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3. RELAÇÕES ENTRE SEMÂNTICA E DIREITO

3.5. Agenciamento da enunciação no acontecimento jurídico

3.5.1. Análise do acontecimento produzido pelo dizer jurídico em cenas enunciativas

Como vimos, é na cena enunciativa que se dá a conformação dos lugares enunciativos, que é o caso, por exemplo, do alocutor, que é sempre um alocutor-x, o qual, dado um acontecimento específico de que faça parte, será caracterizado pelo próprio acontecimento enunciativo. Este lugar, o alocutor-x, tem por correlato um

alocutário-x, aquele para quem o alocutor diz, dada uma alocução (GUIMARÃES,

2018). Temos assim:

al-x ---correlato de---at-x

Por esta correlação, entendemos haver uma relação em que um lugar

social de dizer (al-x) “dirige-se” a um lugar social a quem se diz (at-x), com “x”

enquanto uma variável representativa do nome desse lugar.

Segundo Guimarães (2018, p. 45, grifo nosso), “de um lado o Locutor se apresenta como o lugar que diz, de outro o lugar que diz só diz enquanto de um lugar

social de dizer”. De tal modo que, para os efeitos de análise e aplicação do método,

o primeiro lugar será tratado por, apenas, Locutor (ou L simplesmente) e o segundo lugar de lugar social de dizer, ou alocutor-x, em que “x” é uma variável a ser preenchida pela consideração do lugar específico em que o falante é agenciado. Em síntese, “o acontecimento da enunciação produz sentido nisto que chamamos cena

enunciativa constituída pelo agenciamento do falante em lugares de enunciação.

Estes lugares configuram o funcionamento da alocução”16. Além desses lugares

caracterizados acima, há ainda um outro aspecto dessa divisão de lugares que constitui a politopia da cena enunciativa, o lugar denominado lugar de dizer, ao qual o autor denominou Enunciador.

Uma relação de alocução na cena enunciativa se dá a partir das seguintes figuras enunciativas:

Falante (f): aquele “agenciado a” e dividido em L e em al(-x)

Locutor (L): aquele que diz; falante enquanto agenciado em Locutor Locutário (LT): aquele para quem o L se dirige, correlato de L alocutor (al): Aquele que diz enquanto lugar social de dizer

alocutário (at): Aquele para quem o locutário diz algo enquanto lugar social

correlato de um locutário

Enunciador (Ei)= Representação de um lugar de dizer

Esquema de correlações17

Locutor (L) ---correlato de--- Locutário (LT)

alocutor (al-x) ---correlato de--- alocutário (at-x)

Assim, a título de exemplificação, observaremos o seguinte enunciado, parte (recorte) da sequência (2), com vistas a pensar como o agenciamento do falante, no caso em tela, isto é, neste acontecimento de enunciação, produz a cena enunciativa. Temos então:

(2a) Todos são iguais perante a lei.

Podemos observar, no plano dos sentidos constituídos pelo acontecimento, um primeiro aspecto desta análise: há, de uma lado, alguém que diz o que está em (2a), e o diz enquanto falante que é agenciado a dizer neste acontecimento, ou seja, o Locutor de (2a); de outro, aquele para quem o Locutor afirma essa garantia, que é aquele para quem ele se dirige, isto é, seu Locutário, correlato desse Locutor.

Notemos que, se optarmos pela paráfrase de (2a), nos mesmos moldes de parafraseamento que Guimarães (2018) vem apresentando, teríamos, por exemplo, algo do tipo:

(2a') (Se) todos são iguais perante a lei, pode-se considerar, então, que não há quem não seja alcançado por essa igualdade.

Ou ainda:

(2a'') (Se) todos são iguais perante a lei, pode-se considerar, então, que não há ninguém que deva ser tratado de forma/como diferente.

Uma das explicações possíveis para o que encaminha para esses parafraseamentos é o fato de o elemento todos, unidade a partir/em torno da qual todo o enunciado funciona e, por isso, “portadora” de uma independência relativa, ter como propriedade uma consistência interna tal que, segundo o preceito lógico, trata-se de uma referência a uma universalidade irrestrita, não cabendo exceções.

Assim, ao analisarmos essas paráfrases, vemos que, ao dizer todos, tanto em (2a) quanto em (2a'), o Locutor apresenta-se como aquele que diz todos. Ainda assim, o que vemos é que, por este caminho, encontramos, até onde podemos, pouco a dizer, afora apresentar, formalmente, que lugares se apresentam no acontecimento específico desta enunciação, o que, como veremos adiante, é algo a ser aprofundado pela análise.

A cena enunciativa coloca também em jogo os lugares de dizer, os enunciadores. Não se trata, portanto, de um lugar no acontecimento da enunciação que projeta um tu, como os demais lugares, mas um modo de um eu apresentar-se na sua relação com o que se diz, significando diferentes relações entre o lugar de

dizer e o que se diz (GUIMARÃES, 2005c). Esses lugares apresentam-se sempre como a representação da inexistência dos lugares sociais de locutor.

Por esta perspectiva, e tomando de novo (2a) como a sequência de análise, podemos afirmar que quem aí diz, em relação ao que diz, não é alguém que se apresenta como que independente da história, acima de todos e que retira o dizer de sua circunstancialidade. Tampouco é aquele que se apresenta como apagamento do lugar social, ou ainda como aquilo que todos dizem, num todos diluído numa identificação de fronteiras para esse conjunto de todos.

O lugar de dizer presente nesse enunciado, mais precisamente, nessa cena enunciativa, significa o Locutor como que submetido a um regime de uma binaridade valorativa, do tipo verdadeiro/falso, igual/desigual, permitido/não permitido. Assim, dizemos que em (2) temos um tipo de afirmação não modalizada “em que o enunciador, ao se apresentar como o lugar de dizer, apresenta-se como quem diz algo verdadeiro em virtude da relação do que diz com os fatos” (GUIMARÃES, 2018, p.132). Esta representação é uma forma de identificação do enunciador com o universal, por isso, enunciador-universal. Por isso, um lugar de dizer como não social, fora da história.

Estas conclusões, quando associadas a um modo próprio de

funcionamento do jurídico, identificam-se com um “modo geral” de enunciações

ligadas à legalização produzidas em cenas enunciativas próprias desses tipos de acontecimentos. No caso específico do enunciador universal presente no enunciado em tela, observamos que no agenciamento desta enunciação, em que o falante é agenciado a falar, na medida em que é constituído pela relação com as línguas do espaço de enunciação a partir do qual fala, além de colocá-lo em litígio com outros falantes (GUIMARÃES 2018).

Em (2a’), o alocutor é um alocutor-legislador (aquele que oficialmente legisla para e em nome dos brasileiros), do qual se relata um dizer dito do lugar de dizer universal. Enquanto que o enunciador se apresenta como o lugar que garantes a todos e todas a verdade desta afirmação, a de que todos e todas, isto é, sem exceção, são iguais perante a lei. Assim, o acontecimento, significado em (2a’) acima, se refere à igualdade como algo irrestrito e indistinto, “fazendo crer” que o que aí se

afirma sobre igualdade seja algo “previamente entendido” por aqueles para quem esta lei, “supostamente”, visa a alcançar. Nesse sentido, o correlato do lugar social de dizer, o alocutor desta cena, é o alocutor-legislado.

Por outro lado, a cena, por esse agenciamento, produz, politicamente, a divisão Locutor/alocutor-legislador. De modo que o enunciador que acabamos de analisar apresenta-se segundo a relação com o que se diz, neste caso, como universal. Segundo Guimarães (2018, p. 64), “um aspecto importante na relação entre os lugares de enunciação é que as correlações L/LT e al-x/at-x são estabelecidos em relação ao modo como o enunciador (E) é agenciado”, no nosso caso, um enunciador- universal que se apresenta como quem diz uma verdade, nos termos em que o jurídico é apresentado para a sociedade historicamente. Isso porque dada a historicidade do agenciamento enunciativo, que é caracterizada pelo espaço enunciativo e pela cena enunciativa, dizemos que um instituto de verdade do jurídico encontra-se presente nas formas como o falante é agenciado e nas suas respectivas correlações dentro da cena.

Primariamente, podemos elaborar o diagrama representativo da presente cena enunciativa, na forma como segue em (a):

(a) L --- LT

Euniv. - Todos são iguais perante a lei

al-legislador---al-legislado

Conforme o que vimos, e considerando as relações do espaço de enunciação, o falante, agenciado e dividido pelo acontecimento de enunciação, é constituído pelas relações históricas entre línguas (GUIMARÃES, 2018). Isto implica algo fundamentalmente importante nos estudos enunciativos do sentido e da significação em linguagem, qual seja, o fato de que a linguagem não é vista nos domínios enunciativos como algo fundamentalmente dialógico, mas histórico, como

pressupõe o próprio funcionamento do agenciamento enunciativo: dado pela caracterização do espaço de enunciação, considerando que a relação que o constitui seja entre línguas e falantes e não entre falantes simplesmente, e pelas configurações e constituições díspares do acontecimento, ora apresentadas na presente cena enunciativa.

4. ANÁLISE SEMÂNTICO-ENUNCIATIVA DA LEI 12.965/14 E DA CONSTITUÇÃO