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ATUAIS FIGURA 5 – Tema II da Rede Interpretativa

4.3 Tramas da Autonomia

TEMA III. TRAMAS DA AUTONOMIA

Dimensões IIIa AS LUTAS NA REDE IIIb COMUNIDADE, PERTENÇA E PARTICIPAÇÃO

FIGURA 6 – Tema III da Rede Interpretativa

Sabendo que o cuidar é da ordem da relação intersubjetiva e se ocupa, no aqui e agora, com a transformação dos modos de experienciar a existência-sofrimento, bem como, e ao mesmo tempo, com a vida concreta que a alimenta (ROTELLI; LEONARDIS; MAURI, 2001), compreendemos que o acolhimento, em um modo éticopolítico, é instituinte de novos modos deste estar no mundo com o outro que sejam ratificadores de vida. Na realidade, intencionamos deixar claro que, neste estudo, acolhimento não se dissocia do termo autonomia, pois o modo de acolher no cotidiano da saúde mental precisa, quase como uma exigência ética, possibilitar ao outro – trabalhadores e usuários, por estarmos assentados na esfera da relação intersubjetiva – a retomada da própria autonomia na vida, que insiste sempre em seguir em frente.

Nesta etapa da rede interpretativa, comporemos a primeira dimensão As Lutas na Rede, a partir das variadas cores e múltiplos pontos desvelados tanto no campo de

investigação, quanto em nosso entendimento da autonomia éticopolítica. Constitutiva do nosso modo de estar no mundo, autonomia implica possibilidade de nos responsabilizarmos pela própria vida que se manifesta na rede de relações de dependência – no sentido de interdependência – constituídas por poderes e saberes. Pretendemos, agora, melhor compreender como o modo de acolher no cotidiano dos trabalhadores investigados no Movimento tem possibilitado a posição e criação de sujeitos capazes de, ao agir sobre seu mundo, interferir na teia de relações que o constitui e é por ele constituída.

Nesta dimensão inicial do terceiro tema, foram vários os sentidos de autonomia que se manifestaram nos depoimentos dos nossos informantes, tais como autossustentação; renascimento; luta com a rede de relações; ter autoestima; e ter o próprio dinheiro e a própria voz. Alguns trabalhadores, inclusive, citaram espontaneamente o termo autonomia, tal como exposto nos seguintes trechos:

Autonomia pra mim é porque assim eu era dependente do meu marido, eu não trabalhava fora [...] Ai o Movimento me deu autonomia porque ele me deu o curso e me acolheu aqui, eu fiquei trabalhando voluntário e quando apareceu o projeto eu já estava aqui. Aí aqui eu trabalho [...] de carteira assinada, é minha autonomia, não preciso mais pedir ao meu marido dinheiro pra eu compra r o que eu preciso [...] E é por isso que eu digo assim: hoje eu tenho ‘minha autonomia’ [maior ênfase], hoje eu sei falar, que eu não sabia, entendeu? Hoje eu escrevo meu nome, hoje eu ou falar no médico, hoje eu dou entrevista pra repórter. É, pra você também. Assim [pausa] e cada vez eu vejo assim que eu tenho uma estrutura, que eu não tinha, e isso pra mim foi a minha autonomia. Hoje eu posso dizer assim ‘Ah, meu marido saiu de casa e o que eu vou fazer da vida, que eu não sei?’, mas hoje eu já sei dizer assim: ‘eu tenho meu trabalho e já dá pra eu sobreviver sem ele’. E na época eu não podia dizer isso. É isso a minha autonomia. (Informante 10)

Essa autonomia, assim, da s pessoa s não ter essa autonomia de decidir, de não ficar tanto... Assim, porque eu acho... Por exemplo, eu sou uma pessoa que eu não... Apesar de ter meus problemas, eu tive poliomielite, fiquei muito dependente, eu lutei pra não ficar tão dependente e principalmente afetivamente, sabe? (Informante 2)

Por mais que a intenção seja não ficar dependente, quase como se estivesse a lutar contra a rede de dependência, entendemos ser necessária, sim, uma luta, no sentido de uma busca por novos modos de se posicionar e criar possibilidades, mas jamais fora ou contra a rede de relações constitutivas dessas mulheres no mundo – as lutas ocorrem sempre entrelaçadas na rede, mesmo que escapem de suas percepções.

Não é tão somente através da separação do outro ou da ruptura de um casamento que se alcançará autonomia, pois o desafio é exatamente conseguir lidar – sempre em relação – e auto-organizar-se consciente e criativamente para produzir uma nova tomada de posição

no mundo. Neste estudo, conforme aludido, autonomia não implica independência, autodeterminação ou liberdade absoluta, embora a origem do conceito remonte aos termos gregos autos e nomós (CHAUÍ, 1989); na realidade, para sermos autônomos necessitamos depender do nosso meio (MORIN, 1996, 2002).

Também não a compreendemos como uma doação, um favor ou um dom, pois ninguém pode ser sujeito da autonomia do outro (FREIRE, 2005), tal como desvelamos no primeiro depoimento em que a informante cita ter recebido de outrem sua autonomia. Essa mesma questão foi ressaltada pela mesma trabalhadora em seu depoimento no primeiro momento do campo de investigação no grupo focal, quando reconheceu não ser mais: “aquela pessoa que chegou aqui, completamente diferente, [hoje] eu vou à luta, não baixo mais a cabeça [...] e o Movimento pra mim me deu minha estrutura, me deu minha autonomia, me fez renascer de novo” (Informante 10, GF I, p. 3 – BOSI, 2011).

Quando a autonomia é concedida ou apresentada como um dom, passa a ser caracterizada como outorgada, que não é propriamente uma autonomia real e sim um instrumento de regulação entre a criação e realização de si e a normatização, na qual, segundo Rosenfield (2004), o trabalhador pode estar mais em uma situação de objeto e não de sujeito:

O indivíduo é condenado a viver a dualidade de ser ele mesmo – porque precisa ser ele mesmo – e, simultaneamente, responder às exigências sociais do trabalho que demanda uma maneira de ser ele mesmo no trabalho. Na realidade, esta dualidade termina por impedir, em parte, de ser ele mesmo. (ROSENFIELD, 2004, p. 211, grifo no original)

Entendemos autonomia como da esfera relacional, da co-produção, implicando dizer que o próprio sujeito tem sempre parcela, com sua presença, nesse processo dinâmico ao assumir um posicionamento no mundo das suas relações. De acordo com Onocko Campos e Campos (2012), autonomia não tem caráter estático nem absoluto e pode implicar perdas ou aquisições sempre gradativas. Tomar decisões por si, erguer a cabeça, deixar de engolir sapos, dizer não, assumir a própria voz e sustentar-se dentro da rede de relações – significados desvelados nos depoimentos – fazem referência à autonomia em um modo éticopolítico, tal como conseguimos apreender dos depoimentos acima, bem como dos seguintes:

Eu era mais insegura, sabe a ssim, pra tomar uma decisão... Pra tudo, pra muita coisa [pausa] era muito tímida, não falava, não tinha coragem... Sala de aula eu não falava, agora falo em sala de aula, não falava. Tinha essa dificuldade, por exemplo, quando eu fiz a graduação, eu era caladinha, eu não apresentava meus trabalhos direito, mas se fosse hoje, eu acho que eu apresentaria melhor... (Informante 2)

Tem a questão do crescimento... Do trabalho com a timidez... Ainda tenho um pouco de timidez, mas assim, eu sempre procuro enfrentar, assim quando... Ah, tenho que fazer isso, mas aí eu faço! Porque antes eu não ia nem pro médico sozinha pra falar o que tava sentindo. (Informante 11)

antes de eu participar daqui do Movimento, eu engolia muito sapo. Eu não sabia responder, eu não sabia dizer ‘não’ [maior ênfase] pra ninguém e a gente não pode viver... Não dizer não, a gente tem que aprender [...] E eu mudei muito nessa coisa. Decidi muita coisa. (Informante 8)

Eu sempre sou a pessoa tímida. Eu não gosto assim de falar muito, eu fico mais na minha. Aí, agora, depois que eu vim pra cá, eu me soltei mais. Tô achando que eu tô mais... [...] Não conseguia falar assim muito com as pessoa s. E agora já me solto mais, eu brinco. (Informante 9)

No começo [grupo de autoestima] eu não falava, não falava... Primeiro eu tenho vergonha de falar em qualquer canto, ma s aqui eu já perdi a vergonha... [P: É, ta falando comigo agora!] É, to falando com a senhora. Já falo no grupo. Se for pra falar no grupo eu já falo. (Informante 1)

A capacidade de dar-se conta de si e dos seus limites no mundo também é significativa na história de vida desse último informante, o qual revela uma exigência de uma contínua vigilância de si no cotidiano de seu trabalho voluntário no grupo, dadas as mudanças que já consegue sustentar no seu processo de assunção ao arquitetar novas possibilidades de ser no mundo. É o que apreendemos no seguinte trecho:

Mudou porque eu [pausa] eu me sinto uma pessoa muito... Não vamos dizer revoltada... Eu me sinto muito justo. Justo assim: dá a ‘Cesar o que é de Cesar’. [...] Não sei o que é isso na minha cabeça que dá... Que às vezes dá vontade de... Tipo executar, certo? Tipo ser justiceiro com pessoa que faz mal. Aí eu venho pra cá, eu já me controlo. É tipo uma força do mal, assim, querendo me leva r pra esse lado e eu não quero ir! E eu não fui ainda. [ P: E quando tu vens pra cá o fato de trabalhar aqui te ajuda a controlar?] Ajuda. Que já dá pra eu... Dá pra refletir mais... As dificuldades dos outros. [...] Ajuda pra eu num gerar, tipo essa raiva, essa ‘violência’ [maior ênfase] dentro de mim. (Informante 1)

Recuperamos o termo assunção como o fio do modo éticopolítico ocupado com a possibilidade do homem assumir-se como artífice de si mesmo e de seu mundo, em um processo de desvelamento do seu protagonismo social, histórico, dialógico e transformador de si e de suas relações (FREIRE, 2005). Consideramos que a assunção dá-se sempre em co- produção e é facilitadora da autonomia para o sujeito tornar-se mais capaz, conforme Onocko Campos e Campos (2012), de compreender-se e agir sobre si mesmo e sobre seu contexto de vida, incluindo evidentemente o contexto profissional:

A co-produção de maiores coeficientes de autonomia depende do acesso dos sujeitos a informação, e mais do que isso depende de sua capacidade de utilizar esse

conhecimento em exercício crítico de interpretação. O sujeito autônomo é o sujeito do conhecimento e da reflexão. Reflexão sobre si mesmo e sobre o mundo. Mas a autonomia depende também da capacidade do sujeito de agir sobre o mundo, de interferir sobre sua rede de dependências. Sujeito da reflexão e da ação. (ONOCKO CAMPOS; CAMPOS, 2012, p. 721, grifo nosso)

Em suas atuações profissionais, muitos dos nossos informantes têm a possibilidade de também darem-se conta de si e de seus limites, buscando continuamente respeitar a si e ao outro, como sujeitos de reflexão e de ação, tais como revelam os excertos:

Dentro do que eu faço, eu procuro sempre tá estimulando, estimulando, agora eu não posso fazer ninguém mudar. Eu estimulo, eu faço aquilo que eu posso fazer, mas eu não posso dizer: “Olha você vai... Porque agora vai... Tu vai mudar se tu fizer isso, então tu muda, tu vai fazer isso aqui”... (Informante 11)

Mas é cla ro, tem muita s mulheres aqui que... Que tem uns homens que ela s até sustentam pra ficar com eles. Aí a gente não pode dizer isso, né? Tem que deixar que elas descubram... (Informante 2)

Aqui eu descobri que não posso mudar o outro, mas eu posso mudar. [...] Eu tinha um medo que me atrapalhava muito... E eu cresci muito quando conheci o Movimento, embora não tenha me formado, como algumas amigas minhas daqui do Movimento... Eu me acomodei um pouco. Tenho consciência disso também... (Informante 3)

Reconhecer-se como uma pessoa acomodada e tomar consciência das suas fragilidades são reveladores, no nosso entendimento, da possibilidade do próprio trabalhador (re) apropriar-se de seu poder pessoal e, por conseguinte, de sua abertura ao mundo. Como já ressaltado no segundo tema da rede interpretativa, Condições de Acolhimento, poder pessoal implica a pessoa autorizar-se à criação de seu lugar no mundo, quando se dá conta de sua capacidade de transformação do seu espaço social de crescimento (GOIS, 2012). E quanto mais conscientes desse poder, maiores as possibilidades de produção de uma outra tomada de posição, pois a pessoa é investida de poder para ser o arquiteto da própria vida, não sendo mais guiado por referenciais fora de si mesmo (ROGERS, 2007) e pode tornar-se mais comunitariamente implicada com o bem estar coletivo (O´HARA; WOOD, 2004). Desse modo, esse poder nos potencializa a novas experimentações na tentativa de sermos a melhor expressão possível de nós mesmos num determinado momento.

Entre os informantes, foi significativa a revelação dessas experimentações de tomada de posição no mundo, desde assumir o posicionamento de não ser remunerado, por sentir-se pago por outras vias, até dar continuidade ao trabalho com os grupos, em respeito aos participantes, mesmo como voluntário ou diante da crise financeira com a indefinição do convênio com a prefeitura e o risco de fechamento dos grupos.

No início, eu... [risos] Eu até tinha, assim, uma certa ideia de cobrar, assim, pelo meu trabalho – antes de seis anos. Eu não tinha o conhecimento do ser terapeuta, do ser ‘voluntário’ [maior ênfase]. E aí, eu com o passar dos anos, eu vim descobrindo algo muito especial que é me doar, assim, ser humilde... É... [pausa maior alguns segundos em silêncio] apego aquele algo que... Até porque, quando eu procurei eles, eles me receberam com o maior carinho em troca de nada e... Então eu achei por bem, depois que eu compreendi, retribuir esse, essa bondade [maior ênfase] que me fizeram. [...] Agora, nessa questão da necessidade, aqui eu isento [de ser remunerado pelo trabalho]... (Informante6)

Então se para sse esses grupos, não ia ter grupo no Movimento [com a crise financeira atual] e uma da s coisa s a ssim que ta se lutando pra... Pelo convênio ou pelo contrato, se a gente não tiver fazendo, como é que é essa coisa? Então esse ano a gente continuou fazendo, porque as pessoa s também não têm culpa, mas a ssim... E aí eu voltei, voltei pros grupos... (Informante 11)

Aí a C. na época era coordenadora [do CAPS], foi me fazer a proposta pra ficar o dia todo, eu disse “Agora que eu não fico mais de jeito nenhum” [risos]. Aí vieram conversa r comigo de ficar o dia todo [...] aí eu falei que ia voltar a ser voluntária no Movimento, mas eu nã o queria mais ficar lá [como contradada]... (Informante 3)

Ainda entrelaçado a esse processo de conscientização, outro aspecto bastante ressaltado nos depoimentos foi a necessidade de apropriação de si como alguém digno de respeito, consideração e confiança. Nessa subdimensão relacionada à apropriação de si, o processo de crescimento é reconhecido pelos informantes como: capacidade de ir resolvendo os problemas na vida; amadurecimento para ousar errar mais; e como assumir posição de desacordo com a dinâmica facilitada e trazer isso pra frente em busca de um novo modo de estar no cotidiano do próprio trabalho. Tornam-se, desse modo, maiores as possibilidades de expansão, superação e criação nesse processo de desvelamento do vir-a-ser no mundo, tal como conseguimos apreender dos trechos abaixo:

Eu sempre falo: problemas sempre vão existir, ‘problemas sempre vão existir’ [maior ênfase], mas eu preciso lidar com eles e quando resolve um, vem outro depois, então essa capacidade de ir resolvendo os problema s é que faz a gente crescer. Se não tiver problema, também como é que sai do lugar? (Informante 11)

Que lá no grupo da pastoral não se trabalhava muito internamente, eram mais essas questões do social, do coletivo. E que a partir da entrada numa terapia e do trabalho aqui que comecei ter esse desenvolvimento, digamos, mais interno. Que aí comecei a me conhecer, a me entender mais. (Informante 2)

a gente vai amadurecendo e vai vendo que algumas coisas que... [risos] Que eu fazia ‘pô, eu tava mais jovem’ Tinha aquele pensamento, agora já... Os tempos são outros. Mas eu gostaria de ousar mais, de errar mais um pouco... (Informante 4)

Então ela chega “eu tenho isso”, recuada, ela não participa, não verbaliza, não interage, não se expressa e com o desenvolvimento do processo, dos exercícios, da vivência [...] essa pessoa já está lá no centro da roda dançando; trazendo à tona quem é na sua identidade, expandindo os sentimentos na hora da intimidade verbal, não usa mais o termo “eu sou uma

pessoa que tem pânico”, interage e participa de todos os exercícios que traz à tona a sua própria expressão ‘no mundo’ [maior ênfase]. (Informante 5)

Teve uma vez que me deixou irritado, que eu tava no grupo de quarta -feira, a A [facilitadora] veio com um questionário, pra escrever, pro pessoal se expressar. Aí nesse dia, eu sou bem sincero, eu acho até que ela ficou chateada comigo porque eu disse pra ela “Eu vim pra cá, mas uma pessoa que ta chegando aqui a primeira vez, eu sei que aqui nem todo mundo sabe ler e escrever direito. E a pessoa chega r com um questionário desse daqui, a pessoa vendo um negócio desse daqui, ela não volta mais, que ela vai se sentir inferior. Ela vai se sentir inferior ao outro”. Mexeu, me irritou. Porque tinha gente que não sabia escrever, não sabia ler... Na hora que eu vi o questionário, que era um pouco difícil; eu sabia resolver, certo? [...] Na hora eu falei. ‘Falei’ [maior ênfase] na frente de todo mundo. Guardei não. (Informante 1)

Promover em um dispositivo de saúde espaços como este revelado no último depoimento implica o entendimento de um serviço de saúde como lugar de produção de vida (BASAGLIA, 2008), de circulação, de tensionamentos e de trocas contratuais (KINOSHITA, 2010). Implica ainda espaço de relações dialógicas, no qual deve caber o exercício do direito de oposição (FREIRE, 2005), como condição de possibilidade para as alteridades envolvidas – naquele caso, o próprio informante, a facilitadora e demais participantes do grupo – tornarem-se, ao mesmo tempo, sujeitos de responsabilidade pelo outro, ao assumirem postura reflexiva para melhor responder-por acolhimento e cuidado de si, do outro e do mundo.

Dar-se conta dessa afetação e dessa possibilidade de exercer o direito de discordar, de se opor e se posicionar (FREIRE, 2005) na rede de relações e poderes constitutivos daquela prática de cuidado vai de encontro à produção de um corpo dócil-e-útel, subalterno e pouco hábil à renovação das suas relações no mundo – produção essa que se distancia de nossa compreensão de autonomia em um modo éticopolítico.

Aquele último excerto manifesta ainda outro sentido presente no campo: o processo de tomada de posição no mundo para conseguir lidar com a rede de dependências, a qual, neste estudo, implica sempre interdependência e auto-organização, tal como apreendemos da preocupação constante do informante revelada a seguir:

Esse é o meu mundo [a terra], entendeu? Eu diria que esse é o meu mundo... Trabalhar com isso. Eu sempre vou ao mercado conversar com os raizeiros, com as pessoa s que têm um conhecimento disso... Sempre to buscando... Mesmo de uma forma assim meio de anônimo, assim sem nada científico, mas eu me identifico com isso, com a cultura popular... No nosso grupo de Farmácia Viva, que a gente forma, a gente traz sempre isso... De nunca deixar isso morrer. É uma cultura nossa... (Informante 4)

No lidar com a rede de relações e poderes no cotidiano de um dispositivo comunitário de saúde mental, em que o trabalhador tem a possibilidade de reinvenção de si, o informante que se irritou com o questionário e buscou promover novas experiências individuais e coletivas em um processo libertador e emancipatório – tal como compreendemos ser próprio da autonomia éticopolítica – acabou por revelar-se em outro momento de sua

entrevista de um modo bem distinto. Reconhece-se como alguém viciado e dependente, por reconhecer não conseguir viver sem o dispositivo:

Aqui parece que vicia, faz a gente voltar. Aqui a gente se sente bem, quando eu pa sso uma ou duas semana s sem vir aqui eu já sinto falta [pausa]. [...] Eu venho pra cá é porque eu gosto; acho que não consigo mais viver sem vir pra cá, não. (Informante 1)

O discurso de outro informante parece alinhado a essa perspectiva ao revelar tanto um posicionamento de afirmar um não rebaixamento, ao final da sua entrevista para esta pesquisa, como também um assentamento de sua prática em um modo mais subalterno, dócil e de diminuta criticidade, conforme os dois próximos trechos desse mesmo trabalhador:

O meu linguajar, meu português, porque eu sou uma pessoa que eu vim da roça, então meu português, minha filosofia, meu modo de ‘conversar’ [maior ênfase], de falar são esses. É claro que a s outras pessoa s, porque eu não vou me rebaixa r, ser inferior à s pessoas... Se ela s falam melhor, parabéns, mas eu... É meu jeito, é esse de saber conversar com você. Se eu não fui melhor nas minhas colocações, desculpe, mas [pausa] essa é minha ‘posição’ [maior ênfase]. (Informante 6)

Eu não levo essa questão de mudança pelo fato que nós temos o nosso, a nossa, nossos superiores aí que eles têm a... Como é que se cha ma? Eles têm o compromisso deles. O ca rgo deles que já assume essa questão. Então eu não, eu não me envolvo muito com essa questão,