

[...] a validade do sistema jurídico, ou a sua conformidade com eventuais regras de reconhecimento (Hart), funda-se, em última instância, sobre valores, mostrando-se inegável a concorrência de múltiplos elementos axiológicos em todas as construções jurisprudenciais, justificando-se a multiplicidade como sinal de pluralismo democrático

Para o jurista, o direito deve ser considerado como interativo, pois sua cognição não comporta rígida dicotomia entre sujeito e objeto. Neste ponto, em que se inclui o sentido de sistema, vemos emergir a ideia de que o observador não deve descrever objeto senão pela valoração deste, sem a qual, não pode inserir-se cognitivamente na história. “(...) a sua materialidade (do direito) determina a forma, prévia ou supervenientemente. E o sistema não se constrói dotado de estreitos e definitivos contornos...”5. Isto é, não há, no sistema jurídico, rigidez absoluta entre o

formal e o material.

Ainda que atrelado ao ramo da hermenêutica jurídica, o sistema jurídico é assim definido por Freitas (p. 54):

[..] uma rede axiológica e hierarquizada topicamente de princípios fundamentais, de normas estritas (ou regras) e de valores jurídicos cuja função é a de, evitando ou superando antinomias em sentido lato, dar cumprimento aos objetivos justificadores do Estado Democrático, assim como se encontram consubstanciados, expressa ou implicitamente, na Constituição.

Por essa definição de sistema, inferimos alguns pontos em que ela se sustenta e dá a entender. a) uma rede de valores hierarquizados e baseada em regras;

b) um lugar em que se “evita” a contradição; c) o sistema jurídico é finalística e

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sistematicamente baseado na Constituição. Com isso, é preciso que as decisões atinentes a essa área estejam consubstanciadas pelo Estado de Direito.

Para Diniz (2014), o saber científico deve se calcar numa ordem de “constatações verdadeiras”, o que mostra como o direito pauta-se, do ponto de vista sistêmico, por uma questão veritativa, chegando a equipará-lo aos elementos da própria ciência. Compara-o, inclusive, a quesitos como “coerência interna” do pensamento tipicamente jurídico consigo mesmo, com seu objeto e com operações ligadas a cognoscibilidade.

Falar em uma ciência jurídica implica o trato de concepções epistemológico-jurídicas, o que Diniz (2014) o faz ao colocar esta ciência, de modo particular, como distinta por seu método e objeto. No caso do objeto, por exemplo, ocorre a necessidade advinda de que toda ciência, em regra, assim como todo conhecimento, pressupõe um objeto. E qual é o objeto da ciência jurídica?

A resposta dá-se pelo próprio da sistematização dessa ciência, isto é, pelo que resulta desse processo. Assim, seu objeto é o direito propriamente dito, apesar dessa opinião não ser um consenso entre juristas. Evidentemente, por conta desse cisma entre operadores da ciência jurídica, o problema da cientificidade do saber jurídico como questão epistemológico-jurídica não deve ocupar aqui maior espaço do que cabe ao objeto deste trabalho, inclusive pelo fato de ser objeto de estudo específico da filosofia do direito. Mesmo assim, vale ressaltar que esse ponto toca o tema proposto em vários aspectos, especialmente naquele que nos interessa diretamente aqui: a fundamentação de um modo particular de se operar em seu interior um modo particular de designação, nos termos em que colocamos aqui este termo, como veremos mais adiante.

Em um estudo realizado por Alves (2010 apud LOURENÇO, 2008, p. 77), já se apontava de modo bastante direto as implicações dessa concepção unívoca transferida para as concepções de linguagem dentro do campo da ciência jurídica.

Não existe ainda no Brasil uma linha de pesquisa consolidada que faça a relação direito/linguística, ficando as discussões em torno do discurso jurídico, sendo tematizada por e entre linguistas, enquanto que as investigações sobre a linguagem se dão no âmbito da hermenêutica jurídica, que a concebe como unívoca, e, portanto, estática. A interpretação jurídica consagra o logicismo e concebe o silogismo como cânone. Faz-se necessário enxergar a linguagem [no âmbito do direito] sob uma nova perspectiva (...) (grifo meu)

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Pelo exposto, inferimos que a “fronteira” linguística-direito é ainda pouco discutida em termos integrados. Além disso, a crítica que o autor faz da concepção majoritariamente unívoca relativa à linguagem dá o tom da discussão em torno de duas abordagens distintas, a serem notadas. Em outro ponto, agora o do campo interpretativo do direito, essa fala evoca em si mesma o elemento lógico, ou mais acentuadamente, logicista, que permeia a interpretação jurídica operada por juristas e magistrados.

Nesse ponto, Streck (2000) demonstra como a partir do apontamento de uma crise debelada de paradigma no direito, e na dogmática jurídica, instauradas no campo de uma hermenêutica jurídica, que o social é frontalmente afetado, sendo esta crise constitutiva do saber jurídico instrumentalizado pela ideia de que não há direito senão por uma dogmática, que obstaculiza a prática do estado democrático de direito. Colocado nos seguintes termos pelo autor (STRECK, 2000, p. 77-78):

É neste contexto – crise do paradigma do Direito e da dogmática jurídica – que devemos permear a discussão acerca dos obstáculos que impedem a realização dos direitos em nossa sociedade. Se é verdade a afirmação de Clève de que a dogmática jurídica é constituinte do saber jurídico instrumental e auxiliar da solução dos conflitos, individuais e coletivos, de interesses e que não há direito sem doutrina e, portanto, sem dogmática (...) À evidência, o Judiciário e as demais instâncias da administração da justiça são atingidos diretamente por essa crise. (...) Quando, porém, surgem questões macrossociais, transindividuais, e que envolvem, por exemplo, a interpretação das ditas “normas programáticas” constitucionais, tais instâncias, mormente o Judiciário, procuram, nas brumas do sentido comum teórico dos juristas, interpretações despistadoras, tornando inócuo/ineficaz o texto constitucional. Isto porque o “discurso-tipo” (Veron) da dogmática jurídica estabelece os limites do sentido e o sentido dos limites do processo hermenêutico.

Por este dizer, entendemos que, em princípio, não há como desvincular, ainda que se o tente, a ideia de uma dogmática implicada em um modo particular de interpretação, no próprio do ordenamento jurídico, isto é, histórica e materialmente, na medida em que o dogma jurídico impõe limites aos sentidos estabelecidos nesse campo, em seus acontecimentos enunciativos. Neste sentido, há que se falar em diferentes relações entre o Direito e diversas instituições sociais.

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Segundo Althusser (1999), há relações diretas, por exemplo, entre Direito, Estado e Ideologia. De tal modo que estas só podem ser explicadas do ponto de vista da reprodução, de um lado, e da prática e da produção, de outro. O nome Direito designaria, assim, três categorias: a da personalidade jurídica, ligada à definição dos indivíduos enquanto pessoas de direito; a da liberdade jurídica, ligada ao usufruto dos bens e à da igualdade jurídica (no sentido de que todos os indivíduos são dotados de uma personalidade jurídica determinada). Há para o autor, desse modo, três características ligadas à definição de Direito: 1. Sistematicidade do Direito; 2.

Formalidade do Direito; e 3. Repressividade do Direito.

O direito assume, para Althusser (1999, p. 84), do ponto de vista de sua característica sistemática, a forma de um sistema que tende, naturalmente, à

não-contradição e à saturação internas, que seriam, segundo o autor argelino, dois

conceitos "técnicos" a partir dos quais se passaria a pensar a definição de direito, ou ainda, relativos à sua natureza. Definidos nesses termos por ele:

a. "[o direito] é um sistema de regras [em que] deve reinar entre todas as [as suas] regras uma coerência tal que não seja possível invocar as vantagens de uma regra contra a outra, caso contrário o efeito da primeira regra seria destruído pelo efeito da segunda. É a razão pela qual o direito deve eliminar nele toda forma de contradição (...)”

b. "o direito deve ser saturado, isto é, deve apresentar um sistema de regras que tendem a abranger todos os casos possíveis apresentados na "realidade", de maneira a evitar ser surpreendido por um "déficit" jurídico de fato, por onde poderiam se introduzir, no próprio Direito, práticas não-jurídicas que viessem a prejudicar a integridade do sistema.

Um pouco mais adiante, Althusser (1999, idem) faz uma crítica direita ao

modo como os juristas relacionam o texto jurídico à “realidade” (colocado entre aspas

pelo autor), e das possíveis implicações desse movimento:

Daí, esse outro aspecto da atividade "admirável" dos juristas que sempre se obstinaram em fazer entrar, simultaneamente, a diferença do "direito consuetudinário" e os desvios da jurisprudência (aplicação das regras existentes aos casos "concretos" que, muitas vezes, as excedem), no próprio Direito

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Neste aspecto da definição, conforme apontado pelo filósofo, observamos que, ainda que não se configure como uma menção direta ao aspecto semântico, ou linguístico, da matéria, enquanto sistema que é, o direito tem em sua regra interpretativa uma das formas práticas de um logicismo que nega a contradição, “assegurada” (esta regra) que está por uma coerência, igualmente sistêmica, que lhe assegura uma simetria tal entre as leis (entendidas aqui como regras) que, pela qual, se garante a integridade do sistema, isso numa posição de que toda interpretação seria uma inferência, uma dedução.

É justamente o objeto dessa crítica que aqui aparece como que constitutivo da concepção de controle jurisdicional de constitucionalidade, o qual tem por dever, a partir do princípio da supremacia da constituição federal, assegurar a supremacia constitucional e o controle da estrutura infraconstitucional, conforme veremos logo adiante. Antes de passarmos a este aspecto, o do controle, vejamos brevemente o conceito de Direito em Louis Althusser.

Althusser (1999) propõe, em Sobre a Reprodução, uma análise estritamente descritivo-teórica do Direito. Por ela, define-o enquanto um sistema de

regras codificadas aplicadas, isto é, de regras respeitadas e “contornadas” na prática

cotidiana. Considera o Direito Privado como o centro do sistema jurídico a partir do qual os demais direitos sistematizam e harmonizam suas noções e suas regras. Dessa forma, o direito privado enuncia regras que regem as trocas mercantis (compra e venda) as quais repousam, em última instância, no “direito de propriedade”, instância que se explicita segundo os princípios gerais jurídicos da personalidade jurídica (que define os indivíduos como pessoas de direito), da liberdade jurídica (que regula o uso e abuso dos bens-objeto da propriedade) e da igualdade jurídica (todos menos “alguns”).

O filósofo argelino não trata, portanto, o direito em termos de uma ciência, mas de uma “prática sistematizada de regras codificadas para condutas “sociais”, a partir de um código eminentemente privado burguês, isto é, que atende a uma classe, ainda que pretensamente direcionado ao social” (ALTHUSSER, 1999, p. 88) (Seria este um dos berços da luta de classes inaugurada pela revolução burguesa pós

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feudal?). Este é o ponto de inflexão em relação à consideração geral burguesa de direito, ou, mais especificamente, do ordenamento jurídico inaugurado principalmente pós século XX que vige até nossos dias. A pergunta é: o que essa não caracterização da cientificidade do direito implica exatamente?

Para o que nos interessa diretamente nesta discussão, isto é, a cientificidade do direito, exporemos o que Althusser (1999) nos apresenta de Marx e de Engels (e, marginalmente, de Kant e de Hegel), como autores que argumentaram com base em três importantes características do direito, ainda em sua época: sua Sistematicidade (1); sua Formalidade (2); e sua Repressividade (3).

Com base nesses preceitos teóricos, em (1), o direito assume a forma de

um sistema que tende, “naturalmente”, à não-contradição e à saturação internas.

Quanto à primeira, o direito, na medida em que se coloca como um sistema de regras, opera segundo uma coerência tal entre as regras que não seja possível a invocação da vantagem de uma sobre a outra, caso contrário o efeito de uma sobre a outra seria destruidor. Definidas nos seguintes termos pelo autor (ALTHUSSER, 1999, p. 84)

[o direito] é um sistema de regras [em que] deve reinar entre todas as [as suas] regras uma coerência tal que não seja possível invocar as vantagens de uma regra contra a outra, caso contrário o efeito da primeira regra seria destruído pelo efeito da segunda. É a razão pela qual o direito deve eliminar nele toda forma de contradição (...)

[...] o direito deve ser saturado, isto é, deve apresentar um sistema de regras que tendem a abranger todos os casos possíveis apresentados na "realidade", de maneira a evitar ser surpreendido por um "déficit" jurídico de fato, por onde poderiam se introduzir, no próprio Direito, práticas não-jurídicas que viessem a prejudicar a integridade do sistema.

Quanto à segunda, o direito deve ser saturado, isto é, deve apresentar um sistema de regras que tende a abranger todos os casos possíveis apresentados na “realidade”, como uma correspondência desta, de modo a não ser surpreendido por um “déficit” jurídico de fato, que venha a prejudicar a sua integridade.

Assim, a atividade de sistematização operada pelo sistema jurídico deve ser compreendida não só como redução das contradições possíveis entre as regras do direito existentes, mas também, e sobretudo, como redução das “contradições”

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