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2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

3 ASPECTOS METODOLÓGICOS

4.1 Oásis no Deserto

TEMA I. OÁSIS NO DESERTO

Dimensões Ia SEMENTES ORIGINÁRIAS Ib O DISPOSITIVO

FIGURA 4 – Tema I da Rede Interpretativa

Este primeiro momento da rede interpretativa (Figura 4) revela algumas compreensões singulares dos informantes que nos possibilitaram entender a complexa configuração do MSMC como um dispositivo comunitário de saúde mental a partir de uma nova perspectiva; dentre as quais, uma assumiu, de tão impactante, a denominação do próprio tema: a de um genuíno Oásis no Deserto.

O dispositivo tem suas ações realizadas predominantemente no Grande Bom Jardim (GBJ), área da capital conhecida pela pobreza, desemprego, marginalização social e altos índices de violência. Costumeiramente aparece nas páginas policiais da mídia cearense, como, por exemplo, no último balanço publicado7 sobre a violência no ano de 2013 na Grande Fortaleza, em que o Bom Jardim está em primeiro lugar no índice de homicídios dolosos (aqueles com intenção deliberada de matar) da região metropolitana.

O GBJ é área de pior IDH (Índice de Desenvolvimento Humano), aliado a um menor investimento público e maior escassez de equipamentos sociais (BOSI, 2011), localizada na periferia da capital, exatamente no acesso do sertão para a capital, aglomerando pessoas oriundas do êxodo rural provocado pelas secas no interior (GODOY et al., 2012).

É nesse contexto que o MSMC atua desde 1996 e foi idealizado por um médico e padre italiano com a proposta essencial de “atuar não só para tratar as pessoas com transtornos mentais, mas, sobretudo, promover a dignidade delas e da comunidade tão marcada pela violência, desemprego e condições precárias de moradia e saneamento. A luta é para combater o preconceito e a exclusão, tão comuns quando se fala nesses transtornos.” (Registro 1 – Campo). Ao funcionar de modo independente, busca operacionalizar no seu cotidiano uma outra resposta social ao problema do adoecimento (BOSI, 2011; BOSI et al.,2012).

Parece desse modo caracterizar um dos novos sujeitos sociais (SANTOS, 2010) pautado por uma ética marcada pela ousadia de buscar o novo (YASUI; COSTA-ROSA, 2008), o que nos leva a considerá-lo um dispositivo no campo da saúde mental. Dispositivo será aqui entendido tanto a partir das relações de poder que sustentam determinados saberes e são sustentadas por eles (FOUCAULT, 2012), como pela produção de inovações e alternativas transformadoras da realidade, potencialmente capazes de gerar invenções (BAREMBLITT, 1992).

Entender o Movimento como um dispositivo é interrogar ainda sua capacidade de propiciar uma reconstrução do corpo social ao considerar o corpo doente como parte viva da comunidade (ROTELLI, 2001). É responsabilidade de um dispositivo de saúde interrogar-se sempre para saber se “procura transformar o meu corpo em um corpo inerte ou tenta recolocar o meu corpo dentro do corpo social” (ROTELLI, 2008, p. 42).

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Matéria veiculada no jornal Diário do Nordeste, de grande circulação na capital: RIBEIRO, F. “Grande Fortaleza terminou 2013 com 2.754 homicídios” – Polícia – p. 13. Diário do Nordeste. Fortaleza, 05 jan. 2014.

Nessa demarcação do Movimento como um dispositivo vamos ao encontro da primeira dimensão deste tema – Sementes Originárias – que revela muito da origem e histórico do próprio dispositivo, estreitamente relacionado a movimentos religiosos e sociais, de ocupação das ruas e de contestação ao instituído. Essa estreita ligação com a dimensão religiosa já nos chamou a atenção em nossa primeira visita ao campo, no início de 2009, quando registramos parecer “ser [a religião] uma importante base do Movimento.” (Registro 1 – Campo).

Uma semente significativa foram os Missionários Combonianos8, que surgiram no século XIX com o italiano Daniel Comboni – proclamado santo da Igreja Católica em 2003 – para levar o Evangelho aos africanos, tendo como lema “Salvar a África com a África”. Em entrevista concedida ao grupo de pesquisa, por ocasião do projeto financiado pelo CNPq, o fundador do Movimento, psiquiatra e também padre Comboniano, RB, caracterizou-os como uma congregação missionária religiosa ligada a Igreja Católica, mais especificamente à ala voltada para a luta por maiores direitos de cidadania, com uma atitude mais crítica. Em outra matéria veiculada em jornal9, RB revelou ter sido a forma como a congregação italiana atuava junto aos pequenos e aos pobres que o seduziu, então um jovem médico.

Como igreja itinerante, chegaram ao Brasil para o trabalho com os carentes na busca de uma vida digna e apresentavam, segundo RB, a mesma linguagem dos movimentos sociais. Esses missionários se envolveram nos anos 80 na área pastoral do GBJ com algumas Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) para criação do que eles denominaram Comunidades de Comunidades: espaços de escuta e acompanhamento terapêutico para famílias em situação de risco, através do trabalho voluntário (MOVIMENTO DE SAÚDE MENTAL COMUNITÁRIA DO BOM JARDIM, 2005).

Interessados em uma igreja menos voltada para os sacramentos e muito envolvida com reivindicações sociais, os Combonianos tornam-se importantes na formação da rede de comunidades nessa área tão carente da capital, tal como revela a seguinte informante, uma das pioneiras do dispositivo:

Esse pessoal tinha uma mentalidade diferente de igreja e de Deus, uma mentalidade de um Deus libertador [...] Eles queriam que o significado da igreja não fosse o prédio ali, o templo de cimento e concreto, mas de pessoas. Então começou a mobilização da s comunidades pra

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Disponível em: <http://www.combonianos.org.br> Acesso em: 25 ago. 2010. 9

Matéria veiculada no jornal local O Povo: CAFARDO, T.; CAMPOS, L. H. No limite entre a religião e a psiquiatria. O Povo online, Fortaleza, 28 set. 2009. Disponível em: <http://www.opovo.com.br> Acesso em 30 set. 2009.

que construíssem primeiro a s igreja s por comunidade e foi crescendo essa rede de comunidades. Então eles chamara m comunidade de comunidade e foi daí que nasceu o nome Grande Bom Jardim que era comunidade Santa Cecilia, Santo Amaro, Siqueira, Canidezinho... Não tinha uma estrutura hierárquica, nenhuma comunidade era maior do que a outra (Informante 2)

Foi no Ceará onde RB (BOSI, 2011) revela ter encontrado um terreno já adubado no Bom Jardim pelos “companheiros missionários combonianos que trabalhavam na periferia, alguns desde os anos oitenta, e que criaram a realidade do Bom Jardim chamada Comunidade de Comunidade profundamente sistêmica, descentralização, protagonização de leigos, união entre fé e vida, conscientização política, participação dos movimentos sociais, então o ‘background’, o terreno onde eu semeie estava muito pronto, estava aberto, estava adubado por esse trabalho de anos e anos dos meus companheiros”.

Em relação a essas perspectivas, trazemos a revelação de uma informante, de origem também missionária, profundamente encantada com o momento de celebração das missas nas mãos dos leigos, o que, inclusive, mobilizou-a a ingressar no trabalho voluntário no Movimento:

Eu cheguei aqui numa missa que tinha aqui, o padre [RB] mais muita gente daqui, os índios, muita gente... E eu me encantei com o pessoal da qui, porque eram pessoa s simples e fazendo tudo muito bonito... Gostei da dinâmica da missa e a dinâmica da missa era dos leigos e não era nenhuma religiosa que dirigia, não era nenhum padre, o padre só ajudou a missa; eles fizeram tudo tão bonito, cantaram... E que era muita gente simples, todo mundo muito simples, ‘muito’ [dá maior ênfase] simples e eu me encantei com isso. (Informante 7)

Evidenciar essa dinâmica na teia de elementos que interagiram na configuração do dispositivo investigado é trazer à tona a significativa presença das CEBs, com estilo de presença e prática também libertadoras, nas quais o padre não é a figura central, mas um facilitador junto aos leigos, moradores participantes da Igreja. Com a proposta de tornar as pessoas protagonistas no contexto em que estão inseridas, as CEBs foram, de acordo com Santos (2010), um movimento tipicamente orientado para reivindicação das necessidades básicas e da democracia:

As CEBs puseram as pessoas para falar. Sua marca distintiva não foi a missa, mas o estudo da Bíblia, feito em grupos, num círculo, com as escrituras funcionando como ponto de partida gerador de uma troca de opiniões sobre a pergunta sempre repetida: o que a Palavra de Deus nos diz, a nós que aqui estamos, neste lugar, com tais problemas e esperanças? (FERNANDES, 1994, p. 39)

O dispositivo nasce propriamente desse trabalho das CEBs junto a mulheres daquela comunidade, que vivenciavam problemas com drogadição, violência, abandono e desemprego, a partir da junção de pessoas residentes na própria comunidade do Bom Jardim. Muitos desses trabalhadores já possuíam histórico de engajamento em lutas sociais e nas pastorais e foram captados por RB ao celebrar missas no entorno, tal como expõem os seguintes depoimentos:

Quando o Movimento iniciou, eu percebo que já eram pessoas engajadas nas lutas, sabe? Já era engajado nas lutas de reivindicar... (Informante 3)

Naquela época [em 1996], o padre [RB] me convidou pra vir trabalhar aqui, só que assim, não tinha nada ainda pronto. Estava ainda no pensamento [risos], que o pensamento era trabalhar a comunidade com a saúde mental, não tinha ainda nem esse nome: Movimento de Saúde Mental Comunitária. (Informante 11)

Ele [RB] chegou em 96, ele começou a fazer contatos com a s pessoa s, ele ia celebrar a missa e ali ele... Observava o que é que as pessoa s... E ele começou a convida r e eu comecei esse contato, assim, ele me convidou... Pra fazer o curso de terapia comunitária e eu aceitei, eu achei interessante... E ele foi fazendo de uma maneira bem interessante, ele convidou um grupo bem amplo... (Informante 2)

Trabalhar com a escuta foi o nicho ocupado pelo dispositivo que contou, inicialmente, com a parceria do Centro de Defesa da Vida (CDV), rompida logo depois – até hoje a sede do CDV é localizada fisicamente vizinho ao Movimento:

Inicialmente a gente iniciou pela escuta junto com o Centro de Defesa da Vida [CDV], que tava com um projeto de renda mínima com mulheres do Pantanal. E aí, dentro disso, eles entrariam com a formação dessa s mulheres, formação de pequenos cursos como manicure, doces, salgados, essas coisas. E a gente entraria com a parte do trabalho da auto-estima dessa s pessoa s, da escuta... E aí a gente iniciou pela escuta. (Informante 11)

Inicialmente não tinha um espaço, ele [RB] começou aqui com o pessoal do Centro de Defesa da Vida, ele tinha uma sala aqui [aponta para o prédio do lado da palhoça, onde realizamos a entrevista], mas só que não deu certo porque o CDV tinha uma perspectiva de trabalho e ele tinha outra... (Informante 2)

Eu to aqui desde a inauguração do Movimento. [...] Eu vim pra cá porque antes de o padre R10. vir pra cá, eu fiz o curso de ma ssagem lá nas Quatro Va ras. [...] aí a gente trabalhava aí no CDV, que ele não tinha construído isso aqui, depois foi que ele comprou esse terreno aqui, construiu, fez a palhoça, aí eu continuei aqui, trabalhando aqui e fazendo massagem. Desde o começo, já cheguei pra trabalhar. (Informante 8)

O Movimento é compreendido por seu fundador como “um processo que tem como fio condutor a questão da pobreza, marginalização, comunidade e autonomia das

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Neste estudo, RB e R. fazem referência a mesma pessoa. Usaremos apenas a letra R quando for uma referência direta feita por um dos informantes da pesquisa.

pessoas serem co-responsáveis pela reorganização da sua saúde, da própria vida” (Registro 2 – Campo). Nasce sem um espaço físico próprio com a intenção de suprir a necessidade de trabalhar, sobretudo, a autoestima das mulheres da comunidade e a pobreza internalizada11,

paralisadora do processo de crescimento dessas pessoas. Em Barreto (2008), a internalização da pobreza é geradora de sentimentos de incapacidade, abandono e baixa autoestima, dificultando a busca de soluções de enfrentamento.

A partir do trabalho inicial de escuta com as mulheres, outras atividades foram desenvolvidas. Essa marca de construção gradativa e processual do dispositivo – exposta no próprio nome ‘movimento’ – é desveladora de uma questão comum a trabalhos surgidos na e

da prática, como este: a não fundamentação teórica. É o que afirma o próprio fundador, em Bosi (2011): “É bom frisar essa questão, porque o Movimento nasceu sem um projeto teórico definido!”. Inclusive, esta foi uma das expectativas de RB em relação à pesquisa CNPq ao reconhecê-la como “uma oportunidade de fortalecimento teórico do que se dá na prática do Movimento, podendo produzir ou multiplicar para outros campos.” (Registro 2 – Campo).

Em outro momento da entrevista de RB para o grupo de pesquisa (BOSI, 2011), ao referir o surgimento do Movimento, expôs compreender a escuta, o acolhimento e a experiência das CEBs, aliados ao resgate das raízes culturais, como elementos que se somaram e confluíram para formação do que denominou de ‘útero social’: “Então tudo nasceu no contexto do útero social criado a partir da experiência das CEBs e da Terapia Comunitária, aonde a pessoa chegava e tinha a possibilidade de ser escutada, ser de alguma forma acolhida e a pessoa tinha a possibilidade de desabafar e se encontrar em um contexto de acolhida e de aceitação, resgatar as raízes culturais e transformando a dor num processo de sabedoria. A partir da escuta que surgiu o Movimento, porque todas as iniciativas, todas as experiências que nós construímos era uma resposta da necessidade que as pessoas estavam trazendo.”.

Outras sementes importantes na constituição do Movimento foram a Terapia Comunitária (TC) e a formação com o professor Adalberto Barreto, do projeto Quatro Varas no Pirambu – outro bairro da periferia da capital cearense considerado por Giffoni (2008) como o berço da TC. Esse processo de formação teve vinculação estreita também com as CEBs e o movimento pastoral entre os anos de 96 e 97 (BOSI, 2011; GODOY et al., 2012) e

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Expressão recorrente no discurso do fundador do Movimento, o médico psiquiatra e padre RB, seja de modo informal ou em palestras, como a assistida por mim no Evento Mundo Unifor/CE, em 2009, ou na entrevista concedida ao grupo de pesquisa em 2010.

apresentou como primeiro passo a preparação de profissionais para o atendimento às questões de saúde mental:

Articulando sempre a antropologia, a teologia e a psiquiatria, o Movimento surge como um espaço diferenciado de cuidado em saúde mental e como espaço de formação de terapeutas comunitários em parceria com a Universidade Federal do Ceará, sob a supervisão do professor [psiquiatra e antropólogo] Adalberto Barreto e acompanhada pelo P.R. [aqui utilizamos a identificação RB]. (BOSI, 2011, p. 32)

Coube a esse professor a formação dos primeiros terapeutas comunitários do dispositivo investigado – alguns deles ainda presentes no MSMC e participantes desta pesquisa, que puderam perceber a diferença da necessidade de cuidar de si para posteriormente dispor um cuidado ao outro:

Fiz formação da TC com Adalberto... Isso em 97 e 98... Ele levava a gente pro Morro Branco... A gente sempre ia assim, quinta a noite ate domingo, direto. Ele gostava que fosse direto porque ele fazia um trabalho alem da s partes do conteúdo que ele pa ssou [...] Ele também queria que a gente se trabalhasse – essa foi a parte mais difícil que selecionou muita gente... Gente que não quis se trabalhar. [...] Comecei a enxergar que na época da s CEBs a gente fazia pra comunidade, a gente não se fortalecia, a gente esquecia um pouco a gente, a gente pensava mais a ssim no coletivo, no social, não se trabalhava, não trabalhava a s nossa s questões... Não podia falar nas reuniões[da CEBs] da gente... (Informante 2)

Quando comecei o curso de TC descobri o meu medo, as minhas angústias, eu me trabalhei, descobri quem eu era... Fui entender a minha história [...] O curso foi meu primeiro espaço de terapia. (Informante 3)

Sobre a relação com o projeto Quatro Varas, RB reconhece como significativa a influência inicial, tal como constatamos no trecho a seguir (BOSI, 2011), deixando nas entrelinhas, todavia, algumas diferenças: “realmente, nós pegamos uma célula do Quatro Varas e implantamos no Bom Jardim e aí cuidamos depois do nosso jeito, aí virou uma coisa diferente, mas nós temos que reconhecer que a genética do Movimento, além da sede, tem também a experiência da Terapia Comunitária, que foi fundamental e ainda hoje é a porta de entrada do Movimento...”.

A questão diferencial com o trabalho realizado no Pirambu foi reiterada por RB no encontro ocorrido no MSMC, no ano de 2012, para a devolutiva da pesquisa CNPq e a entrega dos produtos coletivos – artigos publicados nas revistas indexadas e a exibição do vídeo financiado pela pesquisa, de aproximadamente oito minutos, sobre o dispositivo. Em seu depoimento nesse encontro, RB “expôs sobre a diferença ali produzida, das bases e dos terapeutas que ali são da própria comunidade relacionando ao trabalho do Pirambu” (Registro 10 – Campo).

A TC foi criada há mais de 20 anos por Adalberto Barreto para proporcionar uma rede social de apoio, melhorando as relações sociais do indivíduo dentro da comunidade. O campo surpreendeu-nos com a revelação, não encontrada na literatura pesquisada, sobre a real motivação para a criação da TC: uma resposta à demanda da médica sanitarista Dra Zilda Arns, que considerava infrutífero trabalhar crianças desnutridas sem cuidar também das suas mães.

A Terapia Comunitária foi criada para a Pa storal da Criança, especificamente pra Pastoral. O Dr Adalberto criou pra Dra Zilda que encomendou. Dra Zilda Arns que criou a Pa storal da Criança no Brasil. [...] Ela encomendou exatamente pra acolher a s mães sofridas. (Informante 3)

Em sua proposta de promoção da vida, a TC irá centrar atenção no sofrimento ou na dor da alma, mobilizando os recursos e competências das pessoas, das famílias e das comunidades (BARRETO, 2008). É considerada uma das mais interessantes abordagens alternativas de acolhimento das situações de sofrimento que valoriza a cultura e os recursos próprios da comunidade, com possibilidade de inserção na rede de atenção básica em saúde (FONSECA, 2008; GODOY et al., 2012).

Na perspectiva de RB, pode ainda ser concebida como um filtro e instrumento de acolhimento, sendo demarcada, conforme exposto anteriormente por ele mesmo, como a principal porta de entrada do dispositivo: “A Terapia Comunitária é um instrumento que eu considero muito válido em primeiro lugar pela capacidade de acolhida que tem todo mundo, pela capacidade de pelo menos criar um clima que a coisa pode mudar, pode melhorar e pelo fato que pode ser um filtro prazeroso.”, conforme Bosi (2011).

Ali, no Movimento, a TC tem favorecido um espaço de escuta, onde as pessoas podem encontrar ajuda, seja na solução dos problemas ou para aprender a melhor forma de conviver com os mesmos, “sem necessariamente ter que passar pelo médico (isso no caso que realmente só a escuta, a partilha, o encontro com o outro, a formação de vínculos possa ajudar)”, conforme consta no relatório institucional (MOVIMENTO DE SAÚDE MENTAL COMUNITÁRIO DO BOM JARDIM, 2011, p. 4).

Desde o ano de 2008, é uma estratégia de política pública para trabalhos com grupos e comunidades (BOSI, 2011; GIFFONI, 2008) e integrante oficial da Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares no SUS: “Nessa política, destacam-se as práticas no âmbito da Medicina Tradicional Chinesa – Acupuntura, Homeopatia, [...]; além das

práticas complementares e saúde, nas quais se enquadra a Terapia Comunitária Integrativa (TCI) [denominação da TC no SUS].” (SOUZA et al., 2011, p. 683).

O Movimento é reconhecido como Pólo Formador, integra a Associação Brasileira de Terapia Comunitária e participa da implementação da TC como política pública do Ministério da Saúde12. Voltaremos a abordar a TC no próximo tema da nossa rede interpretativa ao discutirmos a dimensão Os Cuidado Atuais.

Outra semente originária do dispositivo, significativa mais na formação de RB, são os Lakota Sioux13, tribo de índios nativos americanos de tradição mais oral do que escrita, com quem RB viveu e trabalhou. Ao se identificar como irmão dos índios, manifesta comumente, seja em conversas informais ou vestimentas14, a expressão de saudação Mitakuye Oyasin usada em vários rituais da tribo como forma de honrar as relações e tudo o que existe.

No relatório institucional de 2011, sobre a saudação, consta o seguinte: “significa ‘somos todos parentes’, falada pelos índios Lakota Sioux. A mesma expressão em Tupi significa ‘Îandé memé maranongara’” (MOVIMENTO DE SAÚDE MENTAL COMUNITÁRIO DO BOM JARDIM, 2011, p. 16). Em sua entrevista (BOSI, 2011), reconhece estar tudo interligado e complementa: “Porque realmente a cultura indígena se liga com a minha cultura do campo [...] e depois, eu descobri que a cultura lakota tem uma cosmologia que é sistêmica.”.

A partir dessa compreensão da interligação das coisas, na qual se considera sermos todos irmãos e parentes, e da própria TC desenvolvida ao longo dos anos, o Movimento elaborou a denominada Abordagem Sistêmica Comunitária (ASC) que busca evidenciar o cuidado à pessoa em sua multiplicidade bio-psico-sócio-espiritual ao trabalhar não apenas o indivíduo isoladamente, mas a família e a comunidade às quais pertence.

São significativas as repercussões no próprio trabalhador do dispositivo, como desvelamos no relato a seguir, em que a informante, ao expor sobre a ASC, acaba por ressaltar os desdobramentos na sua própria experiência nesse caminho, indo ao encontro da base sistêmica com suas contínuas interdependências:

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Conforme material de divulgação do MSMC em formato de livreto, que compõe o banco de dados da autora.

13

Os lakotas são índios da tribo Sioux que ocuparam as terras do centro e do nordeste da América do Norte.