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Tessituras éticopolíticas do cuidado na saúde mental

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Academic year: 2018

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARA UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ

UNIVERSIDADE DE FORTALEZA

DOUTORADO EM SAUDE COLETIVA COM ASSOCIAÇAO DE IES AMPLA AA

LILIANE BRANDÃO CARVALHO

Tessituras

Éticopolíticas

do Cuidado

na Saúde Mental

FORTALEZA

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LILIANE BRANDÃO CARVALHO

Tessituras

Éticopolíticas

do Cuidado

na Saúde Mental

Tese apresentada ao Curso de Doutorado em Saúde Coletiva por Associação Ampla de IES (UECE/UFC/UNIFOR) como requisito parcial para obtenção do título de Doutor em Saúde Coletiva.

Orientadora: Prof. Dra. Maria Lúcia Magalhães Bosi

FORTALEZA

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação Universidade Federal do Ceará

Biblioteca de Ciências da Saúde

C325t Carvalho, Liliane Brandão.

Tessituras éticopolíticas do cuidado na saúde mental. / Liliane Brandão Carvalho. – 2014. 239 f.: il. color., enc.; 30 cm.

Tese (doutorado) – Universidade Federal do Ceará, Faculdade de Medicina, Departamento de Saúde Comunitária, Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, Doutorado em Saúde Coletiva por associação ampla de IES (UECE/UFC/UNIFOR), Fortaleza, 2014.

Área de Concentração: Saúde Coletiva.

Orientação: Profa. Dra. Maria Lúcia Magalhães Bosi.

1. Saúde Mental. 2. Pesquisa Qualitativa. 3. Ética. 4. Serviços de Saúde. 5. Profissionais de Saúde. I. Título.

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Este trabalho é dedicado à vida , em suas possibilidades de (re) invenções contínuas, e a todos que ousam produzir

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AGRADECIMENTOS

Ao Ser Superior, que guia meus passos em sua infinita sabedoria;

Ao Rui, parceiro de uma vida, que ousou desbravar novas terra s e com quem aprendo diariamente o genuíno sentido de relação, cuidado, afeto e presença, e ainda soube pacientemente compreender meu necessário investimento nesta tese;

À Malu, orientadora e parceira deste trabalho, que me deixou honrada com o convite para o projeto e, com sua abertura, firmeza e sensibilidade, conseguiu potencializar a beleza do emaranhado de cores e fios dessa teia e da nossa relação;

Aos meus pais, Coutinho e Terezinha, sempre prontos ao amparo e cuidado necessários, pela confiança, presença e amor;

À Luciene, Júnior, Luisiane e Ana Luisa, irmãos que a vida me presenteou como verdadeiros amigos, sempre presentes e compreensivos, muito me ajudam a ser uma pessoa melhor;

Aos meus queridos cunhados, continuem muito bem vindos a esta teia que é a nossa família;

Aos meus pequenos príncipes Davi e Arthur e princesas Luisa, Júlia e Beatriz, que me ensinam a manter viva a leveza, a espontaneidade e a sensibilidade da minha criança;

Aos queridos Seu Rui, Fátima e Mônica, uma nova família que me acolheu além-mar e me fez sentir em casa;

Às amigas que pude escolher como irmãs Adriana, Marselle, Eveline, Fabiana, Lena, Patrícia, Caroline, Márcia, Fernanda, Viviane e Val, que em suas singularidades souberam também pacientemente compreender minhas ausências, amparar minhas demandas e vibrar a cada conquista;

Aos meus cuidadores, Nancy Oliveira e Eduardo Almeida, me sinto verdadeiramente honrada e agradecida pela presença de vocês na minha vida;

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Ao Movimento e aos seus trabalhadores que, gentilmente, a ceitaram dividir suas experiências na árdua arena das práticas de saúde mental no nosso Nordeste;

Às professoras Magda, Verônica e Leônia e ao professor Ricardo, por aceitarem o convite para a banca desta tese e pelas contribuições desajoladoras que me intimaram à tessitura deste trabalho;

À professora Salete Jorge e às secretá rias Mairla e Zenaide, pela disponibilidade em responder às minhas incontáveis demandas;

À CAPES, pelo apoio financeiro que possibilitou o Doc-sw na Universidade de Coimbra, e, sobretudo, ao professor Mauro Serapioni que aceitou ser orientador desse estágio;

A todos os colegas do Lapqs, pelos encontros sempre produtivos e, por isso, valiosos;

Aos colegas do Apheto, em especial à Karynne, ao Márcio, por nossas frutíferas conversas heideggerianas, e à querida Virgínia Moreira, com quem muito aprendo sobre as possibilidades fenomenológicas na psicologia;

À Unifor, pelo apoio com a bolsa de iniciação científica e pela concessão do afastamento para o estágio doutoral, e aos meus alunos e estagiários com quem muito aprendo sobre outras possibilidades de relações;

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Vou-me embora pra Pasá rgada Lá sou amigo do rei Lá tenho a mulher que eu quero Na cama que escolherei Vou-me embora pra Pasá rgada Vou-me embora pra Pasá rgada Aqui eu não sou feliz Lá a existência é uma aventura De tal modo inconsequente Que Joana a Louca de Espanha Rainha e falsa demente Vem a ser contraparente Da nora que nunca tive (...) Em Pasárgada tem tudo É outra civilização Tem um processo seguro De impedir a concepção Tem telefone automático Tem alcalóide à vontade Tem prostitutas bonitas Para a gente namorar E quando eu estiver mais triste Mas triste de não ter jeito Quando de noite me der Vontade de me matar — Lá sou amigo do rei — Terei a mulher que eu quero Na cama que escolherei Vou-me embora pra Pasá rgada.

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RESUMO

Este estudo teve como objetivo analisar o modo éticopolítico do cuidado com base nas experiências de trabalhadores em um dispositivo comunitário de saúde mental localizado na região Nordeste do Brasil. Para tanto, construiu-se um modelo analítico, aqui concebido como uma lente compreensiva do modo éticopolítico do cuidado, inspirada nos pilares do pensamento complexo, cuja constituição aponta para três dimensões centrais: acolhimento, entrelaçado à ética, a relações desinteressadas, dialógicas e solidárias, de circularidade e de experiências voluntárias; autonomia, eixo mais político indissociável de dependência, assunção, contratualidade, emancipação e participação; e produção de vida, assentada na concepção hermenêutica crítica de saúde, envolvendo liberdade, projetualidades e cidadania. Em termos metodológicos, trata-se de um estudo qualitativo, alinhado à vertente fenomenológico-hermenêutica, adotando o procedimento de triangulação das técnicas, conjugando entrevistas em profundidade, observações e consultas a fontes secundárias. Os informantes foram os onze trabalhadores que atuavam nas práticas de cuidado desenvolvidas no dispositivo no momento do estudo. A categorização e interpretação do material empírico evidenciaram quatro eixos temáticos assim sistematizados: I) Oásis no Deserto; II) Condições de Acolhimento; III) Tramas da Autonomia; e IV) Despertar do Ser. Dentre os achados, destacam-se o histórico da estruturação do dispositivo, as experiências de trabalhadores em seu percurso terapêutico no próprio dispositivo, o autoconhecimento como elemento central no cuidado de si e do outro e o acolhimento como relações de escuta preponderantemente dialógicas, ainda que se observe um modo mais interessado na técnica. Outro achado revela significados do voluntariado e o compromisso ético de dar e receber. São também desvelados diferentes sentidos e significados concernentes à autonomia, implicando distintas formas de lidar com a rede de dependências, ora de forma dócil, ora mais crítica ante tutelas e o poder médico. No que concerne à pertença e à participação, emergiram possibilidades de trabalho mais coletivas, necessidade de um maior engajamento do dispositivo nas lutas comunitárias, bem como uma participação mais restrita e de diminuta perspectiva decisória. Por fim, cabe assinalar a manifestação de uma noção mais ampliada de saúde, rompendo com amarras diagnósticas, bem como possibilidades de despertar do ser e de circulação no mundo. Foi possível constatar mediante o estudo realizado junto às experiências dos trabalhadores o emaranhamento de vários fios que ora se aproximam, ora se distanciam do que aqui foi concebido como modo éticopolítico do cuidado.

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ABSTRACT

This study aims at analyzing the ethical/political way of providing care based on

workers’ experiences at a mental health community facility situated in the Brazilian northeast.

Therefore, an analytical model was built, conceived here as a comprehensive lens over the ethical/political mode of care, inspired by pillars of complex thought, whose constitutions point at three central dimensions: user embracement, interlaced with ethics, and with disinterested relations which can be dialogical and supportive, of circularity and of voluntary experiences; autonomy, most political and indissoluble axis of dependence, assumption, contractuality, emancipation and participation; and life production, centered on the critical hermeneutical conception of health, which involves freedom, projectualities and citizenship. In methodological terms, it is a qualitative study, aligned with the hermeneutical-phenomenological branch. The study employs the technique-triangulation procedure, and combines in-depth interviews, observations and consultations to secondary sources. The providers of information were the eleven workers who were operating in care-taking practices being developed at the moment the study was being produced. The categorization and interpretation of empirical material evidenced four theme axes thus systematized: I) Oasis in the Desert; II) User Embracement Conditions; III) Autonomy Frameworks; and IV) Awakening of a Being. Some of the best discoveries are the records of service structuring, the workers’ experiences in their therapeutic path along the routines of service, self-awareness as a central element when caring for oneself and for others and reception as a relation of predominantly dialogical listening, although a more technique-oriented mode is observed. Another discovery has revealed new meanings in voluntary participation and an ethical commitment towards giving and receiving. Another discovery concerns different meanings and purposes related to autonomy, which implies distinct ways of dealing with a network of dependencies, sometimes in a more docile way, sometimes in a more critical way in the face of tutelage and the medical power. Concerning a sense of belonging and participation, new possibilities of more collective work emerged along with a necessity of greater engagement to their respective units during community struggles, as well as a more restrict participation and small decision-making perspective. At last, it is worth it to point out at a more comprehensive notion of health, which breaks away from diagnostic ties, as well as at possibilities of a

being’s awakening and circulation in the world. It was possible to detect, by means of this study realized with workers’ experiences, the interlacing of several lines which sometimes

agree and sometimes disagree with the ethical/political mode of care.

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS ASC Abordagem Sistêmica Comunitária

ACP Abordagem Centrada na Pessoa

CAPS Centro de Atenção Psicossocial

CAPES Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior

CEBs Comunidades Eclesiais de Base

CES Centro de Estudos Sociais

CDV Centro de Defesa da Vida

CNPq Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientifico e Tecnológico

Doc-sw Doutorado ‘sanduíche’ GBJ Grande Bom Jardim

GF Grupo focal

IDH Índice de Desenvolvimento Humano

LAPQS Laboratório de Avaliação e Pesquisa Qualitativa em Saúde

MS Ministério da Saúde

MSMC Movimento de Saúde Mental Comunitária

MSMCBJ Movimento de Saúde Mental Comunitária do Bom Jardim

OMS Organização Mundial da Saúde

ONG Organização Não Governamental

SUS Sistema Único de Saúde

TC Terapia Comunitária

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UC Universidade de Coimbra

UECE Universidade Estadual do Ceará

UFC Universidade Federal do Ceará

UNIFOR Universidade de Fortaleza

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO 13

2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA 20

2.1 A reforma com seu projeto de desinstitucionalização e os desdobramentos na questão do cuidado

20

2.2 O cuidado na saúde e uma lente compreensiva do modo éticopolítico 33 2.2.1 Reflexões sobre ética, política e o cuidado em sua polissemia na saúde 34

2.2.2 Uma tessitura do modo éticopolítico do cuidado 50

3 ASPECTOS METODOLÓGICOS 81

3.1 Marco teórico-conceitual 81

3.2 O percurso da pesquisa 89

4 DISCUSSÃO DOS RESULTADOS: uma tessitura possível 98

4.1 Oásis no deserto 98

4.2 Condições de acolhimento 118

4.3 Tramas da autonomia 155

4.4 Despertar do ser 183

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS 200

REFERÊNCIAS 212

ANEXOS 225

(15)

1 INTRODUÇÃO

A tessitura do objeto de estudo desta tese, o modo éticopolítico do cuidado, passou por várias interrogações, por alguns tensionamentos e por necessários deslocamentos

que possibilitaram uma reconfiguração bordada com fios de antigos e conhecidos tons e

outros de novas cores. O desenvolvimento de um trabalho com esta envergadura passa sempre

por nós, pesquisadores, por nossas experiências, nossos conceitos já estabelecidos e nossas

possibilidades de nos re-dizermos continuamente. Para além de um investimento científico, engrandecedor e desafiante por si só, consideramos esta tese uma genuína produção de vida,

que nos exigiu romper os muros da zona de conforto e do percurso mais seguro para buscar

interrogar novos modos de ser e de estar diante de nós mesmos, do outro e do mundo.

Esta é uma investigação ocupada com experiências, e enquanto tal, como já expôs

Gadamer (1997), nos convoca a começar por nós mesmos. Meu percurso nessa teia teve início

antes de ingressar oficialmente neste programa de doutorado quando fui convidada a integrar

a equipe do projeto de pesquisa multicêntrico intitulado “Práticas Inovadoras e

Desinstitucionalização1”, executado pelo Laboratório de Avaliação e Pesquisa Qualitativa em Saúde – LAPQS. Um universo de desafios se descortinava para aquele grupo mediante a aprovação do projeto em um edital universal do CNPq2.

Nosso maior propósito ali era, a partir daquela temática, problematizar e

demarcar conceitualmente um entendimento de prática s inova dora s em saúde mental, tendo como objeto de estudo uma experiência desenvolvida na periferia da capital cearense,

desde a década de 90: o Movimento de Saúde Mental Comunitária do Bom Jardim, mais

conhecido como Movimento – MSMCBJ ou MSMC, termos também utilizados para denominar essa experiência e que serão empregados ao longo deste texto de modo indistinto.

Meu interesse inicial foi, portanto, estudar as práticas de cuidado nesse

dispositivo, com foco na dimensão técnico-assistencial, para interrogar se e como tais práticas

constituiriam uma inovação no campo da saúde mental, o que nos permitiria dar seguimento

às temáticas de ética e do cuidado em saúde, já privilegiadas e publicadas em estudos

anteriores (CARVALHO, 2007; CARVALHO; BOSI; FREIRE, 2008, 2009; CARVALHO;

1 Pesquisa “Práticas Inovadoras e desinstitucionalização: analisando um movimento comunitário em saúde

mental no nordeste do Brasil” coordenada pelas professoras Drª Maria Lúcia Magalhães Bosi (Departamento de Saúde Comunitária – UFC) e Drª Verônica Morais Ximenes (Departamento de Psicologia – UFC).

2

(16)

FREIRE; BOSI, 2009). A pesquisa CNPq seguia seu cronograma, sendo gradativa e

coletivamente construída entre os anos de 2008 a 2011, fato que muito facilitaria o caminho

para responder também à minha pergunta inicial no doutoramento.

No entanto, o que seria relativamente seguro tornou-se gradativamente

desconfortável pelo fato de perceber meu objeto de estudo coletivamente respondido.

Experienciei uma exigência – ética, antes de tudo – de interrogar-me sobre outros sentidos possíveis que fizessem sentido, sobretudo, para mim mesma. E por ser esta uma pesquisa de

enfoque qualitativo, o qual se constitui sempre no entrelaçamento da teoria, da técnica e do

pesquisador (BOSI, 2012), precisamos ressaltar essa importante mediação subjetiva.

Interessante expor aqui esse processo, o qual pode parecer um mero deslocamento

de objeto, mas em momento algum assumiu caráter simples; na realidade, foi algo

necessariamente desalojador, dados os vários momentos de dificuldades, questionamentos e

de embate de alteridades e significativas presenças, sobretudo, na relação com nossa professora orientadora. Outro momento intenso foi propiciado pela banca de qualificação, a

qual, na presença dos professores que aceitaram o nosso convite para compô-la, acabou por

nos fazer outro convite, mais provocador ainda: desvelar sem pudor o bordado, ponto a ponto,

da história desta pesquisa e, sobretudo, assumir nosso posicionamento, nossa presença.

Definitivamente, sozinha não conseguiria chegar até aqui – daí o uso extenso na redação desta tese, salvo em algumas passagens efetivamente singulares, da primeira pessoa

do plural – e que acaba por revelar um primeiro pressuposto do nosso trabalho: nossa manifestação no mundo se dá sempre como ser-com (HEIDEGGER, 1989), somos sempre

seres de relação, ou dizendo de outro modo, precisamos do outro para nos constituirmos e isso

só é possível no mundo das nossas relações. Eis porque, nesta tese, seguimos no escopo de

outras investigações interessadas mais em uma discussão ontológico-existencial do cuidado

que transcende a questão técnica do atendimento e será melhor discutida no próximo capítulo.

Outro passo significativo nessa tessitura foi o estágio doutoral – Doc-sw, com apoio da CAPES – realizado no período de outubro de 2011 a fevereiro de 2012 no Centro de Estudos Sociais (CES), da Universidade de Coimbra, aonde cheguei com o desconforto

instalado em relação ao objeto. Lá, pareceu-me de início uma oportunidade única diante dos

novos referenciais teóricos da sociologia, especificamente da sociologia da saúde, e da

discussão sobre movimentos sociais. Ainda na UC, fui interrogada pelo orientador estrangeiro

(17)

No regresso ao Brasil, esta me pareceu uma primeira via possível para (re)

demarcar minha questão de investigação; entretanto, com o caminhar desta pesquisa, dei-me

conta que o meu interesse não era olhar esse dispositivo de saúde mental comunitária pela

ótica da teoria dos movimentos sociais – talvez nem o próprio se proponha movimento segundo a teoria social – e sim a partir de uma perspectiva ética que é, ao mesmo tempo, política.

Esta na realidade já estava lá, velada, e passou a brilhar diante dos meus olhos

naquele momento da caminhada. Para tanto, foi preciso uma reaproximação com algo que não

me era muito familiar, o Movimento – minha ligação com o dispositivo ocorreu tão somente no momento da pesquisa CNPq –, mas, para a realização deste estudo, precisava ser (re) descoberto e tornar-se novo. Permitir, enquanto pesquisadora, tocar e ser tocada e

distanciar-se, quando necessário, são momentos próprios de quaisquer pesquisas de inspiração

fenomenológico-hermenêutica como esta – uma referência também para os meus estudos na prática docente –, as quais nos convidam continuamente ao movimento, à descoberta, ao desvelamento e à produção de novos sentidos.

Desse modo, reconhecemos a preciosidade de cada ponto até aqui traçado e o

quanto foi necessário e árduo caminhar por cada um daqueles passos. Agora, precisávamos

seguir por estradas mais autorais, assumindo com maior clareza outro pressuposto deste

trabalho a partir da conclusão apontada na pesquisa CNPq e que se configurou como nosso

ponto de partida: ali, no Movimento, há produção de um cuidado inovador no campo da saúde

mental (BOSI, 2011; BOSI et al., 2012). Nessa pesquisa, também inauguramos uma discussão sobre inovação no campo da saúde mental e delimitamos subsídios à construção de práticas

inovadoras e modelos avaliativos multidimensionais nesse campo (BOSI et al., 2011).

A temática do cuidado continuou a nos despertar interesse, tal como se deu no

período do mestrado acadêmico em psicologia. Contudo, ousamos agora ampliar a discussão

para outra arena também complexa: o campo da saúde coletiva em sua interface com a saúde

mental. Campo é aqui considerado como um espaço social específico, com suas relações e

lutas de força e estratégias de poderes e saberes (BOURDIEU, 1994).

Ao assumirmos o desafio provocado no Exame Geral de Qualificação do bordado

com maior rigor de cada ponto de nossa lente compreensiva do modo éticopolítico do cuidado, optamos pelo embasamento no pensamento da complexidade. Este nos exige sair de

(18)

complexidade da própria vida. A ênfase são as múltiplas interações e interdependências dos

vários fios com o todo ou do todo e suas partes constituintes e em que cada elemento conserva

sua singularidade, mas de algum modo contém o todo (MORIN, 2002, 2007).

Quando dizemos: ‘É complexo, é muito complexo!’, com a palavra ‘complexo’ não estamos dando uma explicação, mas sim assinalando uma dificuldade para explicar. Designamos algo que, não podendo realmente explicar, vamos chamar de ‘complexo’. Por isso é que, se existe um pensamento complexo, este não será um pensamento capaz de abrir todas as portas (como essas chaves que abrem caixas-forte ou automóveis), mas um pensamento onde estará sempre presente a dificuldade [...] Pode-se dizer que há complexidade onde quer que se produza um emaranhamento de ações, de interações, de retroações. (MORIN, 1996, p. 274, grifo nosso)

Sem pretensão alguma de abrir ou fechar quaisquer possibilidades, intencionamos

aqui tão somente desvelar uma tessitura de nossa lente compreensiva, partindo do

pressuposto da complexidade de que cada um dos eixos do éticopolítico, cada parte ou elemento, contém o todo. Como uma complexa teia formada por fios de distintas cores,

representativos também de outros saberes externos aos do campo da saúde, a configuração

dessa lente adquire ainda o movimento de uma espiral reveladora de desdobramentos e

movimentos que na realidade nunca se fecham. Nessa retroalimentação contínua, cada uma

das condições possibilitadoras de nossa lente se desdobra em outros elementos que também

não podem ser considerados de modo estanque, apenas a partir do emaranhamento

constitutivo.

Dada a exigência de adensamento teórico para a tessitura das condições de

possibilidade de um modo éticopolítico do cuidado, tomamos como base uma publicação anterior (BOSI et al., 2011), na qual discutimos de forma inaugural o ético-político no campo da saúde mental como um dos eixos fundamentais de produção de cuidado inovador. Nessa

incorporação, o ético-político implica experimentação e invenção de práticas de cuidado

marcadas pela disponibilidade de afetar e ser afetado, pela participação, relação dialógica e

circularidade do cuidado e por uma preocupação com os processos de exclusão quando

recaímos em relações e concepções manicomiais.

Outra influência para essa tessitura foi a discussão de Amarante (2003, 2007,

2010) sobre as dimensões de produção de cuidado em saúde mental no território,

denominadas teórico-conceitual, técnico-assistencial, sociocultural e jurídico-político. A

primeira dimensão implica a produção de saberes desinstitucionalizantes no campo da saúde

mental; a segunda, a revisão dos modelos assistenciais centrados mais no acolhimento e na

(19)

transformar sua situação concreta de vida; e na última dimensão, o autor delimita as questões

dos direitos legais e da cidadania. Em nosso entendimento, o cuidado em um modo

éticopolítico será considerado da ordem dessas quatro dimensões.

Na reconfiguração ora proposta, o modo éticopolítico é grifado em conjunto e em itálico para ressaltar já sua diferença e somente será entendido a partir de três condições

mutuamente constituintes: acolhimento, autonomia e produção de vida. Eixos complexos e polissêmicos por si só, aqui passam a ser tecidos em conjunto e, ao desvelarem relações e

interações entre eles, dão sustentação uns aos outros e são atravessados por cada um deles.

Nessa perspectiva, acolhimento entrelaça ética com relações desinteressada s, dialógicas e de solidariedade, com possibilidades de circularidade do cuidado e de experiências de

voluntariado. Autonomia é um eixo mais político indissociável de dependência, no sentido de interdependência, e auto-organização, de assunção, de contratualidade, de passos emancipatórios e do fenômeno da participação mais decisória.

Sabendo que nessa tessitura éticopolítica do acolhimento e da autonomia o que está em jogo é o poder sobre a vida, o terceiro eixo, produção de vida, está assentado em uma concepção hermenêutica crítica de saúde e envolve liberdade, no sentido de poder de criação e

responsabilidade, projetualidades e novas formas de cidadania, mais coletivas e produzidas

em meio a exercícios éticos. Neste estudo, o éticopolítico tem caráter complexo e polissêmico e não pode ser formulado como uma lei geral, nem ser uma doação, haja vista ser produzido

em e na relação.

Consideramos ainda essa produção de cuidado a partir de um determinado ethos

fundado na exigência ética do profissional de saúde poder romper com a mera postura de

técnico ou instrumento de cura. Ao invés de atores ocupados com a reprodução de velhas

práticas, precisamos que se ocupem com a produção de espaços e ambientes de cura

(FIGUEIREDO, 1995), configurados como legítimas moradas de abertura à alteridade e

emergência do novo, cuja reflexão é, antes de tudo, de esfera ética.

Desse modo, consideramos a produção de um outro modo de cuidado como

sendo, sobretudo, da ordem do ethos, do qual se origina o termo ética. Nesta investigação, ética implica relação e atitude e será demarcada em sua natureza reflexiva – daí nossa ocupação em continuamente pôr em questão as coisas já dadas ou estabelecidas, recorrendo ao recurso do destaque em itálico – e não se dissociará, nem deveria, do termo política que se assenta, por sua vez, em compromisso e tomada de posição do sujeito no mundo.

(20)

uma perspectiva política, interessado na transformação dos modos de estar no mundo

enquanto condição de possibilidade potencializadora de vida.

No que concerne ao interesse desta investigação, privilegiamos os trabalhadores e

reconhecemos a relação que se configura como condição de possibilidade desses atores

tornarem-se, ao mesmo tempo, sujeitos de responsabilidade pelo outro, ao assumirem postura

reflexiva para melhor responder ao apelo por acolhimento e cuidado – seja de si mesmo, do outro e do mundo. Sabendo que nos encontros produzidos em um serviço de saúde coletiva,

em especial no cotidiano da saúde mental, é tradição o profissional agir sem negociação com

o outro (ONOCKO CAMPOS; CAMPOS, 2012), a exigência continua sendo pôr em questão

a norma estabelecida, avaliando constantemente o sentido e os fins de sua ação

(CARVALHO; FREIRE; BOSI, 2009). Reconhecemos ser uma limitação de nosso estudo

delimitar apenas os trabalhadores como informantes desta pesquisa, haja vista entendermos o

cuidado materializado sempre em e na relação – o que pode ser tema para investigações futuras.

Estamos ainda ocupadas com o campo da saúde mental que vive um processo de

revisão e nos desafia a tecer uma nova atitude diante do outro que vá de encontro à exclusão,

distanciamento e coisificação (MARIOTTI, 2002), bem como à tutela, invalidação e

infantilização. Ao invés de simplesmente tratar, que pressupõe sempre uma nomeação diagnóstica (ALVES, 2006), devemos nos ocupar verdadeira e existencialmente com o cuidar

e assim produzir novos modos de ser e estar na vida, que sejam socialmente mais

responsáveis e emancipatórios (AMARANTE, 2003, 2007, 2008; CAMPOS, 2009; SANTOS,

2007, 2010).

Sabendo ainda ser ênfase desse processo a produção de espaços mais

comunitários e menos institucionalizados (VASCONCELOS, 1992), demarcamos nesta

pesquisa o MSMC como o lócus da nossa investigação. Continuamos interessadas nesse

dispositivo, mesmo reconhecendo não surgir diretamente do processo da reforma e nem fazer

parte da rede oficial de saúde mental de Fortaleza, por entendermos que o Movimento revela,

em sua alteridade, um alinhamento com o ideário reformista ao assumir o desafio de buscar

produzir outras respostas sociais ao problema do adoecimento (BOSI et al., 2011; BOSI et al.,2012; CARVALHO, 2010; GODOY et al.,2012; LIBERATO, 2011).

O privilégio do dispositivo é no acolhimento à pessoa em situação de

adoecimento, ao pretender valorizar relações emancipatórias e potencializar a produção de

(21)

2011). A partir dessa conclusão, decidimos nesta tese pôr em questão esse modo de cuidar a partir da lente compreensiva do cuidado em um modo éticopolítico – conceito detalhado no próximo capítulo, relativo à fundamentação teórica que será iniciada com a discussão sobre a

reforma e seus desdobramentos. Seguimos, desse modo, alinhadas com investigações

ocupadas com projetos de produção do cuidado voltados não ao aperfeiçoamento de saberes e

práticas tradicionalmente invalidantes e excludentes; mas, sim, ao processo de pôr em jogo

essa mesma tradição para interrogar as possibilidades inventivas e potencializadoras de, como

destacou Mendes (1999), novos modos de andar a vida.

Buscamos aqui acessar o dispositivo Movimento, livre o máximo possível de

certezas pré-concebidas – mesmo sabendo, em uma perspectiva fenomenológica, a impossibilidade de livrar-se totalmente delas – para que pudéssemos desvelá-lo em um modo

éticopolítico do cuidado, a partir das informações fornecidas e vivenciadas por seus trabalhadores, sem pretensão alguma de dar conta de um conhecimento da totalidade desse

dispositivo, mas tão somente com o propósito de aprofundar uma compreensão. Nossa tese

visa, assim, a colaborar efetivamente para que esse dispositivo de saúde mental comunitária

possa prosseguir na produção de outros modos de invenção de saúde e, por conseguinte, de

vida, na complexa arena das práticas de cuidado em saúde mental do nosso país.

O percurso metodológico deste estudo será esboçado no terceiro capítulo, no qual

abordamos o marco teórico-conceitual e o bordado ponto a ponto da pesquisa. Depois,

traremos a discussão dos resultados com uma tessitura possível revelada pelos trabalhadores

do dispositivo de saúde mental investigado; no último capítulo, trazemos nossas

considerações sem intenção alguma de finalizar por entendermos que o encerramento de uma

pesquisa hermenêutica e fenomenológica precisa possibilitar a produção de novos sentidos

(22)

2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Este capítulo consiste em dois momentos: primeiro, discutiremos o processo da

reforma psiquiátrica e os desafios da desinstitucionalização para pôr em cena o cuidado em

saúde mental; no segundo tópico, pretendemos fundamentar nossa lente compreensiva do

modo éticopolítico do cuidado, partindo da delimitação de ética, de política e de cuidado para então revelar a tessitura das condições de possibilidades dessa lente, tendo como pano de

fundo o pensamento da complexidade. A exigência por esse pensamento deve-se tanto à

necessidade de um deslocamento do conhecimento já dado de cada elemento constituinte da

lente – polissêmicos em sua maioria; quanto de desconstrução e privilégio das múltiplas interações e interdependências, dos vários fios com o todo ou do todo e suas partes

constituintes, em que cada elemento conserva sua singularidade, mas de algum modo contém

o todo (MORIN, 2002, 2007).

2.1 A reforma com seu projeto de desinstitucionalização e os desdobramentos na questão do cuidado

O início do processo da reforma psiquiátrica no país remonta ao período da

redemocratização no final da década de 70, palco de intensa movimentação social (LUZ,

2006) referente às políticas públicas do campo da saúde. A Reforma surge como um

desdobramento do movimento sanitarista, ao denunciar o modelo psiquiátrico tradicional,

marcado pela medicalização da loucura e pela violência e maus-tratos asilares (AMARANTE,

2009, 2010; TENÓRIO, 2002; YASUI; COSTA-ROSA, 2008).

Sobre o movimento sanitário, tipicamente nacional, importante compreendê-lo em

sua caracterização como processo político e técnico-assistencial (PAIM, 2006) voltado à

democratização da saúde no nosso país. A demanda era revisar a organização dos sistemas e

serviços da área e a maior participação do Estado nas questões de saúde, considerada um

direito de cidadania (LUZ, 2006). Foi, no entanto, reduzido em sua capacidade

transformadora ao ser institucionalizado no interior do aparelho estatal e receber a

denominação de Reforma Sanitária oficial, um projeto impotente politicamente e limitado na

reformulação do modo de produção dos serviços de saúde (CAMPOS, 2007).

Quanto à reforma psiquiátrica, embora sua origem remonte ao movimento

(23)

preocupação constante com um viés desinstitucionalizante ao pôr em questão a institucionalização da doença e do sujeito doente; ao contrário do sanitarismo, que perdeu de

vista a discussão sobre os dispositivos médicos de controle e normatização do social

(AMARANTE, 2009).

A inserção da reforma psiquiátrica no movimento da redemocratização das ações

em saúde se deu na interface dos campos da saúde mental e da saúde coletiva (GODOY;

BOSI, 2007), marcados por uma significativa diversidade de discursos e práticas e pelo

entendimento das práticas de saúde como práticas sociais (PAIM, 2006). Neste estudo,

consideraremos campo como um espaço social ou um lugar de lutas, a partir de Bourdieu

(1994), para quem a ciência é um campo social como outro qualquer, com suas relações de

força e monopólio, suas lutas e estratégias pela dominação científica.

Abordar, então, a reforma na interface daqueles dois campos de saberes é buscar

reconhecer o que está em jogo, quais as forças mais ou menos desiguais de poder e os

interesses próprios dessas práticas sociais. Buscaremos agora discutir de modo mais

específico o campo da saúde mental, marcado por conhecimentos e atuações técnicas plurais e

polissêmicas. Enquanto campo plural denota tanto um afastamento da figura médica da

doença que desprivilegia os aspectos subjetivos e sociais da existência concreta dos usuários,

quanto demarca um campo de práticas e saberes não restritos à medicina ou aos saberes

psicológicos tradicionais (AMARANTE, 2007; TENÓRIO, 2002).

Recuperamos o clássico trabalho sobre a história da loucura no qual Foucault

(1995) revela a experiência de segregação e exclusão que marca a produção de verdade sobre

o louco e o nascimento da psiquiatria clássica. Nessa obra, a loucura é desnaturalizada e

demarcada como uma produção social e o louco, retirado da sociedade em nome de um

tratamento de caráter moral, a partir da referência a um homem natura ou “homem normal

considerado como dado anterior a toda experiência da doença. Na verdade, esse homem

normal é uma criação [social]” (FOUCAULT, 1995, p. 132).

Nem sempre sistematicamente objeto de internações, e já anteriormente

considerada própria das quimeras do mundo (FOUCAULT, 2012), a loucura passa a ser

objeto de conhecimento de uma ciência – a ciência médica. Tal passagem, ressalta Amarante (2009, 2010), terá no dispositivo da medicalização e da terapeutização a marca histórica de

constituição da prática psiquiátrica que segregará os loucos no hospital por um imperativo

(24)

de ser um doente como os outros: você será um doente mental.” (FOUCAULT, 2012, p. 211,

grifo nosso).

A psiquiatria foi revelada, nesse clássico foucaultiano, como a radicalização de

um processo de dominação do louco, cujo saber sobre ele, e sobre as práticas institucionais de

internamento, foi mais importante do que propriamente o saber teórico sobre a loucura

(MACHADO, 2012).

Em meados dos anos 50, a Organização Mundial de Saúde (OMS) promoveu na

Inglaterra e nos Estados Unidos, e um pouco mais tarde na Europa Continental, um consenso

internacional referente à necessidade de mudanças profundas na assistência psiquiátrica para

construir novas estratégias políticas para a saúde mental (NOVELLA, 2010). Especificamente

após a II Grande Guerra, e dada a maior preocupação com políticas sociais, a instituição

manicomial foi questionada como espaço de produção de doença (DIMENSTEIN et al.,

2009).

A partir desse cenário, Amarante (2007, 2008, 2009, 2010) revela as experiências

de reforma de vários países que questionavam o papel e a natureza ora da instituição asilar ora

do saber psiquiátrico e expõe a divisão de dois grupos mais um: 1) a psicoterapia institucional francesa e as comunidades terapêuticas na Inglaterra, voltadas a mudanças no âmbito asilar;

2) a psiquiatria de setor e a psiquiatria preventiva que tentaram desmontar o modelo

hospitalar; e 3) o ‘outro grupo’ da antipsiquiatria e da tradição basagliana, como instauradoras de rupturas com as experiências anteriores, ao pôr em xeque o modelo científico psiquiátrico e

seus dispositivos.

Oportuno evidenciarmos que o caso brasileiro da reforma incorporou questões

originadas de cada uma dessas experiências internacionais, sendo reconhecidamente mais

inspirado no movimento italiano (AMARANTE, 2007; NUNES et al., 2008). Este pareceu ir mais longe na direção de uma efetiva ação política de negação das instituições asilares e de

todo o contexto social que perpetua sua existência (ALVES, 2006; NUNES et al., 2008; ROTELLI, 2001, 2008) – o que nos leva agora privilegiar a antipsiquiatria e a tradição basagliana e seus desdobramentos.

A antipsiquiatria surge na Inglaterra na década de 60 e formula de modo pioneiro

a crítica radical ao saber médico psiquiátrico, instalando uma desautorização quanto à

explicação e tratamento das doenças mentais. Foi um movimento de impugnação das teorias e

(25)

(BAREMBLITT, 1992). O intuito era romper o modelo assistencial vigente ao denunciar a

cronificação das instituições asilares e buscar um outro diálogo entre razão e loucura – considerada não algo interno ao homem, mas uma decorrência da relação com o social

(AMARANTE, 2009, 2010; FOUCAULT, 1995, 2012). A instituição asilar foi questionada

como lugar, como forma de distribuição e como mecanismo das relações de poder pela

antipsiquiatria que traz em seu bojo a luta com, dentro e contra o asilo:

Em vez de retirada para fora do espaço asilar, se trata então de destruição sistemática através de um trabalho interno. E se trata de transferir para o próprio doente o poder de produzir a sua loucura e a verdade de sua loucura em vez de procurar reduzi-la a nada. (FOUCAULT, 2012, p. 209).

Quanto à tradição basagliana, surge na Itália, com a proposta de recolocar a

loucura no discurso social ao assumir posição crítica quanto à produção da doença mental

como objeto médico pelas práticas psiquiátricas, as quais pretendiam muito mais a

intervenção sobre o paciente, do que a interação com sua existência-sofrimento (BASAGLIA, 2005; ROTELLI, 2001). A crítica é feita então ao paradigma psiquiátrico clássico que

transforma a loucura em doença e distancia o louco do convívio social, através dos

manicômios – agora, o que se põe em questão não é a instituição manicômio e sim a própria loucura (ROTELLI, 2001).

Ao pôr em jogo a capacidade do saber psiquiátrico de dar conta isoladamente da

questão da loucura e do asilo enquanto um dispositivo de intervenção técnica, a denominada

Psiquiatria Democrática italiana buscou embasar toda uma superação da prática tradicional de

exclusão (ALVES, 2006). O objetivo central era, segundo Yasui (2011), mudar a condição

legal e civil do dito doente mental; para tanto, se devia partir da desmontagem interna das

instituições – hospitalares ou não, ditas terapêuticas e mais preocupadas em tratar do que em cuidar:

Torna-se preciso desmontar as relações de racionalidade/irracionalidade que restringem o louco a um lugar de desvalorização e desautorização a falar sobre si. [...]

Neste momento, a reivenção das práticas precisa confrontar-se no espaço da comunidade e na relação que os técnicos estabelecem com a loucura, com a solidariedade e o desejo da produção da diferença plural. (AMARANTE, 2009, p. 48, grifo nosso)

Foi instaurada uma ruptura com saberes e práticas médicas psiquiátricas comprometidos com

a loucura enquanto objeto de intervenção médica e social, colocando em cena um projeto de

(26)

A proposta agora era operacionalizar a “tentativa de superação do cenário histórico de desassistência e maus tratos no campo da saúde mental.” (DIMENSTEIN et al.,

2009, p. 64) para transformar a relação entre sociedade e loucura ao pôr em xeque não só as instituições psiquiátricas tradicionais, mas também os conceitos e saberes que legitimam suas

práticas e apontam para projetos atuais de construção de um novo lugar social para as pessoas em sofrimento (AMARANTE, 2007; YASUI; COSTA-ROSA, 2008). Eis porque a

desinstitucionalização é considerada a premissa ética fundamental da reforma, haja vista ter

como interesse “desconstruir a exclusão e a lógica manicomial concreta e simbólica que pauta não apenas os dispositivos psiquiátricos, mas atravessa também as relações sociais e culturais

com a loucura.” (GODOY; BOSI, 2007, p. 295).

A ênfase do projeto de desinstitucionalização é ir além da mera reorganização do

modelo assistencial para alcançar as práticas e concepções sociais (AMARANTE, 2007),

privilegiando a substituição gradual do modelo de atenção e gestão de saúde mental

(VASCONCELOS, 2008). Não deve ser restrito a mera desospitalização, entendida como

redução de admissões ou do tempo médio de internações nos hospitais psiquiátricos

(AMARANTE, 2007), responsável pela transferência de “multidões de pacientes do abandono manicomial ao abandono extramanicomial.” (SARACENO, 2001, p. 23). Também não se

reduz à desassistência – concepção defendida por setores psiquiátricos tradicionais, corporativos e conservadores, aliados aos interesses econômicos de exploração da loucura

(GODOY; BOSI, 2007). É, na realidade, um projeto que ambicionou ir muito além da simples

“substituição dos hospitais psiquiátricos para internamento prolongado por serviços alternativos de menor dimensão, menos isolados e com base na comunidade, para cuidar das

pessoas com doença mental” (LEFF; WARNER, 2008, p. 49).

Ao analisar a realidade da saúde mental brasileira, Amorim e Dimenstein (2009)

apontam uma série de impasses que comprometem a efetivação do processo de

desinstitucionalização e ressaltam sua redução à mera desospitalização como empecilho

principal – perspectiva também assinalada em Vasconcelos (2008). Tal dificuldade potencializa o não atendimento à demanda em saúde mental por parte dos serviços

substitutivos, corroborando para a proliferação de discursos que relacionam esses lócus à

desassistência e, assim, à manutenção da estrutura psiquiátrica tradicional.

De forma sintética, Vasconcelos (1992) entende a desinstitucionalização como a

mudança de ênfase do hospital psiquiátrico para formas menos institucionalizadas e mais

(27)

demarcar uma progressiva e contínua superação das condições de dependência dos pacientes

asilares e dos automatismos invalidantes, característico do círculo vicioso doença-resposta invalidante à doença. Enquanto processo social complexo mobilizador de todos os atores envolvidos diretamente com a questão do adoecimento, a desinstitucionalização pode ser

definida como:

um trabalho terapêutico, voltado para a reconstituição das pessoas, enquanto

pessoas que sofrem, como sujeitos. Talvez não se ‘resolva’ por hora, não se ‘cure’ agora, mas no entanto seguramente ‘se cuida’. Depois de ter descartado a ‘solução

-cura’ se descobriu que cuidar significa ocupar-se, aqui e agora, de fazer com que se

transformem os modos de viver e sentir o sofrimento do ‘paciente’ e que, ao mesmo

tempo, se transforme sua vida concreta e cotidiana, que alimenta esse sofrimento.

(ROTELLI; LEONARDIS; MAURI, 2001, p. 33, grifo no original)

A desinstitucionalização, enquanto base para redimensionar o objeto da saúde

mental na reforma, pode ser ainda caracterizada como um “processo ético-estético de reconhecimento de novas situações que produzem novos sujeitos, novos sujeitos de direito e

novos direitos para os sujeitos” (AMARANTE, 2003, p. 50), fundada numa ética da

responsabilidade para com o outro. São então privilegiadas noções como existência-sofrimento do sujeito em sua relação com o social (ROTELLI, 2001), dando voz e espaço a ele e às suas necessidades, trazendo o mesmo à cena para colocar de fato a doença entre

parênteses (BASAGLIA, 2005). Torna-se cada vez mais insuficiente o modelo de objetivação

e coisificação do sujeito e da experiência humana próprios da psiquiatria tradicional

(AMARANTE 2007).

Com a doença colocada entre parênteses (BASAGLIA, 2005), tem-se a

oportunidade de se deparar com o doente real em seus desdobramentos experienciais, que

busca um serviço de saúde. É a pessoa do doente o objetivo do trabalho, não a doença, e o

interesse não é mais o processo de cura e sim o de invenção da saúde (AMARANTE, 2010):

Então, pôr a doença entre parênteses, sim, mas apenas para permitir a reentrada em cena do paciente, do sujeito enfermo, mas, em seguida, agora, em homenagem a Basaglia, sem descartar o doente e seu contexto, voltar o olhar também para a doença do doente concreto. Senão qual especificidade teriam os serviços ou os profissionais de saúde? (CAMPOS, 2003, p. 55)

Podemos perceber a nítida inspiração fenomenológica dessa ideia basagliana,

mais especificamente com a etapa metodológica da redução e sua suspensão ou colocação

entre parênteses das coisas já dadas ou estabelecidas – sem, no entanto, jamais negá-las (HUSSERL, 1954). Por essa perspectiva, privilegiada também nos aspectos metodológicos do

(28)

existência-sofrimento, como ressaltou Campos (2003); o que se faz necessário é apenas fazer uma interrogação para deixar de lado por um instante – mesmo sabendo ser impossível na totalidade –, realizando um verdadeiro deslocamento fenomenológico. Nessa virada é possível ocorrer um processo de interrogação ou, como aqui destacamos, um processo de pôr em questão: ao invés de partir da doença em si ou do conhecimento já dado sobre ela, o ponto de partida são os sentidos atribuídos pelo sujeito a sua condição adoecida de estar no mundo, o

que evidencia tanto o sujeito, quanto seu contexto de vida, em uma co-constituição.

Em relação aos serviços de saúde, importa ainda entendermos como “dispositivos estratégicos, como lugares de acolhimento, de cuidado e de trocas sociais” (AMARANTE,

2007, p. 69), ocupados com um modo de tratar que prioriza as questões da existência-sofrimento para melhor dar uma resposta ao apelo desse sujeito, pois

Não podemos responder à doença se não respondemos às necessidades da pessoa que está diante de nós. [...] Não posso responder às necessidades de uma pessoa encerrando-a num hospital, numa casa ou em um lugar para crônicos. Não posso responder às necessidades de uma pessoa se não conheço estas necessidades. (ROTELLI, 2001, p. 40/1, grifo nosso)

Serviços reconhecidos antes como meros depósitos, que não conseguiam responder às

necessidades das pessoas, precisam agora configurar-se como espaços de circula ção ou lugares de vida (BASAGLIA, 2008).

É árdua a tarefa de desmontar o aparato manicomial, que envolve não meramente

a substituição das instituições psiquiátricas, mas também a desmontagem dos dispositivos

práticos e discursivos que se revelam como nova s clausuras invisíveis, destaca Dimenstein

(2007). A verdadeira desinstitucionalização implica reorientação das “instituições e serviços,

energias e saberes, estratégias e intervenções em direção a este tão diferente objeto [...] [qual

seja] a existência-sofrimento do paciente em sua relação com o corpo social.” (ROTELLI,

2001, p. 91, grifo no original). Não se trata apenas de fechar os manicômios, mas, sobretudo,

de interrogar a vida usurpada na e pela lógica asilar (OLIVEIRA; PASSOS, 2009).

Neste estudo, desinstitucionalização terá o sentido de desconstrução, com ênfase

em ações territoriais ou comunitárias ocupadas em cuidar de uma reconstrução da pessoa em

sofrimento como sujeito – privilegiaremos aqui o termo existência-sofrimento ao invés do usual loucura ou adoecimento mental.

A questão da comunidade torna-se central para as práticas de

(29)

o problema [como as questões da existência-sofrimento], mais locais e mais multiplamente

locais devem ser as soluções.” (SANTOS, 2010, p. 111). Sobre essa questão, Tenório (2002) explicita a necessidade de construção de rede social como um instrumento de aceitação da

alteridade: “Ao se propor, hoje, um tratamento que mantenha o pa ciente na comunidade e faça disso um recurso terapêutico, ao contrário de normalizar o social, propõe-se que é possível ao louco, tal como ele é, habitar o social (e não o asilo de reclusão).” (TENÓRIO, 2002, p. 31, grifo nosso).

Formada por um conjunto de famílias que circunscreve um lugar de moradia no

território (FERNANDES, 1994), comunidade tem caráter cultural e histórico e é marcada por

um destino comum memorizado e transmitido de geração a geração por esse conjunto de

famílias, pelas músicas, as danças e os cânticos (MORIN, 2002), o que parece tornar esse

espaço relevante para a saúde mental. Rodrigues, Carvalho e Ximenes (2011) consideram ser

na comunidade onde se possibilita uma abertura a novas expressões da diferença e formas

novas de experienciar a realidade. É nesse espaço, definido a partir das relações ali

construídas, onde se mantém a singularidade e se necessita do outro, ou dizendo melhor: é

onde um ser humano se torna um ser para (GUARESCHI, 1996).

Compartilhamos dessa compreensão de comunidade como uma construção social

constituída por relações sociais diretas e íntimas de “dimensão sócio-psicológica que implica a existência, nesse espaço físico, de uma rede de interação sócio-psicológica e identidade

social de lugar.” (GOIS, 2005, p. 61). Para o autor, o termo é controverso e vai além da questão geográfica, sendo antes de tudo um lugar de pertença e reconhecimento social, haja

vista não ser somente porque vivemos em um mesmo meio físico que faremos parte do

mesmo espaço físico-social – caso não interagirmos ou nos identificarmos com as demais pessoas do lugar.

Retomar nesta pesquisa a questão comunitária ou social vai ao encontro de

estudos que consideram a Reforma um movimento social vivo que se atualiza em contextos

locais (LIBERATO, 2011), cujo objetivo maior de seu projeto de desinstitucionalização é pôr

em jogo o lugar social da loucura ou do adoecimento mental. Seguimos desse modo no

escopo de trabalhos preocupados com uma saúde mental menos institucionalizada e mais

comunitária (VASCONCELOS, 1992) e interessados na pessoa em seu adoecimento e na

criação de estratégias e intervenções que possam “transformar a concepção de loucura no

(30)

Ao longo da década de 80, emergem mais discussões relativas à cidadania e aos

direitos civis, e à criação de legislações próprias ao campo como tentativas de revisão da

loucura como periculosidade, irracionalidade, incapacidade e irresponsabilidade

(AMARANTE, 2003). Em 1987, o Movimento da Luta Antimanicomial veio impulsionar a

reforma ao convocar a sociedade para discutir e reconstruir sua relação com o dito louco e a

loucura, tendo na participação dos trabalhadores, usuários e familiares a estratégia

fundamental (VASCONCELOS, 2008). A Luta tem buscado mudar o modelo

hospitalocêntrico para resgatar a comunidade e a família no processo de acolhimento e

cuidado à pessoa em sofrimento.

A partir da virada do século, mais do que propor uma mudança do modelo

assistencial manicomial, conforme Bezerra Jr (2007), a reforma deixa de ser meramente uma

proposta alternativa para se consolidar definitivamente como marco fundamental da política

de assistência à saúde mental oficial do país. Porém, são muitos os desafios desse processo

social complexo e em curso (ALVES, 2006; ALVERGA; DIMENSTEIN, 2006;

AMARANTE, 2009, 2010; BEZERRA JR, 2007; BOSI et al., 2011; GODOY; BOSI, 2007; NUNES et al., 2008; TENÓRIO, 2002; VASCONCELOS, 2008).

Nas últimas décadas, esse campo tem sido palco para experiências inovadoras

que têm valorizado atividades que tecem a vida cotidiana e a atuação no território,

fomentando o fortalecimento de redes de apoio (GODOY; BOSI, 2007). Tais novidades têm

ainda como base as necessidades das pessoas em adoecimento e seus contextos

socioculturais, privilegiando a articulação de todos os atores envolvidos e potencializando a

possibilidade de superação da lógica internalizada de exclusão e internamento.

Os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) são os exemplos emblemáticos das

tentativas concretas dessa proposta de revisão no campo favorecendo a consolidação do

processo da reforma no Brasil (BEZERRA JR, 2007). Contudo, há evidências de

demonstração de um enfraquecimento do caráter instituinte que o caracterizava no início

(OLIVEIRA; PASSOS, 2009; YASUI; COSTA-ROSA, 2008), o que nos leva a perceber o

risco de restringir a reforma à mera implantação de CAPS, gerando uma certa saturação do

modelo substitutivo oficial.

Como possibilidade de evitar essa fragilização, tais dispositivos precisariam se

constituir como lugares de passagem, pois caso contrário “sem esta revisão crítica, a tendência

(31)

para a institucionalização” (HIRDES, 2009, p. 304) – risco não apenas restrito aos serviços oficiais, diríamos, mas a quaisquer outros alinhados ao ideário reformista.

Tal ideia é corroborada por Oliveira e Passos (2009) que alertam sobre a criação

de muros invisíveis nos serviços substitutivos abertos, caso instalem novas formas de dependência, segmentação e controle dos usuários, ao considerarem a reforma e o projeto de

desinstitucionalização não apenas como luta pela superação da série doença mental-tutela-manicômio (OLIVEIRA; PASSOS, 2009). Consoante tal aspecto, Novella (2010) aponta uma ironia de todo esses projetos das últimas décadas: o que era precisamente para ser uma

resposta, em parte, às preocupações da sociedade quanto às condições vividas pelos

moradores de longa internação nas velhas instituições hospitalares, parece evidenciar a

situação de piora desse grupo, ao invés do benefício esperado com o fechamento das

instituições.

Reconhecemos esses riscos de reprodução da prática asilar e excludente, pois não

basta “garantir apenas no plano discursivo os novos projetos de produção de cuidado; há que

inventar novos lugares sociais para a experiência de adoecimento.” (BOSI et al., 2011, p. 1248). Dizendo de outro modo: precisamos produzir outros encontros que desestabilizem o

status quo sobre o outro, e seu adoecimento, e sejam potencializadores de vida, pois

O campo da saúde demanda um modo diferenciado de estar a serviço do usuário. Não cabe negar o modelo médico vigente, tampouco os alcances técnicos proporcionados. Porém, não se justifica que os profissionais inseridos na assistência, qualquer que seja o seu locus de atuação, deixem de insistir na construção de novos espaços e novos modelos fundados no diálogo, os quais possam reverter a soberania da técnica, em detrimento da intersubjetividade. (CARVALHO; BOSI; FREIRE, 2008, p. 705)

A reforma psiquiátrica brasileira tem se configurado como uma tentativa de dar ao

problema da existência-sofrimento (ROTELLI, 2001) uma outra resposta social, distinta da asilar, excludente e invalidante, que passa pela invenção de novos modos e dispositivos de

cuidado ocupados não em aperfeiçoar as estruturas tradicionais, como ambulatórios e

hospitais, e sim com a manutenção da pessoa no tecido social como um sujeito (TENÓRIO,

2002).

Considerar a reforma com seu projeto de desinstitucionalização como um

processo social complexo ocupado com outros projetos de produção de cuidado em saúde

(32)

internamento e exclusão (AMARANTE, 2009) e, sobretudo, potencializar a pessoa para um

novo modo de andar a vida (MENDES, 1999).

Sobre a questão da inovação, recuperamos um artigo nosso em que a

compreendemos como relacionada à novidade e a processo de mudança potencializador de

outros modos de interação, de saberes e de práticas. Enquanto movimento, tem marca de

experimentação, criação e construção de passagens, no sentido de incorporar a tradição, ao

mesmo tempo em que, sem fixar-se nela, contesta-a e enfrenta-a para não perder sua potência

de contínua reinvenção. Portanto, concebemos inovação como

fluxo, tanto no seu caráter de desconstrução, quanto de produção; e também como capacidade inventiva de desalojamentos, reconfigurações, transformações, gerando necessários tensionamentos, tendo em vista as contradições e distintos interesses em jogo. (BOSI etal., 2011, p. 1238)

Voltadas principalmente para a transformação dos saberes e fazeres dos

profissionais no cotidiano do campo, as práticas inovadoras precisam ir além da condução de

novos projetos assistenciais (BARROS; OLIVEIRA; SILVA, 2007) – os quais assumem geralmente caráter mais pragmático e instrumental. Consideramos urgente a organização de

outras bases teóricas e práticas de invenção de modos de produzir saúde – os quais possam reiterar a necessidade de cuidado como uma atitude ética. É preciso reorganizar e produzir

novos modos de cuidado no cotidiano na saúde mental para além da pragmática assistência,

o que implica fazer do serviço um espaço de criação de encontros e diálogos genuínos, de

acolhimento, afetação e não anulação da diferença, cujo interesse precisa ser na

responsabilidade – no sentido de habilidade em responder ao apelo do usuário – e na potencialização de maior cidadania (BOSI et al., 2012; CARVALHO; BOSI; FREIRE, 2008).

Não intencionamos uma produção de cuidado voltada ao aperfeiçoamento de

saberes e práticas tradicionalmente invalidantes, pois o que buscamos é pôr em jogo essa

mesma tradição para interrogar as possibilidades inventivas e potencializadoras de outros

modos de andar a própria vida. E nessa exigência de produção de um outro cuidado ocupado

com pôr em questão o já dado e instituído para potencializar novos modos de estar diante do outro, entendemos não ser possível excluir a questão clínica.

Ao nos aproximarmos de algum modo, e dentro dos limites desta tese, da questão

(33)

diminuta presença desse termo na literatura aqui recortada – o que nos provoca a desenvolver estudos futuros que interroguem o próprio campo da saúde coletiva e seu desdobramento na

saúde mental a partir dessa questão. No escopo desta investigação, demarcamos a clínica

como espaço e ambiente de cura – aqui entendido, em uma influência heideggeriana, como cuidar –, como dispositivo ético e lugar de acolhimento e cuidado (AMARANTE, 2007), bem como espaço de circulação de vida (BASAGLIA, 2008). Nossa intenção em trazer esse tema para o debate é tão somente por considerarmos a clínica esse espaço de produção de novos

modos de cuidado e, por conseguinte, de encontros co-produtores de saúde e de vida – temáticas de significativo interesse neste trabalho.

Diante dessa necessidade de invenção de outras estratégias de cuidado no campo

da saúde mental, encontramos em Amarante (2007) a denominada atenção psicossocial que

tem na expressão responsabilizar-se seu objetivo central ao pretender uma rede de relações entre os sujeitos – os que escutam e cuidam e aqueles que vivenciam as problemáticas. Essa atenção considerada capaz de superar o conceito de reabilitar – mais tradicional no campo – é

definida como “um conjunto de ações teórico-práticas, político-ideológicas e éticas norteadas pela aspiração de substituírem o Modo asilar, e algumas vezes o próprio paradigma da

Psiquiatria.” (COSTA-ROSA; LUZIO; YASUI, 2003, p. 31). Tem como estratégia a desinstitucionalização e como prioridade o cuidar, negando critérios habituais de exclusão e,

por conseguinte, pondo em questão o isolamento como instrumento terapêutico (ALVES,

2006).

A proposta dessa atenção se torna um desafio às práticas dos novos dispositivos

de saúde mental, dados sua exigência de superação da lógica assistencial asilar e

medicalizante e seu interesse em demarcar o processo saúde-doença como resultante de

complexos processos sociais, estabelecendo diálogos com distintos campos de saberes. Os

dispositivos CAPS, citados anteriormente, têm se configurado como exemplos de implantação

de outras formas de convivência com a diferença, própria do modelo psicossocial. Pautar-se,

então, pelo modo de atenção psicossocial é construir uma prática cuja ética implica a ousadia

de buscar o novo (YASUI; COSTA-ROSA, 2008).

Em Fortaleza, cenário desta investigação, a reforma parece direcionada a modelos

de atenção psicossocial que contribuem para a consolidação do SUS – Sistema Único de

Saúde: “apesar de apresentar muitas das características da Psiquiatria Reformada ainda pode

(34)

Outra proposta que se revela alinhada à estratégia psicossocial é a denominada

clínica do sujeito ou clínica ampliada, articulada por Campos (2003, 2009), que busca superar

a fragmentação, a objetivação dessubjetivadora (AYRES, 2004a) – invalidante da experiência do outro em sua singularidade – e o mero tecnicismo biologicista. É marcada por uma

ampliação do objeto de saber e de intervenção: “O objeto da Clínica do Sujeito inclui a

doença, o contexto e o próprio sujeito.” (CAMPOS, 2003, p. 64). Tem como desafio ir além das certezas pretensamente exatas, regulares e seguras do modelo clínico oficial para o campo

da radical imprevisibilidade do mundo da vida, o qual, em uma compreensão fenomeno lógica,

escapa e ultrapassa sempre quaisquer totalizações e anulação da alteridade.

Nessa perspectiva de ampliação da clínica, o privilégio é o diálogo com o

paciente, a família, a comunidade e com múltiplos saberes envolvidos; bem como, a ênfase da

dimensão simbólica e relacional, não somente a biológica; e o processo saúde-doença como

resultante de complexos processos sociais (CAMPOS, 2009). Diante dessas exigências,

consideramos pertinente o alerta foucaultiano em relação aos discursos dos intelectuais:

Ora, o que os intelectuais descobriram recentemente é que as massas não necessitam deles para saber; elas sabem perfeitamente, claramente, muito melhor do que eles; e elas o dizem muito bem. Mas existe um sistema de poder que barra, proíbe, invalida esse discurso e esse saber. (FOUCAULT, 2012, p. 131).

De algum modo representantes desses intelectuais, os profissionais de saúde são parte desse

sistema de poder capaz de interditar o saber e o poder vindos do outro – seja este o usuário de um serviço substitutivo oficial, como o CAPS, ou de uma experiência não oficial como o

dispositivo enfocado nesta tese.

Entendemos que o saber não pode jamais ser considerado neutro por implicar

sempre relações de poder, significando entender que todo saber é político e envolve exercícios

de poder considerados, por sua vez, como relação, luta ou afrontamento (FOUCAULT, 2012).

No campo da saúde coletiva – em especial no que se refere à saúde mental – é tradição o profissional agir supostamente com um saber sobre o que o outro precisa e o que ele tem a

fazer, sem uma negociação: “Ou se mantém arrogantes [os profissionais ou trabalhadores], fazendo prescrições não negociadas com os usuários e comunidades, ou ficaram degradadas

em procedimentos queixa-conduta ou surto-intervenção.” (ONOCKO CAMPOS; CAMPOS, 2012, p. 730).

Inspiradas nas provocações desveladas com o modelo psicossocial

Imagem

Figura 1 - Lente compreensiva do modo  éticopolítico  do cuidado
Foto 1: Entrada e área interna do Movimento. Fonte: banco de dados da autora.
Foto 2 – Espaço da palhoça e prática de grupo da TC. Fonte: banco de dados da autora.
Foto 3 – Massoterapia. Fonte: banco de dados da autora.

Referências

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