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4. ANÁLISE SEMÂNTICO-ENUNCIATIVA DA LEI 12.965/14 E DA CONSTITUÇÃO

4.7. Análise do preâmbulo da Constituição Federativa do Brasil de 1988

Todos os Estados com Constituição escrita e rígida, como é o caso do Estado brasileiro, têm sua lei maior regida por uma teoria do poder constituinte, que distingue poder constituinte de poderes constituídos. Assim, Poder Constituinte é aquele a quem é atribuído o poder de criar a Constituição, enquanto poderes

constituídos são aqueles estabelecidos por ela. Segundo Emmanuel Sieyès23, a

titularidade do Poder Constituinte é da nação, porém, segundo teorias modernas do direito, tal titularidade é do povo, que tem o poder de determinar a criação ou modificação da Constituição.

O exercício do poder de criação de uma Constituição é exercido então segundo o princípio da participação democrática direta, por meio de Assembleia Constituinte, no caso brasileiro da Constituição de 1988, soberana e não exclusiva. Passada a fase constituinte da Carta Magna, chegamos ao texto propriamente dito da Constituição Federativa do Brasil, especificamente a de 1988, vigente no Estado.

A Constituição é a lei fundamental e suprema de um Estado, criada segundo a vontade soberana do povo. Além, ela determina a organização político- jurídica do Estado, em que dispões sobre sua forma, quais os seus órgãos integrantes bem como suas competências e também sobre a aquisição, exercício e limitações de seu poder (CANOTILHO, 2003). Segundo a corrente dominante da doutrina jurídica, há vários “sentidos” definidores da Constituição, sendo os três principais o sociológico, o político e o jurídico. No aspecto hierárquico, o texto constitucional segue a teoria

23 Abade francês Emmanuel Sieyès, No séc XVIII, às vésperas da Revolução Francesa, defendeu, em sua obra O que é o Terceiro Estado?, uma tese inovadora que rompia com a legitimação dinástica do poder.

kelseniana, para quem o fundamento de validade das normas está na hierarquia entre todas elas. Neste caso, o fundamento da Constituição positiva escrita é a norma hipotética fundamental, norma pressuposta, imaginada.

Estruturalmente, a Constituição é dividida, de forma geral, em três partes: preâmbulo, dogmática e disposições transitórias. Segundo Canotilho (2003), o preâmbulo é a parte que antecede o texto propriamente dito da Constituição (dogma).

Sua função é a de apenas definir as “intenções” do legislador constituinte,

proclamando os princípios da nova constituição e rompendo com a ordem jurídica anterior, orientando sua interpretação, de modo que não se consubstancia enquanto norma constitucional, segundo orientação do próprio STF (2008, grifo nosso), de onde, pela sondagem, teremos a seguinte sequência:

[6] Controle concentrado de constitucionalidade. Devem ser postos em relevo os valores que norteiam a Constituição e que devem servir de orientação para a correta interpretação e aplicação das normas constitucionais e apreciação da subsunção, ou não, da Lei 8.899/1994 a elas. Vale, assim, uma palavra, ainda que brevíssima, ao Preâmbulo da Constituição, no qual se contém a explicitação dos valores que dominam a obra constitucional de 1988 (...). Não apenas o Estado haverá de ser convocado para formular as políticas públicas que podem conduzir ao bem- estar, à igualdade e à justiça, mas a sociedade haverá de se organizar segundo aqueles valores, a fim de que se firme como uma comunidade fraterna, pluralista e sem preconceitos (...). E, referindo-se, expressamente, ao Preâmbulo da Constituição brasileira de 1988, escolia José Afonso da Silva que "O Estado Democrático de Direito destina-se a assegurar o exercício de determinados valores supremos. ‘Assegurar’, tem, no contexto, função de garantia dogmático-constitucional; não, porém, de garantia dos valores abstratamente considerados, mas do seu ‘exercício’. Este signo desempenha, aí, função pragmática, porque, com o objetivo de ‘assegurar’, tem o efeito imediato de prescrever ao Estado uma ação em favor da efetiva realização dos ditos valores em direção (função diretiva) de destinatários das normas constitucionais que dão a esses valores conteúdo específico" (...). Na esteira destes valores supremos explicitados no Preâmbulo da Constituição brasileira de 1988 é que se afirma, nas normas constitucionais vigentes, o princípio jurídico da solidariedade. [ADI 2.649, voto da rel. min. Cármen Lúcia, j. 8-5- 2008, P, DJE de 17-10-2008.]24

Assim, conforme assevera o órgão judicial supremo, em [6], o preâmbulo não deve servir de parâmetro para a declaração de inconstitucionalidade das leis inferiores, tampouco estabelece limites para o Poder Constituinte Derivado, não dispondo, portanto, de força normativa e sem caráter vinculante. Apesar disso, como podemos observar, é considerado juridicamente relevante no que diz respeito a seu caráter norteador da hermenêutica jurídica, ou seja, para a interpretação e aplicação das normas constitucionais, texto que o sucede. A promulgação da Constituição é, pois, o procedimento da autoridade competente que atesta o surgimento de um novo provimento normativo com força vinculante e obrigatória e sua publicação é o procedimento que dá ciência aos seus destinatários (FERREIRA FILHO, 1984), ela se encontra presente, segundo o domínio teórico que utilizamos, na enunciação do

preâmbulo da lei maior, especificamente, num acontecimento de enunciação.

Antes de partirmos para a análise propriamente dita do texto do preâmbulo, importa apresentar brevemente uma nota explicativa (sequência [7]) dada por outra Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), desta vez datada de 15.08.2002. Nela, o então ministro Carlos Velloso declara que o preâmbulo da CF não constitui norma central, e também explica que invocação ao nome Deus neste enunciado não deve ser interpretada como norma de reprodução obrigatória na Constituição Estadual. Este ponto, que será tratado mais adiante, interessa-nos, particularmente.

[7] Preâmbulo da Constituição: não constitui norma central. Invocação da proteção de Deus: não se trata de norma de reprodução obrigatória na Constituição estadual, não tendo força normativa.

[ADI 2.076, rel. min. Carlos Velloso, j. 15-8-2002, P, DJ de 8-8-2003.]25

Iniciaremos então a análise desse texto preambular à Constituição Federal de 1988 (CF/88) procedendo com a sondagem a partir de seu recorte, da qual teremos nossa próxima sequência. Temos então o seguinte:

[8] Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.

Como vimos, a enunciação caracteriza-se pela produção e organização de textos, como o do preâmbulo, dados num acontecimento com temporalidade própria, além do fato de se dar em espaços configurados por esse acontecimento, pela relação entre língua e os falantes, os quais são agenciados politicamente a falar determinados por essas línguas, mas não numa relação empírica (sujeito individual que fala uma língua) e sim numa relação organizada enquanto “espaço regulado e de disputas pela palavra e pelas línguas, enquanto espaço político” (GUIMARÃES, 2005c, p. 18).

Outra particularidade do acontecimento, no modo como o consideramos, é que ele não diz respeito a uma relação entre sujeito e situação, como quer a pragmática e o discurso hermenêutico-jurídico em geral, mas sim a uma relação sujeito, língua, história. O sentido, por fim, pode se dar em espaços de línguas e falantes em acontecimentos de enunciação considerada a materialidade histórica, através de memoráveis que o constituem. Feitas essas considerações, repercutiremos primeiramente a cena enunciativa do preâmbulo.

Na medida em que os espaços de enunciação distribuem desigualmente as línguas para seus falantes é que podemos considerar estes espaços como políticos, nos quais o acontecimento da enunciação produz sentidos constituindo a cena enunciativa e seus respectivos lugares de enunciação, como dissemos acima. Assim, em [8], temos algo que diz respeito a sua configuração enunciativa, isto é, um Locutor, que aí se apresenta enquanto lugar do que enuncia como origem do dizer e que é também predicado por um lugar social distribuído segundo uma deontologia jurídica do dizer. Este Locutor (L) diz a um Locutário (LT), que é seu correlato nesta enunciação específica, caracterizando assim uma relação eu-tu. Assim, o alocutor-

constituinte, ao dizer “nós promulgamos x”, o faz não porque alguém (empiricamente) aí se coloca enquanto essa origem do dizer, mas porque, enquanto alocutor- constituinte, ele pode se dar como origem daquilo que se faz saber, o que só é possível na medida em que o Locutor é constituído no acontecimento como um lugar

social de dizer, neste caso, um alocutor-constituinte (al-x), que também tem um

correlato, o alocutário-cidadão (at-x).

O presente constituído em [8] é o presente do Locutor relacionado à temporalidade do acontecimento. Por isso, o “nós” é aí visto como aquele que promulga algo, a Constituição, e como um “nós” que cumpre um ofício, ao marcar e configurar a representação da origem do dizer, um dizer que não é provido de um lugar social senão pela divisão desse dizer, isto é, de L a al-x, dada pelo agenciamento das sistematicidades linguísticas, o Locutor (aquele que diz), e pelo agenciamento das condições histórico-linguísticas, os alocutores, enquanto lugares sociais de dizer.

Outro aspecto a se observar em [8] é que este nós que promulga algo, a CF/88 é também o nós que, ao mesmo tempo, institui um Estado democrático de direito, que poderiam ser vistos simplesmente neste caso como dois performativos dados segundo uma ordem em que a palavra corresponde a uma ação e, assim, produz sentido. Mas, nos termos da semântica da enunciação, Guimarães (2018) afirma que a disparidade constitutiva da cena enunciativa não diz respeito apenas ao Locutor, mas também ao alocutor. Para o autor, enquanto os lugares sociais do dizer (os alocutores) se põem no centro do dizer e marcam o lugar do confronto, do desentendimento. A questão é: a que forma de confronto/conflito está relacionado o

lugar social de dizer (al-x)?

Conforme o que apresenta Guimarães (2005c), essa forma de conflito é dada pela relação entre o alocutor-x e o memorável que atravessa o acontecimento de que ele, o lugar de enunciação, faz parte. Assim, pode-se considerar em [8] o alocutor-x do memorável apresentado como um outro alocutor-constituinte, anterior ao presente do acontecimento do lugar social de dizer, que significa na enunciação a ruptura entre este regime e o regime apresentado pelo (e a partir do) presente do acontecimento, pelo Locutor, qual seja, regime este promovido pela materialidade histórica (presente na língua) do processo de redemocratização do Brasil em 1988, que marcou, segundo os termos do enunciado e seus modos de integração ao texto

constitucional, o início de um período de liberdade e a plenitude do regime democrático.

Isso explica, por exemplo, o fato de que a enumeração presente no enunciado [8] significa, neste espaço de enunciação, por seus elementos estarem integrados ao texto, determinados (por relações de determinação) que são pelas relações de alocução descritas acima, nos lugares de enunciação representantes do agenciamento político do falante. Assim, palavras-elementos da enumeração como

liberdade, igualdade, pluralista, entre outras, significam pelo conflito instalado, no

dissenso, marca precípua do político neste acontecimento de enunciação do espaço jurídico.

Dadas as configurações da cena enunciativa em tela, que encaminham os sentidos operados pelo acontecimento de enunciação em [8], podemos pensar o político segundo o domínio das posições histórico-materialistas, conforme o que expõe a semântica do acontecimento. Para Guimarães (2005c), há no político uma divisão que afeta materialmente a linguagem, sendo uma instância sempre dividida pela desmontagem da contradição, pela enunciação dos que não podem falar. Por esta concepção, o político não deve ser associado nem ao falso nem ao verdadeiro, tampouco considerado como o que se fala sobre igualdade, direitos (humanos), deveres, nem como o lugar do engano, mas sim como fora dessas concepções negativas. Assim, o autor define o político enunciativamente como que (GUIMARÃES, 2005c, p. 16):

(...) caracterizado pela contradição de uma normatividade que estabelece (desigualmente) uma divisão do real e pela afirmação de pela afirmação de pertencimento dos que não estão incluídos. Desse modo, pelo político, se estabelece um conflito entre uma divisão normativa e desigual do real e uma redivisão pela qual os desiguais afirmam seu pertencimento.

No enunciado [8], o alocutor-constituinte agenciado politicamente a dizer, enuncia a seu alocutário, sob a proteção de Deus. Ora, se procedêssemos com duas paráfrases de uma parte de [8], veríamos isso com mais especificidade:

[8a] Nós, representantes do povo brasileiro, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição da República Federativa do Brasil.

Podemos, ainda, parafrasear [8a] elidindo a expressão sob a proteção de

Deus:

[8a'] Nós, representantes do povo brasileiro, promulgamos a seguinte Constituição da República Federativa do Brasil.

Sob certos aspectos, claramente vemos que a elisão da formação nominal preposicionada sob a proteção de Deus em [8a'] não traria nenhum prejuízo aos propósitos do enunciador em questão, que é significado por um modo impessoal de se apresentar o que se diz na enunciação. Ocorre que, em termos de modos de

relação por articulação e seus sentidos, há algo que deva ser dito aqui. Isso porque,

há uma relação de contiguidade significada nesta enunciação dada por uma articulação por incidência de uma formação nominal preposicionada (sob a proteção

de Deus) em relação ao enunciado de que ela faz parte, e não da relação de um termo

da formação nominal em relação a ela. Como vimos em outras ocasiões, as articulações são relações internas ao enunciado, mas também são relações (variadas) de contiguidade que fazem do enunciado um elemento que se integra ao texto (GUIMARÃES, 2009).

Na articulação por incidência, da enunciação de sob a proteção de Deus, sobre o acontecimento da promulgação e não sobre os alocutores da promulgação,

nem sobre o sentido do que se promulga26, o acontecimento enunciativo especifica

uma operação pela qual a enunciação de um lugar de Locutor se relaciona à enunciação de lugares de dizer (enunciadores) diferentes. Em [8a], identificamos o enunciador do enunciado incidente como um enunciador coletivo, que enuncia um comentário trazido pela enunciação a partir do lugar de outro enunciador. Nela, o enunciado em [8a] implica uma divisão do real entre os que acreditam nessa forma de

proteção e os que não acreditam nela, sem que isso afete a distribuição específica dos direitos constitucionais.

Temos, de um lado, a afirmação de uma diferenciação/distribuição dada por uma divisão política dissensual: os que acreditam e os que não acreditam em deus. E não só isso. De outro lado, a distribuição é recortada e organizada por um memorável que remete a outra divisão, aquela que divide o Estado da Igreja, mas que é “anulada” pela temporalidade própria presente do acontecimento que organiza aí dentro os sentidos, a mesma divisão que subverte o laicismo, silenciado pelo discurso jurídico em operações de agenciamento político do falante, e transforma o incontornável da língua em transparente.