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Marco Civil da Internet e Constituição Federal como acontecimentos enunciativos

3. RELAÇÕES ENTRE SEMÂNTICA E DIREITO

3.3. Marco Civil da Internet e Constituição Federal como acontecimentos enunciativos

O uso massificado da internet trouxe consigo um amplo espectro de mudanças estruturais ligado às comunicações entre seus usuários, no campo das novas tecnologias informacionais, especialmente porque culminou com a necessidade da regulação dessas relações no campo efetivo da ciência jurídica. No Brasil, esse conjunto de fatores resultou num longo debate social em torno dos direitos relacionados ao uso da internet, que ficou conhecido como o Marco Civil da Internet (MCI), o que se concretizaria, em 2014, com a criação e promulgação da Lei 12.965. Em princípio, o MCI não recebe a proteção constitucional, apesar de citações diretas a ela, o que foi recepcionado com bastante preocupação por parte dos sujeitos envolvidos nesse debate. Trata-se, portanto, de uma ação no campo do direito da tecnologia da informação que visa a humanizar as relações de internet, isto é, no ambiente da chamada sociedade digital (GOULART, 2012).

Ora, se tomarmos a estrutura de qualquer lei, como é caso da lei que regula o Marco Civil da Internet, veremos que, de início, há uma apresentação da lei seguida de uma ementa, uma espécie de resumo do que será tratado em lei. Após isso, temos o preâmbulo, que é, basicamente, um parágrafo introdutório que representa o “espírito” em que foi criada uma lei. Em seguida, temos o conteúdo propriamente dito da lei, divididos em títulos, capítulos e seções. Tais subdivisões serão compostas por artigos, que serão, por sua vez, subdivididos em caput, parágrafos, incisos e alíneas.

Caput (cabeça) é a parte inicial do artigo, uma espécie de direcionamento

interpretativo de todo o artigo. Assim, em princípio, as partes de um artigo devem ser interpretadas de acordo com o conteúdo dessa subdivisão única.

Temos, em relação ao Marco Civil, na parte introdutória da lei, a seguinte divisão (em três sequencias ou enunciados): (BRASIL, 2014)

Ementa:

(1) “Estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da internet no Brasil”.

Preâmbulo:

(2) “A PRESIDENTA DA REPÚBLICA Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei”

Caput:

(3) “(art. 1º) Esta lei estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da internet no Brasil e determina as diretrizes para atuação da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios em relação à matéria”

Para se pensar em termos de unidade de análise semântica, é preciso definir cada uma dessas unidades como enunciado, isto é, enquanto unidade de linguagem, ou ainda, como elemento linguístico em um acontecimento de linguagem, constituído de consistência interna e independência relativa integrado a um todo de que faz parte. (GUIMARÃES, 2018). Nesta medida, a semântica do acontecimento considera o sentido como componente constituído de relações que ocorrem no e pelo acontecimento de enunciação, o texto.

Na apresentação das três partes acima, localizadas na parte introdutória da lei, consideramos cada uma delas como que constitutiva dessas propriedades, dada a enunciação de que fazem parte. Portanto, como será demonstrado no capítulo destinado à análise do MCI, há algo de incontornável nessas definições porque o homem fala e, quando fala, ele significa. Assim, podemos dizer, ainda que provisoriamente e a título ilustrativo apenas, que palavras como garantias, direitos,

decreta, sanciono, funcionam em função de sua relação de integração “imediata” com

o enunciado e “mediata” com o texto.

Ainda em relação ao aspecto histórico da criação do Marco Civil, em dezembro de 2009, existiam 26 propostas de regulamentação da internet no Congresso Nacional brasileiro. Apesar disso, o Projeto de Lei nº 84/1999, mais conhecido como “AI-5 Digital”, levou o Ministério da Justiça a iniciar um processo público de consulta que tratasse do uso de internet no Brasil, o denominado Marco

Civil da Internet. Entre os anos de 2011 e 2014, e após debate online em duas fases, o projeto foi assinado pela então Presidente da República Dilma Rousseff, até culminar com a aprovação e sanção em 2014, com a Lei nº 12.695 (BRAGATTO; SAMPAIO; NICOLÁS, 2015).

A iniciativa da consulta pública sobre a criação de uma Marco Civil da Internet partiu da Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça em conjunto com a Escola de Direito do Rio de Janeiro, da Fundação Getúlio Vargas. A justificativa é de que havia um “vácuo” na legislação de então, isto é, havia a necessidade da criação de uma legislação que desse conta de mediar essas relações nesse espaço e que garantisse regras específicas para usuários e provedores, principalmente aquelas relativas à privacidade dos dados, à neutralidade e à liberdade de seus usuários.

Inclusive, durante esse processo, houve a tentativa de aprovação do PL nº 84/99, do deputado Eduardo Azeredo (PSDB/MG), conhecida também como “Projeto de Lei Azeredo”, ou “Lei Azeredo”, que, entre outros pontos polêmicos, versava sobre a criminalização e a identificação obrigatória dos usuários da internet, com a guarda dos registros de navegação pelos provedores, que, de certa forma, abstiveram-se do debate público.

Uma das questões muito discutida à época dizia respeito às formulações de políticas que contassem com a participação dos sujeitos para tomar decisões desse porte, no caso específico, no campo de estudos e políticas de comunicação. Por outro lado, discute-se se o público “exerce” papel passivo de espectador e, assim, deva cobrar a possibilidade de sua participação ativa no processo. Nesse campo, afirma Levy (2003 apud BRAGATTO; SAMPAIO; NICOLÁS, 2015, p. 2):

Essa segunda abordagem encontrou novo fôlego nos processos de abertura política e econômica dos anos 1990 que foram acompanhados pela emergência de um novo espaço de debate virtual e globalmente conectado por redes digitais, como proposto pela ciberdemocracia

Ora, o texto da lei que regula a relação entre usuários e provedor de internet, por se tratar de instâncias reguladas pelo poder, é considerado como espaço político, como o seria em diversas outras áreas do saber. Contudo, algumas ressalvas

a esse olhar sobre o político devem ser feitas, antes de prosseguirmos. Desse modo, importa apresentar que implicações há em considerarmos o referido texto como acontecimento enunciativo.

Ao considerarmos este texto legal como acontecimento de linguagem, que se dá em espaços de enunciação, assumimos, em consonância com Guimarães (2005c), entre outras coisas, o fato de que é um acontecimento dado por agenciamentos políticos de enunciação. Isso porque, o político aqui não é tratado como aquilo que se fala sobre a igualdade ou sobre os direitos de uma pessoa, ou de forma negativa e idealista, como comumente tratado pela sociedade, isto é, como um embate de ideias, lugar de engodo, enganos e corrupção. Antes, enunciativamente, o político é tratado como o fundamento das relações sociais (GUIMARÃES, 2005c)

Mais especificamente, para Guimarães (2005c), o político deve ser definido pela materialidade das relações que se estabelece “caracterizado pela contradição de uma normatividade que estabelece (desigualmente) uma divisão do real e a afirmação de pertencimento dos que ainda não estão incluídos” (2005c, p. 16). Além disso, o autor sustenta que o político é incontornável e que isso se dá porque o homem fala.

Nesse sentido, entender o texto jurídico da Lei relativa ao Marco Civil da Internet como acontecimento implica analisá-lo agora numa perspectiva de ordem material não idealista, como regularmente se faz nas disciplinas ligadas à semântica da enunciação e determinadas linhas da Análise do Discurso. Isto quer dizer que, como acontecimento, conforme dissemos acima, o referido texto passa a ser pensado enquanto uma instância diferencial de ordem temporal própria, não empírica, que atribui o sentido específico a partir de sua ocorrência.

Assim, conforme Guimarães (2005c), o político, que aí se constitui como contradição que instala conflitos determinados no centro do dizer desse discurso, revela, pela linguagem e em termos enunciativos, uma contradição mais específica: aquela entre a normatividade das instituições de direito que regulam e organizam desigualmente o real e a afirmação de pertencimento dos não incluídos, neste caso, aqueles a que a lei quer, ou pretensamente pretende, alcançar.

No que diz respeito à Lei Maior, parte-se do pressuposto de que uma Constituição como a brasileira, independentemente de suas peculiaridades jurídico- socais, tem como mote o cumprimento das exigências para o estabelecimento de políticas públicas voltadas a um Estado Democrático de Direito. Há, assim, uma espécie de deontologia do “cumpra-se” (que pode querer dizer “ausência de cumprimento”), epistemologicamente ligada à noção de Constituição.

Como afirma Guimarães (2018, p. 37), “a definição de acontecimento [...] diversamente dessa posição empirista, exige que algo seja relacionado a uma certa ordem que lhe atribui uma significação”. Essa ordem é a sua própria ordem, que é o que caracteriza a enunciação. Assim, são considerados neste conceito, de um lado, a especificidade dessa instância e, de outro, a enunciação, cuja característica é oriunda dessa especificidade, que é o que o faz diferente de outros acontecimentos, qual seja, sua temporalidade (própria) de sentidos.

Na crítica que elabora relativa ao não cumprimento dos direitos previstos na unidade constitucional, Streck (2000) o faz evocando, antes de mais nada, a ideia de que deve o Judiciário, primordialmente, atentar para o fato de que um Estado Democrático de Direito é perpetuado pela via do controle jurisdicional de constitucionalidade das leis, o qual (Judiciário) “pode servir como via de resistência às investidas dos Poderes Executivo e Legislativo, que representem retrocesso social ou a ineficácia dos direitos individuais ou sociais”. Completa seu raciocínio tratando de temporalidade desse acontecimento, diferente do modo como tratamos aqui: “a Constituição não tem somente a tarefa de apontar para o futuro. Tem, igualmente, a relevante função de proteger os direitos já conquistados”.

Num dos momentos em que constrói sua crítica, Streck (2000, p. 45) chama a atenção para uma concepção de Constituição em que esta é, e deve ser tratada, enquanto “espaço de regulação garantidor das relações democráticas entre Estado e a Sociedade”. Um primeiro olhar sobre esta definição nos conduz a uma aceitação sem ressalvas à ideia de garantia prevista nesse instituto, porém, uma análise conduzida pela via político-enunciativa, nos termos em que colocamos acima, nos mostrará que o político não é significado e constituído nos espaços de enunciação por um dizer normatizado da dogmática jurídica, nem por sua afirmação de pertencimento

(a garantia que nos é “por direito”), mas por uma contradição que instala nesses espaços o conflito no centro desse dizer.

Como vimos, para Guimarães (2018), algo só tem sentido de acontecimento específico se tomado/considerado numa determinada ordem, caso contrário, será tomado como um fato simplesmente ocorrido. Portanto, não é possível tomar algo como acontecimento quando isolado, isto é, como tomado em sua dimensão empírica. O acontecimento, visto desse modo, não é apriorístico.

A Constituição Federal, no modo como é concebida no Brasil, encontra-se situada, como já apontamos, no topo da pirâmide jurídica (VELOSO, 2000) e fundamenta a validade das leis e atos normativos. Assim, as normas que a constituem são dotadas de preeminência em relação às demais leis que integram o ordenamento jurídico estatal. Tais normas infraconstitucionais devem se adequar, isto é, ser

pertinentes, conformar-se com a Constituição, que funciona como o parâmetro, o valor

supremo, o nível mais elevado do direito positivo. Por isso, denominada a “Lei das leis”.

Justamente para manter essa supremacia é que é criado um sistema de defesa desse instituto, que seja capaz de “imunizá-lo”, que faça com que atos normativos que o antagonizem percam sua eficácia e não se “concretizem” enquanto lei, esse sistema é controle de constitucionalidade.

Segundo as concepções defendidas pela dogmática jurídica, a inexistência de um controle da constitucionalidade das leis levaria à desarmonia da estrutura legal, do ordenamento jurídico, uma vez que violaria o princípio essencial da Carta Magna. Num país como o Brasil, cuja Constituição é do tipo rígida, o controle de constitucionalidade é fundamental, além de ser o principal mecanismo de proteção constitucional. (VELOSO, 2000)

Outro aspecto importante do sistema de proteção da Constituição brasileira é que o judicial control é um processo de controle indireto, isto é, só funciona quando sua função judicante é provocada por alguém que se sinta lesado. Tais características relativas a esse acontecimento enunciativo lhe auferem particularidades fundamentais para a análise linguística. Isso porque, a partir de 15 de novembro de 1889, na

transição de monarquia para república, a questão do federalismo passa necessariamente por um Estado regido eminentemente por uma Constituição, aliás, garantido por seu meio, em que a repartição de competências passa a ser uma tarefa constitucional (BASTOS, 2014).

Ora, para pensarmos a Constituição como acontecimento, por exemplo, alinhados com o que afirma Guimarães (2005; 2018), dizemos que a diferença que constitui a especificidade do acontecimento “Constituição Federal” é uma temporalidade de sentidos representada pela relação entre um passado, um presente e um futuro, na qual a Constituição não é pensada como estando no tempo, mas como uma instância constituída de seu próprio tempo:

Para caracterizar esse dizer de que o acontecimento é uma diferença em sua própria ordem, e como essa instância conduz a caracterização da enunciação na linguagem (GUIMARÃES, 2018), procederemos, em relação aos dois textos escolhidos como acontecimentos, à configuração da dimensão dessas unidades de análise, no intuito de caracterizar cada um deles.

Importa, antes de partirmos para a análise propriamente dita desses dois acontecimentos, reafirmar, a partir da posição enunciativa que defendemos aqui, o que dissemos acima a respeito da relação entre o acontecimento da Constituição Federal do Brasil e o acontecimento do Marco Civil da Internet – Lei 12.965/14: não se trata de uma relação do tipo em que o texto infraconstitucional (Marco Civil) é dado por uma conformação do que se encontra enunciado no acontecimento da Carta Magna, mas de algo enunciado enquanto uma diferença em relação ao texto constitucional.

A posição defendida neste trabalho encontra-se “revestida” de um significado demonstrado pelos mecanismos de análise disponibilizados pela teoria semântica do acontecimento, que considera o sentido e o significado determinados pela enunciação, em outras palavras, propor o deslocamento analítico das posições idealistas e empíricas de noções interpretativas de orientação de filosofias da consciência, próprias do olhar jurídico, e, em seu lugar, oferecer um leitura materialista e simbólica (não-empírica) de tal modo que recoloque esta questão no domínio efetivo

das ciências da linguagem, que seja lastreada por uma relação política entre línguas e falantes.

Nesse sentido, observamos o que afirma Guimarães (2008, p. 34, grifo nosso):

Tomar o conceito de espaço de enunciação [...] permite considerar o funcionamento enunciativo a partir da relação entre falantes e línguas; indica claramente que a história das línguas pode ser retomada em outros termos,

a partir da consideração das relações próprias do espaço de enunciação

colocando em cheque as concepções históricas que privilegiam ou as relações internas às línguas, ou as relações chamadas de contato. O conceito de espaço de enunciação exige que estes aspectos sejam considerados como constitutivos do processo histórico do funcionamento da linguagem

e das línguas.

Pelo que vimos, a análise linguística de viés enunciativo conduz a uma inflexão analítica histórica nos estudos da linguagem, na medida em que propõe um olhar sobre o texto enquanto acontecimento de linguagem, em que o sentido se constitui como integrado ao texto. Isto quer dizer que, analisar algo dentro dessa posição implica, de uma lado, assumir uma posição de materialidade histórica dada por essa temporalidade própria de cada acontecimento e, de outro, conceber que a análise e descrição de enunciados desse acontecimento é capaz de significar a partir de relações entre elementos linguísticos desses enunciados e o texto com o qual se encontram integrados (GUIMARÃES, 2018).