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Cinema e espaço : anotações a partir da filmografia de Frederick Wiseman

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Academic year: 2021

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C

INEMA E ESPAÇO

A

NOTAÇÕES A PARTIR

DA FILMOGRAFIA DE

F

REDERICK

W

ISEMAN

P

EDRO

M

IGUEL

F

ERREIRA

F

LORÊNCIO

Orientadores: Professora Doutora Anabela Mendes, da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa

Professor Doutor João Maria Mendes, da Escola Superior de Teatro e Cinema do Instituto Politécnico de Lisboa

Tese especialmente elaborada para obtenção do grau de Doutor em Artes

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U

NIVERSIDADE DE

L

ISBOA

C

INEMA E ESPAÇO

A

NOTAÇÕES A PARTIR DA FILMOGRAFIA DE

F

REDERICK

W

ISEMAN

P

EDRO

M

IGUEL

F

ERREIRA

F

LORÊNCIO

Orientadores: Doutora Anabela Mendes, da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa

Prof. Doutor João Maria Mendes, da Escola Superior de Teatro e Cinema do Instituto Politécnico de Lisboa

Tese especialmente elaborada para obtenção do grau de Doutor em Artes

Júri:

Presidente: Doutora Maria Cristina de Castro Maia de Sousa Pimentel, Professora Catedrática e Membro do Conselho Científico da Faculdade de Letras da Univ. Lisboa

Vogais:

Doutora Clara Maria Abreu Rowland, Professora Associada, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa;

Doutora Catarina Sousa Brandão Alves Costa, Professora Auxiliar, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa;

Doutor João Maria Mendes, Professor Coordenador Departamento de Cinema da Escola Superior de Teatro e Cinema, Instituto Politécnico de Lisboa, orientador; Doutor Fernando Paulo Leitão Simões Rosa Dias, Professor Auxiliar, Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa;

Doutor José Pedro da Silva Santos Serra, Professor Catedrático, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa;

Doutora Adriana Conceição Guimarães Veríssimo Serrão, Professora Associada com Agregação, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

(3)

R

ESUMO

As presentes Anotações sobre possíveis relações entre cinema e espaço sustentam-se num enfoque essencialmente hermenêutico sobre a filmografia de Frederick Wiseman. O cinema do realizador continua a ser pioneiro ao nível de uma poética que opera em contra-corrente num mundo exponencialmente filmável. Se a sua arte documental é ainda hoje reconhecida por ter inaugurado um peculiar modo de olhar o que é visível, o que nos interessa, nesta tese, é uma outra ilação: os filmes de Wiseman inventaram e desenvolveram um modo de olhar o que permanece de invisível a ‘olho nu’.

Nesta tese, após a Introdução, partimos de uma observação sistemática e criteriosa dos filmes de Wiseman revisitados à luz de um referencial teórico, crítico e fílmico, que sistematizamos na Parte I. De seguida, debruçamo-nos sobre uma praxis singular que tem lugar nas fases de observação e rodagem em espaços institucionais. Daremos destaque, assim, a uma singular metodologia, em que a escuta e a demora são as ferramentas indissolúveis numa abordagem ética do real, onde o que está em causa é uma recuperação perceptiva e activa da nossa relação com o espaço social. O outro enfoque analítico, a abordar na Parte III, incidirá numa artesanal e serena arte da montagem, da depuração sobre o que de singular acontece em cada espaço concreto e de que o cinema de Wiseman é exemplar. Enquanto plataforma para um pensamento relacional, o cinema que aqui prezaremos aproxima-se de uma concepção medial e intermediadora. Dessa concepção irrompe a possibilidade de um pensar comum, que merecerá por fim, na Parte IV, o foco da nossa atenção, e com o qual esperamos recuperar uma ponte, progressivamente danificada, entre o humano e o mundo.

Em jeito de epílogo e sob a forma de epístola, salientamos, de modo sequenciado e reflexivo, alguns tópicos teóricos fundamentais da tese, em diálogo (conflito-tensão) com uma possível essência da prática artística, naquilo que pode ser tomado como prolongamento deste estudo e matéria para novas abordagens.

(4)

A

BSTRACT

The present Notes on possible relations between cinema and space are essentially based on an hermeneutic approach to Frederick Wiseman’s filmography. This director’s cinema continues to be groundbreaking in terms of a poetics that operates in counter-current in an exponentially filmable world. If his documentary art is still recognized today as having inaugurated a peculiar way of looking at what is visible, what interests us in this thesis is a different inference: Wiseman’s films invented and developed a way of looking at what remains invisible to the naked eye.

In this thesis, following the Introduction, we start with a systematic and careful observation of Wiseman’s films, revisited in light of a theoretical, critical and filmic referential, which we systematize in Part I. We then shift our focus to a singular praxis that takes place in the phases of observation and shooting in institutional spaces. Therefore, we will highlight a singular methodology, in which listening and wait are the indissoluble tools for an ethical approach to the real, where what is at stake is a perceptive and active recovery of our relationship with the social space. The other analytical approach, to be addressed in Part III, will focus on a handmade and serene art of montage, a depuration of what is unique in each particular space, and of which Wiseman’s cinema is exemplar. As a platform for relational thinking, the kind of cinema to be valued here comes closer to a medial and intermediary conception. From such conception emerges the possibility of common thinking, which finally merits, in Part IV, the center of our attention, and through which we hope to recover a progressively damaged bridge between the human and the world.

In an epilogue of sorts, shaped as a letter, we emphasize, in a sequential and reflective manner, some fundamental theoretical topics of the thesis, in dialogue (conflict-tension) with a possible essence of the artistic practice, in what can be taken as an extension of this study and as a subject matter for new approaches.

(5)

Í

NDICE

pág.

INTRODUÇÃO

10

PARTE

I

DO

MUNDO

FILMÁVEL

18

1. RELAÇÕES DE VISIBILIDADE ENTRE ARTE E MUNDO 19

1.1 Espelhar o mundo e sublimidade imagética 19

1.2 Do potencial aurático da imagem técnica 22

1.3 Sobre a imagem cinematográfica 26

2. RELAÇÕES ENTRE MUNDO E TÉCNICAS DE ISOLAMENTO NO SÉCULO XX 28

2.1 Fabricar imagens – novos media e diluição da realidade física 28

2.2 Omnisciência da imagem cinemática 35

2.3 Ubiquidade televisiva e cinematização do mundo 41

3.

D

ISPOSITIVOS E FENÓMENOS QUE PRECEDERAM A UTILIDADE DA CÂMARA

-

MÃO 50

3.1 Observação e registo do real 50

3.2 Da virada fílmica – câmara-mão e a artialização do olhar 53

3.3 Leveza móvel e leveza do olhar 55

3.4 Industrialização do visível e isolamento do Eu 59

3.5 Do relacional como modo de pensar 62

4. POTENCIALIDADES POÉTICAS DO SOM DIRECTO 64

4.1 O sonoro e a multidimensionalidade da imagem 64

4.2 Estetização sonora e ser-com o mundo 66

(6)

4.4 Dimensão sonora do cinema directo 72 4.5 De Seta e Wiseman – o carácter transgressor da poética do som 75

5. RELAÇÕES DE INVISIBILIDADE ENTRE CINEMA E MUNDO 78

5.1 Arte de mostrar o invisível 78 5.2 Realismo e ontologia da imagem cinematográfica 80

PARTE

II

UMA

ÉTICA

DA

ATENÇÃO

84

1. ESPAÇO TEMÁTICO 89

1.1 Importância do momento histórico (ambiguidade estrutural do

espaço institucional) 92 1.2 Olhando a invisibilidade do agir institucional 100

2. ESPAÇO VIVIDO 106

2.1 Subjectividade da imagem e o produtor-artesão 107 2.2 Metodologia tripartida de Wiseman 111 2.3 Espacialização e mobilidade do observador 120

3. ESPAÇO SOB ESCUTA 125

3.1 Ethos da escuta e dramaturgia dos espaços 127 3.2 O som como materialidade da acção dramática 131

4. ESPAÇO ABERTO (TEMPORALIZADO) 138

4.1 Heterotopias – o incontável 141 4.2 Ambiguidade e demora – condição de verdade 143 4.3 Temporalização e (re)significação dos espaços – poeticidade

cinematográfica 145

(7)

PARTE

III UM

PONTO

DE

VISTA

DE

NENHURES

152

1. RECONSTRUÇÃO ESPACIAL (PRINCÍPIOS DE MONTAGEM) 157

1.1 Arte da narração e percepção humana do mundo (continuidade aberta) 158 1.2 A montagem como síntese e modo de ver e ouvir humanos 161 1.3 Ambiguidade e fisicalidade – condições para um ponto de vista

de nenhures 164

2. ESTRATÉGIAS CUMULATIVAS PARA UM PONTO DE VISTA DE NENHURES 168

2.1 Som vs. imagem 169

2.2 Continuidade: rítmica ‘métrica’ vs. durações indeterminadas 171 2.3 Contiguidade: blocos de acontecimentos vs. blocos intervalares 174 2.4 Cartografia narrativa: diversidade dos conteúdos vs. serenidade formal 176 2.5 Dialéctica narrativa: contar vs. mostrar 179 2.6 Musicalidade narrativa 183 2.7 Ausência de sentido aparente (silêncio de Deus) 187 2.8 Monadologia narrativa: espaço fechado e intencionalidade 192

3. SERIALIDADE E REPETIÇÃO 200

3.1. Projecto serial e sistema dialógico 202 3.2. Repetição e totalidade rítmica 207

4. IMAGENS DA VIDA 214

4.1 Cinema e intermediação com o mundo 214 4.2 Ausência de verdade objectiva 216

(8)

PARTE

IV DO

MUNDO

PENSÁVEL

222

1. ESPAÇO DE PENSAMENTO 227

1.1 Ignorância como aproximação ao real 227 1.2 Empatia e (des)subjectivação 233

2. ESPAÇO DE ALTERIDADE 238

2.1 Experiência estética como alteridade 238

2.2 Para um sentir comum 242 2.3 Iluminação da vida como modo de pensar 245 2.4 A vida como fenómeno estético 249

3. ESPAÇO HISTÓRICO 253

3.1 O tempo histórico como espaço de relação 255 3.2 Bloqueio da relação e irrepresentabilidade 258 3.3 Dúvida e espanto num espaço histórico 264 3.4 Pensar o presente à luz da história 271

CARTA

A

UM

AMIGO

277

B

IBLIOGRAFIA 291

(9)

É preciso haver noite para eu poder desviar os olhos da terra, deste pedaço de terra onde me fundi.

Paul Cézanne

[...]

apesar de tudo

continuamos a repetir os gestos e a beber a serenidade da seiva – vamos pela febre dos cedros acima – até que tocamos o místico arbusto estelar

e

o mistério da luz fustiga-nos os olhos numa euforia torrencial

(10)
(11)

Numa investigação o mais importante é encontrar o caminho certo. Sei que fiz pouco com estas observações consideradas por si mesmas; e nunca me teria dado ao trabalho de apresentá-las […] se não estivesse persuadido de que nada tende mais para a corrupção da ciência do que permitir que ela estagne. Estas águas têm que ser agitadas para que possam exercer as suas virtudes. Quem trabalha para além da superfície das coisas, embora possa enganar-se, limpa o caminho para os outros, e pode até fazer com que os seus erros sirvam a causa da verdade.

Edmund Burke

As presentes Anotações sobre possíveis relações entre cinema e espaço sustentam-se num enfoque essencialmente hermenêutico sobre o cinema de Frederick Wiseman. Pretendemos fugir aos dois grandes campos disciplinares – o tecnológico e o histórico – em que a filmografia wisemaniana (v. infra, p. 298), enquanto objecto de análise, costuma ser considerada1. Sendo normalmente confinada num território crítico que ressalva a importância notável que acrescentou ao campo documental, e não deixando também de ser uma justa ‘jóia da coroa’ de um designado movimento de cinema directo, a obra de Wiseman será aqui entendida como um singular mosaico de

imagens vivas da vida que não é exclusivo das formas de mediação cinematográfica.

Dessa imagem irrompe a possibilidade de um pensamento relacional, com o qual esperamos recuperar uma ponte, progressivamente danificada desde há dois séculos, entre o humano e o mundo.

O cinema de Wiseman não se limita, portanto, nem à espectacularidade de uma inovação técnica do cinema directo nem a um contexto histórico em que as

1 Alguma da bibliografia que consultámos sobre a obra de Wiseman, apesar da sua qualidade crítica, não está num enquadramento directo com o tema desta tese, pelo que não entraremos em diálogo com ela. São os casos do livro de Barry Keith Grant, Voyages of Discovery, The Cinema of Frederick Wiseman (Urbana and Chicago: University of Ilionois Press, 1992) e da colectânea Frederick Wiseman (New York: The Museum of Modern Art, Éditions Gallimard, 2010), organizada por Marie-Christine de Navacelle e Joshua Siegel. Nesta colectânea, destacamos, contudo, os capítulos de Christopher Ricks (“Imagination Vivante Imaginez”), de Andrew Delbanco (“Ce que nous apprend Wiseman”) e de Pierre Legendre (“Les ficelles qui nous font tenir”). Quanto aos estudos inseridos em Frederick Wiseman – Um Olhar sobre as

Instituições Americanas, volume organizado por Costa e Fina (1994), se bem que tenhamos dialogado tão

só com os de José Manuel Costa e de Luís Miguel Oliveira, não podemos deixar de reconhecer a pertinência de outros trabalhos ali inseridos, designadamente, os de J. J Semedo Moreira e de David Wilson.

(12)

instituições tomaram conta do mundo ocidental: abre, também, possibilidades para novas formas de pensar o mundo e a nossa relação com o estético. Importa esclarecer, no entanto, que esta análise, cujo aguilhão central se situa entre o estético e o poético, não é dissociável da importância que a filmografia wisemaniana ocupa, pela sua invulgar dimensão documental, no campo possível de investigação das Ciências Sociais e Humanas. Pelo contrário, é nossa intenção enriquecer esse campo, embora posicionando-nos numa outra margem de pensamento: a que faça justiça a aspectos qualitativos que estão por desvendar na obra em causa, contribuindo para a projectar para um lugar cimeiro e merecido no campo disciplinar das Artes e das Humanidades.

Desde o seu aparecimento que o cinema de Wiseman configurou uma renovação simbólica, técnica e cultural, na maneira de entender um mundo filmável. Ele foi determinante para o percurso da história do cinema e, mais concretamente, para o desenvolvimento dos subgéneros documentais. A história do documentário, enquanto categoria mais ou menos bem definida ao longo da história do cinema, é, no entanto, demasiado estreita para as observações poéticas que pretendemos evidenciar. Queremos afastar-nos de um certo ângulo de análise sociológica que entende o género documental como uma ferramenta arqueológica, por conseguinte, tendencialmente propícia à produção de evidências.

Se nos importa considerar um certo domínio da linguagem da transparência narrativa (que historicamente define o estilo cinematográfico de Wiseman como um certo classicismo alternativo) e uma sensação de imediatidade da experiência registada (ampliada sensorialmente pelas novas técnicas cinematográficas), é porque tais características servir-nos-ão, acima de tudo, como ferramentas filosóficas para uma compreensão crítica de um mundo espectacularizado. Muito mais que inaugurar um novo tipo de naturalismo derivado do realismo representacional (que, com a sincronização entre som e imagem, em meados do século passado, passou a simular com maior eficácia uma vertigem do directo), o cinema de Wiseman é pioneiro ao nível de uma poética que opera em contra-corrente num mundo exponencialmente filmável. Se o seu cinema é ainda hoje famoso por ter inaugurado um peculiar modo de olhar o que é visível, o que nos interessa, nesta tese, é uma outra ilação: os filmes de Wiseman inventaram e desenvolveram um modo de olhar o que permanece de invisível a ‘olho nu’.

Sobre alguns lugares-comuns criados em torno projecto documental de Wiseman, importa exercer um contraditório: como é que este cinema pode ser

(13)

relegado para uma categoria observacional, se à sua audiovisualidade representacional corresponde também um sentido táctil e um método profundamente fenomenológico? Como é que a essa metodologia se atribui metaforicamente o olhar de uma ‘mosca invisível’ (‘Fly on the wall’), se as técnicas narrativas e de montagem escolhidas reproduzem deliberadamente um modo de percepção e um ponto de vista humanos? Como é que se pode reduzir tal filmografia a um empreendimento documental e denotativo, se o que a singulariza não são os objectos para análise que dá a ver, mas mais os objectos de intenção, enfim, o que dá a pensar? Estas são as perguntas essenciais que constituem o nosso olhar hermenêutico e a que tentaremos dar resposta nas três últimas partes desta tese.

Ainda antes, na Parte I, exploraremos um cruzamento entre várias disciplinas, para pensarmos uma redução drástica da função relacional da arte – e das imagens – no mundo. Veremos como a essa perda sucederam dois dispositivos tecnológicos essenciais (a televisão e as câmaras portáteis com som síncrono), que constrangem a alteridade, a intersubjectividade e os movimentos humanos no território político. A análise de fenómenos tecnológicos, antropológicos, filosóficos e perceptivos que limitaram – e continuam a limitar – a possibilidade de se ser-com o mundo é determinante para diagnosticar o desaparecimento de um efeito de suspensão, que o cinema e a arte, enquanto formas de intermediação que recuperam o elemento relacional com a vida, ainda podem salvar.

Enquanto género, o advento de um novo tipo de tecnologia associado ao cinema directo enquadra-se num conjunto de fenómenos e efeitos que um vasto processo de cinematização do mundo ‘dinamitou’ e propagou ao longo do século XX. O nosso enfoque não será propriamente histórico, mas essencialmente ontológico. Especularemos sobre como um novo mundo filmável se deixou ‘domesticar’ por um excesso de visibilidade, ou a que novos fenómenos e dispositivos tecnológicos vieram dar forma, por razões maioritariamente ideológicas ou económicas, e como é que os espaços sociais, a começar pela sala de cinema, foram perdendo uma importante função relacional.

À sociedade do espectáculo do último século sucedeu uma crescente sociedade do ruído. Se hoje em dia somos mais ‘surdos’, devêmo-lo a uma precedente des-sensabilização do olhar e dos demais sentidos humanos. Essa des-sensibilização é a consequência indirecta de uma proliferação de actividades autonomizadas que suprimem uma distância crítica entre o humano e o mundo ambiente. Neste contexto, o enfoque nas capacidades sonoras do cinema de Wiseman pretende relevar a

(14)

importância de um certo modo de apreensão poética da realidade física. Este modo representacional assenta numa forma de fazer dos ouvidos uma ponte entre o pensamento e o mundo. De uma singular estética de design sonoro e de montagem brota uma específica ética da atenção, que será o mote para a Parte II. Na relação profunda entre uma ética da atenção e os espaços filmáveis, entrevemos uma solução metodológica em que a escuta e a demora são as ferramentas indissolúveis de metodologia singular: o que está em causa é uma recuperação perceptiva e activa da nossa relação com o espaço, de que o cinema de Wiseman é exemplar.

Será preciso notar que a poética singular da filmografia em análise não é indiferente aos conteúdos temáticos que espelham um período específico de regulamentação política e social, documentado por Wiseman ao longo das últimas cinco décadas. À luz dos contextos históricos, cada filme do realizador insere-se radicalmente num território em que as dinâmicas sociais, psicológicas, económicas e políticas balançam entre os dominantes e os dominados, nos mais variados palcos institucionais. Não há dúvida de que todos os seus filmes constituem fortes documentos antropológicos sobre as mais complexas operações entre governantes e governados, poderosos e fracos, ou entre instituições e institucionalizados. Os filmes de Wiseman possibilitam, assim, um poderoso enfoque sobre alguns dos mais simbólicos palcos dramáticos da segunda metade do século XX, que dão a pensar, mais do que a ver, a condição humana na era da dominação de Ninguém. Mas não restam também dúvidas que, desde cedo, os mesmos filmes passaram a relevar uma ambiguidade de sentido intrinsecamente humana, que é constituinte e constituída pelas dinâmicas em causa. Tal ambiguidade não surge somente dos temas ou conteúdos abordados ao longo da filmografia, mas sobretudo do motivo invariável que leva Wiseman aos espaços institucionais: dar voz às pessoas que aparecem e se relacionam nos espaços sociais. As pessoas que circulam no cinema de Wiseman agem sempre de acordo com aquilo que lhes é exteriormente imposto, com maior ou menor margem de manobra, em instituições com um funcionamento e procedimentos habituais e específicos. Essa é, em boa verdade, a melhor metáfora para aquilo que define qualquer relação entre os seres humanos e a instituição total que é o mundo envolvente.

Se uma elaborada ética da atenção é essencial na constituição de uma metodologia singular que o realizador sempre concretizou nas fases de pré-produção e filmagem, é-o com o intuito de, só na fase de montagem, ser possível elaborar uma narrativa que faz mais do que simplesmente contar mostrando. À transparência narrativa do cinema sórdido de Wiseman é inerente a fluidez que reproduz um modo

(15)

humano de estar submetido aos espaços. Nas suas narrativas, o sublime está no fluxo da vida que ocorre nos espaços. O drama da vida do espaço social observado é o que funda o próprio ritmo cinematográfico de cada cena, sequência, filme.

Wiseman é um cineasta para quem a relação (vivida e representacional) com o espaço é tão estruturante que as suas obras, ainda que desenvolvendo uma auto-consciência progressiva em torno das próprias operações e estratégias, nunca cessam de recorrer a um modelo dramático fundamental: é sempre a superfície da unidade da acção dramática de cada cena que mais importa manter coesa. A arte da montagem, no cinema sereno e artesanal de Wiseman, é uma arte da depuração sobre o que de singular acontece em cada espaço concreto. Assim, a Parte III deste trabalho será dedicada à análise de uma série de operações e procedimentos que dão forma àquilo que designaremos como um ponto de vista de nenhures. Desse conceito central faz parte a acepção de que a percepção humana nunca está desvinculada de um entendimento moral do mundo, e que o cinema, na sua essência representacional, carrega a moralidade inerente a essa percepção subjectiva. Ou seja, perante um ponto de vista de nenhures, qualquer espectador é livre, consequentemente, responsável pelas suas próprias interpretações.

Aquilo a que chamamos ‘ponto de vista de nenhures’ resulta, pois, de uma série de estratégias de montagem que examinaremos em profundidade. Tais estratégias problematizam e questionam a experiência estética cinematográfica, ao fazerem coincidir uma imagem viva do vivo com o pensado. Por outras palavras, só através do exame dessas estratégias poderemos argumentar que o cinema de Wiseman existe para, mais do que ser visto, apreciado ou desconstruído, apelar de forma singular a um pensamento necessariamente relacional, i.e., que não é completo se não tiver em conta o pensamento possível do Outro que teve contacto com o mesmo objecto.

No que se refere à serialidade e repetição de procedimentos deste amplo projecto documental, o cinema de Wiseman é, também, um caso único de coerência no que respeita à insistência num modo de representação que alcança, com eficácia, um ponto de vista de nenhures. É neste ponto que uma certa maturidade se faz sentir em contínua progressão: a repetição pura e consciente de gestos iterativos consolida um estilo que se pauta por representar não ‘as coisas como elas são’, mas como nos aparecem. O que o cinema de Wiseman insiste em dar a observar não é o real, mas sim a sensação da vida em si mesma.

(16)

Nessa poética reside uma estética do respeito profundo por cada espaço e situação singulares, pelo dia-a-dia de cada espaço social. Todos os filmes de Wiseman se assemelham entre si, não porque obedeçam a uma rítmica de montagem comum, mas porque obedecem a uma rítmica/ melodia própria de cada espaço. E isso projecta a intenção meramente observacional para um outro nível da Teoria da Arte, se tivermos em conta o mundo sobrepovoado de imagens em que vivemos. É precisamente a recuperação de uma forma de ligação com o mundo, em que uma certa demora, distância e paciência são constituintes, que o seu cinema opera, através de uma singular reconstrução espacial. Do contacto intenso com qualquer filme maduro de Wiseman brota a possibilidade de um tipo de pensamento que deriva da sensação perante a experiência estética do sublime. O cinema de Wiseman clama por um regresso assombrado ao espaço e ao meio ambiente perdido para as imagens.

Na Parte IV, chegaremos ao fim de um caminho traçado, intentando aprofundar os vários níveis que constituem uma poética que dá a ver o que é ambíguo em cada espaço social. Dessa ambiguidade, despontam puros objectos de intenção que provocam o pensamento, imagens que devolvem o olhar a quem as olha. Procurar entender estes filmes (e o que eles nos fazem sentir) é olharmo-nos a nós mesmos. Assim, encontramos no cinema de Wiseman uma proposta para irmos um pouco mais longe, para um território de alteridade, em que questionamos o próprio cinema enquanto mera forma de mediação subjectiva. Espécie de plataforma para um pensamento relacional, o cinema que aqui prezaremos aproxima-se de uma concepção medial e intermediadora. No cinema, podemos ainda encontrar uma forma de abraçar as imagens para, com elas, recuperar a relação com o mundo físico. O cinema de Wiseman tem o poder fundamental de recuperar uma experiência estética de transgressão – um limiar entre um fora e um dentro – que é própria da arte.

Por fim, lembraremos que nomear a obra de Wiseman como um ‘projecto documental’ é condená-la, desde logo, à função unidimensional do arquivo. Bem mais dinâmicos, estes filmes são verdadeiros programas de trabalho para aquele que neles quiser mergulhar a fundo. Se o centro conceptual do cinema de Wiseman deriva de um ponto de vista de nenhures, é porque nessa ‘zona de ninguém’ se clama por um pensamento que lhe acrescente mais que um mero algures: clama-se, sim, por um pensamento sobre os espaços históricos, que ganham forma no presente e relacionalmente. O pensamento relacional decorre de uma confrontação dinâmica do presente dado por cada filme, e em que, na leitura de qualquer acontecimento, reside uma possibilidade histórica.

(17)

Experimentaremos entrar num território pantanoso, porque composto de diversas camadas, repletas de conteúdos por aprofundar. É por isso mesmo que o cinema de Wiseman nos interessa especialmente, pois funda um sistema que, por tomar a sensação da vida como referente directo (em múltiplas dimensões), está literalmente aberto a todos. Os filmes de Wiseman, por elaborarem um contínuo e sólido sistema de discursividade que vai além da simples função-autor, servir-nos-ão de rampa de lançamento para diversas considerações sobre a nossa forma de estar no mundo de hoje. Nesse mundo feito de espaços cada vez mais especializados, atomizados e fechados ao exterior, «o pensar tem uma qualidade e abertura que lhe é exclusiva» (Heidegger).

(18)

PARTE

I

DO

MUNDO

FILMÁVEL

(19)

1.

R

ELAÇÕES DE VISIBILIDADE ENTRE ARTE E MUNDO

Estamos cercados de objectos e tentamos perceber de que é que eles nos falam.

Eduardo Lourenço

Tais especulações, porém, são significativas na medida em que nos fazem lembrar que a história é uma série de eventos, e não de forças ou ideias de curso previsível.

Hannah Arendt

Com a investigação para esta tese, a obsessão de entender a relação do cinema com o espaço a partir da filmografia de Frederick Wiseman transformou-se numa vontade crescente de interpretar filosoficamente a posição do cinema deste realizador no domínio das artes. Wiseman coloca-nos numa posição privilegiada de pensamento sobre o nosso lugar no mundo que habitamos. Para que tal pensamento seja possível, e se o queremos praticar através dessa filmografia específica, é necessário compreender o lugar artístico, histórico e tecnológico em que se inserem esses filmes. Comecemos, então, por especular sobre o lugar do cinema enquanto fenómeno de mediação nas esferas da arte, da história e da tecnologia.

1.1 Espelhar o mundo e sublimidade imagética

Nas cavernas de Lascaux, o primeiro impulso estético da humanidade foi espelhar o mundo através das mãos, i.e., através do uso que as mãos fizeram dos utensílios sobre um determinado suporte. O «nascimento da arte», para Bataille, «deve, ele próprio, ser reportado à preliminar existência dos utensílios» (Bataille, 2015: 37) que servem para lhe dar a forma de «um protesto contra um mundo que existia, mas sem o qual o próprio protesto não teria podido ganhar forma» (id.: 48). Flusser, menos romântico que Bataille, contraporia que neste protesto não há nada de novo no que respeita à natureza da nossa presença no mundo, pois «desde que os seres humanos são seres humanos que se relacionam com o mundo-ambiente que os rodeia, modificando-o» (Flusser, 2010: 101). Para Flusser, o mundo da cultura – um mundo de coisas feitas à mão, transformadas – não é mais que a nossa pegada no trilho da natureza. Mas na leitura das pinturas de Lascaux feita por Bataille, o

(20)

nascimento da consciência humana provém da noção de que há uma distância insuperável entre nós e um espírito intocável do mundo.

Espelhar o mundo para o trazer à nossa consciência – eis a função relacional que a arte assumiu em Lascaux, entre o homem e o espírito da natureza selvagem. Ou seja, o que os artistas sempre fizeram, num duplo movimento, quer através da mão (nas actividades dominadoras) quer através do olhar sobre um reflexo (na contemplação deslumbrada), nunca foi muito diferente do que os filósofos sempre questionaram: qual o papel do homem face à compreensão e acção num mundo que está inequivocamente separado deles? Assim, podemos imaginar uma história da arte a desenvolver-se num duplo clima de auto-sedução e descentramento. Numa direcção de caminhos possíveis, à medida que as capacidades do homem se foram desenvolvendo nas múltiplas formas de espelhamento do mundo, foi-se complexificando a oposição do homem ao mundo, tornando-se este cada vez mais

visível através da imagem.

O espelho é essa ingénua técnica que nos fascina enquanto forma de ‘dar presença’ a uma imagem de nós mesmos (seja porque é fabricada, seja porque é percebida). Através dos reflexos, percebemos o mundo sem necessariamente precisarmos da consciência da distância que nos separa dele. No Renascimento, não muito longe desta ontologia de uma imagem que é sempre a de nós próprios, a pintura inventou uma ‘janela’ e uma forma de olhar o mundo através dela. Os artistas enfrentaram um paradoxo: manter a distância certa do mundo era fundamental para se poder criar ‘presenças’, através de formas e representações simbólicas. Para Hans Belting, a origem das imagens técnicas, no âmbito da cultura ocidental, não começa só com a fotografia e o cinema, mas com a pintura do Renascimento, a qual, enquanto construção de um campo visual rigorosamente calculado, se integra no prelúdio das imagens técnicas. Esta «janela virtual» (Belting, 2014: 59) reproduzia o olhar estandardizado que o corpo do espectador lançava sobre o mundo. Neste sentido e historicamente falando, talvez tenha sido a pintura ocidental a estipular amplamente uma concepção ocidental da arte em que o sujeito «se sente em oposição ao mundo» (id.: 60). No entanto, nas ‘margens’ e em contra-corrente à convenção dominante que instituiu uma regra de representação antropocêntrica, outra modalidade de pintura surgiu: a que soube apurar uma forma de expressão, na qual os artistas que continuaram a pensar livremente com a mão se empenharam, lembrando-nos da necessidade de ligar o espírito do mundo à nossa consciência, em vez de o dominar ou de, simplesmente, o pôr ao nosso dispor num ‘espelho’.

(21)

Como defende Sardo (2017: 13), nessas humildes representações do mundo,

[…] a perspectiva (definida como sistema de representação de um mundo de que emana uma ordem simbólica, assente na relação entre uma linha que define um horizonte, o espectador e o ponto de fuga) não serve já para uma instância representacional, que, na sua procura realista, abdica dessa construção simbólica a favor de uma imagem fragmentada.

Por outras palavras, a mão, quer em ambiente de trabalho quer em ambiente de ‘recreio’2, sempre teve um gosto especial por testar os limites do que se torna

convencional – do que reduz tudo a uma só forma de ver. Por isso, podemos também dizer que a arte, enquanto técnica, há muito se recusou a ser um mero espelhamento, quando, de forma auto-consciente, passou a dar o próprio mundo ora em representações ‘fidedignas’, ‘exactas’ e ‘realistas’, ora deformadas, imperfeitas e abstractas, de modo a manter lúcida a natureza da nossa condição inferior ou fragmentada – uma condição humana, demasiado humana.

A pintura madura de Cézanne3 coroou essa convocatória humilde do corpo para o acto de ver, através da enformação do espírito, numa tão singular maneira (humana) de olhar e perceber um mundo-ambiente fragmentado que nos escapa. Mais que uma mera representação simbólica na tela, a presença do que é dado a ver – a sua visibilidade – já não é a imagem no interior da tela, mas sim o momento em que a imagem se desprende da tela e se revela no acto de olharmos para ela. Na verdade, o suporte da imagem passa a ser o corpo daquele que a olha. Sem um corpo que perceba o mundo, sem um olhar, o mundo representado na imagem não se faz sentir. A pintura madura de Cézanne aproxima-se daquilo a que Theodor W. Adorno chamou de «fragmento de alteridade»4, algo que é operado por uma «síntese» entre espírito e

2

Remetemos para o conceito de recreio tecido por Georges Bataille: «O que a arte começa por ser, e continua acima de tudo a ser, é um recreio. Ao passo que os utensílios são o princípio do trabalho. Determinar o sentido de Lascaux, quero dizer da época em que Lascaux é o começo, significa apercebermo-nos da passagem do mundo do trabalho ao mundo do recreio que é, ao mesmo tempo, a passagem do homo faber ao homo sapiens, fisicamente desde o esboço ao ser consumado» (Bataille, 2015: 37-38).

3 Falamos do período ‘pós-impressionista’ de Paul Cézanne, que começou por volta de 1883. 4

Sobre esta expressão, Theodor W. Adorno escreve: «A identidade da obra de arte com a realidade existente é também a identidade da sua força de atracção, que reúne em torno de si os seus membra

disiecta, vestígios do ente; a obra aparenta-se com o mundo mediante o princípio que a ele a contrapõe e

pelo qual o espírito modelou o próprio mundo. A síntese operada pela obra de arte não é apenas imposta aos seus elementos; repete, por seu turno, onde os elementos comunicam entre si, um fragmento de alteridade. Assim, a constituição da esfera da arte autêntica corresponde à constituição de um meio interior aos homens enquanto espaço da sua representação: ela toma previamente parte na sublimação» (Adorno, 2008: 21). O pensamento de Edgar Morin e Hans Belting prolonga-se na esteira desta definição adorniana. Para estes autores, a história da imagem é indissociável da projecção contingente de cada contexto, espectador ou criador.

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mundo. Nesta forma de arte, o mundo é mais que um simples lugar que ocupamos e pervertemos: o mundo não existe sem nós, mas nós não existimos sem mundo.

A expressão ‘fragmento de alteridade’ é essencial para a nossa compreensão do cinema de Wiseman. Os criadores que melhor entendam a relação equivalentemente tripartida são os que melhores fragmentos de alteridade proporcionam. Frederick Wiseman é, sem dúvida, um dos que mais deliberadamente trabalha essa contraposição fabricada entre natureza e obra, de acordo com a concepção estética de Theodor W. Adorno: «Totalmente feita pelos homens, a obra de arte contrapõe-se pela sua aparência ao não-fabricado, à natureza» (Adorno, 2008: 100).

Prosseguindo o nosso raciocínio, lembremos que, na esteira de Cézanne, os pintores modernos aprenderam a fazer da imagem uma via de passagem do espírito para o mundo-em-si e vice-versa. Numa pintura de Braque, de Klee ou de Malevich, acedemos a um imaginário da infinitude do mundo, numa imagem composta de multiplicidades temporais simultâneas, em que aparece a necessidade de «cortar com a unidade pictórica» através do «uso da colagem» (Sardo, 2017: 13), no caso do primeiro; procurar uma harmonia entre as cores e as formas abstractas, no caso do segundo; buscar o mundo ele mesmo numa tela branca, no caso do terceiro. Este novo modo de representação, na modernidade, produziu uma enorme mudança na maneira de nos relacionarmos ontologicamente com o mundo das coisas e dos objectos. A ideia de sublime (escondida com maior subtileza nas maçãs de Cézanne do que nos Alpes de Caspar David Friedrich) não é mais que a constatação de uma pose de indiferença de um mundo que nos abriga, apesar de a nossa presença nele e o nosso pensamento serem o que lhe dá um sentido estético. As reiteradas representações, em diversas estações do ano, da montanha de Sainte Victoire, de Cézanne, não são mais que a expressão desse mundo a acontecer sem nós, ainda que essa expressão só possa ser objectivada, adquirir presença, como testemunho de qualquer acontecimento humano ou inumano. Desta forma, «o que a natureza deseja em vão, realizam-no as obras de arte: abrem os olhos» (Adorno, 2008: 106).

1.2 Do potencial aurático da imagem técnica

É curioso que a tensão crescente entre a indiferença do mundo perante o nosso olhar e o nosso desejo insaciável de compreensão do mesmo se tenha desenvolvido em simultâneo com o aparecimento vertiginoso de imagens técnicas,

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num novo clima industrializado, em que a imagem, e não mais a palavra, passou a constituir-se como evidência.

A fotografia e o cinema, enquanto aparelhos produtores de imagens técnicas, por mais que os coloquemos em relatividade com a restante história de modelos de representação, complexificaram (e complexificam ainda hoje) o jogo relacional, tão humano, entre arte, espírito e mundo. Tal como todas as formas de inteligência artificial, as imagens provenientes de aparelhos técnicos detêm a capacidade de ser indiferentes, por defeito, à humanidade das nossas mãos como extensão do nosso olhar, à nossa presença. Mais que uma perda da aura pela capacidade de reprodução técnica e automática, como propôs Walter Benjamin (2012), as imagens perdem o que de humano havia no que as rodeava desde o início. Não necessitam mais de uma mão criadora, como o necessitaram as imagens das cavernas de Lascaux, nem de um suporte específico para que o mundo representado se faça sentir. As imagens técnicas não parecem precisar de um espaço comum, mas tão só de um ecrã, para existirem perante o nosso olhar, da mesma forma que o nosso olhar não precisa mais de um espaço comum, mas tão só de um ecrã, para existir perante a imagem. Se uma pintura de Cézanne reencena uma expressão do acto de ver o mundo, uma reprodução técnica dessa mesma pintura desfaz um degrau fundamental dessa relação sagrada entre nós e as coisas: ela dá-nos o mundo ele mesmo, sem necessitar que um corpo humano a testemunhe presencialmente. Seria um equívoco considerar que o que se perdeu foi a aura da imagem. O que se perdeu foi a aura da relação tripartida entre imagem, observador e mundo. Para voltarmos aos termos de Bataille, é nessa perda que se problematiza todo um «estado de transgressão», um estado «que comanda o desejo, a exigência de um mundo mais profundo, mais rico e prodigioso, numa palavra a exigência de um mundo sagrado» (Bataille, 2015: 56). Uma vez anulada a necessidade de um espaço comum, em que o olhar e a imagem se encontram de forma sagrada, também todo o movimento de ‘transgressão’ perde a sua essência.

Problematizar essa perda, deslocando-a para a questão do espaço e fugindo ao enfoque nas formas de mediação proliferadas na ‘recente’ civilização da imagem, é o que aqui nos interessa aprofundar.

No que respeita ao género ou ao suporte das formas de expressão, é claro que os artistas que aprenderam a dominar o cinema e a fotografia, enquanto meras técnicas e utensílios que são (ou seja, enquanto extensões humanas do olhar), tentaram (e tentam) provar, com maior ou menor êxito, que as imagens técnicas, como qualquer outro tipo de imagem, continuam a oferecer meras representações do

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mundo. Os rostos do cinema de Dreyer, as mãos do cinema de Bresson, a simples imagem do copo de leite envenenado em Suspicion (1941), de Alfred Hitchcock, invocam simbolicamente a presença (e possibilidade) da transgressão, naquilo que as imagens superficiais desses rostos e mãos escondem materialmente. Nesta sequência de Hitchcock, que Godard analisou nas Histoire(s) du Cinéma (1988), vislumbra-se a proeza própria do que é sagrado na imagem. Os rostos de Dreyer, as mãos de Bresson ou o copo de leite de Hitchcock recuperam, apesar de todas as suas diferenças ontológicas, uma mesma presença que as figuras imóveis na pintura, na escultura e nas restantes formas plásticas sempre convocaram, como uma passagem secreta, uma transgressão – e, com ela, um rasto da presença do espírito humano no fluxo infinito das coisas.

Face ao potencial ‘aurático’ da imagem técnica, não é estranho que a verdadeira ‘baixa’ na interacção com o sagrado, no século XX, tivesse sido o seu espaço de exibição: a sala de cinema. O movimento de recolhimento em si, muito mais que o suporte do ecrã, o material da celulóide ou a acção do projector, continua a ser o mais sagrado gesto a recuperar, de forma estruturante, a ideia de que as imagens, ainda que separadas do mundo exterior, podem existir para nos fazer vê-lo melhor e com ‘olhos abertos’. Nesse sentido, o lugar mais sagrado na era da civilização da imagem – a sala de cinema – ainda tem o condão de se impor, talvez inocentemente, à função inumana de qualquer imagem técnica: ali, ainda se reactiva a sacralização das imagens e a possibilidade de ‘transgressão’ ou de tomada de consciência sobre um mundo que está separado de nós, tal como nas primeiras grutas em que essa tomada de consciência (a «artística», para Bataille) nasceu. Mas face à cientificidade de uma lógica óptica e fisiológica que tem vindo a desencantar o que de humano e sagrado há no olhar como forma de presença perante a imagem, o acto voluntário de recolhimento do corpo numa sala escura cedo se viu profanado pelas tecnologias do espectáculo.

Sempre houve alguma lucidez ao considerar-se que as imagens (técnicas ou não) não se deixam aprisionar num modelo, suporte ou forma de mediação específicos. As pinturas à mão de Lascaux ‘fugiram’ para o interface da Google, as montanhas de Cézanne ‘transitaram’ para postais turísticos, mas nem por isso perderam a possibilidade de transgressão que lhes é imanente. No caso do cinema (e do desaparecimento das poucas salas tratadas como lugares sagrados que tivemos a oportunidade de conhecer no século XX), parece ser diferente: as imagens técnicas aparentam viver a mais grave crise estética, pois cada vez mais deixam de precisar de um lugar comum para existirem, preferindo transitar livremente, para, nesse trânsito,

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fazerem do mundo uma visibilidade por todo o lado. Como advertiu Flusser, estas imagens estão no epicentro de uma revolução cultural (ainda hoje em curso), que «consiste no facto de termos ganhado a capacidade de conceber mundos alternativos ao lado daquele que aceitamos como adquirido» (Flusser, 2010: 66). São imagens que, quando pensadas de acordo com uma expansiva sociedade de consumo5, funcionam como signos em transição num sistema mundial de simulações, simulacros e intermediações em constante reciclagem simbólica. E é aí que, no que respeita ao(s) lugar(es) para a arte no mundo, o problema pode entender-se como recente e preocupante: se aos artistas, aos filósofos e aos poetas sempre coube a tarefa de criar sentido através da imagem, da ideia ou da palavra, às imagens técnicas parece caber a tarefa de reiterar que tudo nelas é evidência sem sentido – e que tudo nelas possui um valor de troca, próprio de mercadoria.

A obsessão com a recuperação de um sentido para cada evidência é, por isso e sem surpresa, o calcanhar de Aquiles do que nos resta de humano e no que concerne à nossa relação com as evidências multiplicáveis no século XXI. Por isso, somos ‘presas fáceis’ perante uma peça jornalística, um filme premiado no melhor festival do mês ou um anúncio publicitário em cujas imagens encontramos (e consumimos) uma possibilidade de sentido – que pode não ser mais que uma versão pobre e nostálgica da maneira sagrada como nos relacionávamos com palavras e imagens associadas a um lugar. A vertigem do directo é o parente pobre da presença face à imagem.

Tal problema de sentido não se deve à natureza interior das imagens técnicas, mas sim à sua condição transitória e visível nos canais de produção/ programação/ comunicação em que se desmultiplicam como valores líquidos. As imagens técnicas, apesar de não dependerem do fabrico artesanal, continuam, como outro signo qualquer, a depender da nossa subjectividade; elas continuam a ser objectos que dependem de um mergulho no circuito da nossa intersubjectividade para circularem com algo mais que a sua visibilidade. Para Flusser, é precisamente no seio de uma «cultura imaterial» que nos devemos repensar no que concerne à responsabilidade do acto de criação, pois, face aos objectos imateriais, deparamo-nos de forma bem mais directa com um «lado medial, intersubjetivo e dialógico» (Flusser, 2010: 60), que costumava ser exclusivo da condição humana num mundo físico. Flusser, um místico pragmático, diz ainda algo mais concreto: se, até há pouco tempo, «o mundo-ambiente era a condição da nossa existência» (id.: 96), hoje, num mundo de aparelhos e

5

Referimo-nos à expressão que dá título ao ensaio de Jean Baudrillard (A Sociedade de Consumo, 2005) e ao sentido amplo que esta expressão designa.

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imagens profusas, «tudo mudou: as não-coisas agora penetram no nosso mundo-ambiente em todas as direcções, suplantando as coisas. […] Estas não-coisas são, no verdadeiro sentido do termo, ‘inapreensíveis’» (id.: 96-97). É este o cerne da complexa relação ontológica que hoje estabelecemos com o mundo das coisas, das não-coisas6 e do Outro que connosco as conhecem.

Se aqui iremos advogar a favor da recuperação de uma ontologia relacional do

ser-com o mundo, e não de um simples ser-no mundo, é porque pretendemos seguir a

comparação que Sartre estabeleceu entre fenómenos estéticos e fenómenos morais. A fim de clarificar esta aproximação, citemos um longo mas elucidativo excerto do ensaio de Sartre (2012: 225-226):

Digamos antes que devemos comparar a escolha moral com a construção duma obra de arte. E aqui, é necessário fazer de seguida uma pausa para frisar que se não trata de uma moral estética, porque os nossos adversários são de tão má-fé que até disso nos censuram. O exemplo que escolhi é apenas uma comparação. Posto isto, acaso se censurou já um artista que faz um quadro por não se inspirar em regras estabelecidas a priori? Já se disse alguma vez qual o quadro que ele deve fazer? Sabemos bem que não há um quadro definido a fazer, que o artista se aplica à construção do seu quadro, e que o quadro a fazer é precisamente o quadro que ele tiver feito; sabemos bem que não há valores estéticos a priori, mas sim valores que se descobrem depois na coerência do quadro, nas relações que há entre a vontade de criação e o resultado. Ninguém pode dizer o que será a pintura de amanhã; só pode julgar-se a pintura depois de feita. Que relação tem isso com a moral? Estamos na mesma situação criadora. […] O que há de comum entre a arte e a moral é que, nos dois casos, temos criação e invenção.

1.3 Sobre a imagem cinematográfica

Deixemos uma última palavra sobre a especificidade da imagem cinematográfica, a qual, segundo Tomás Maia, dá «a grafia» de uma «estrutura cinematográfica da vida cuja temporalidade é inteiramente realizada pelo cinema» (Maia, 2016: 22)7. A grande diferença da imagem cinematográfica é que, «ao contrário de toda a arte que é necessariamente discreta, ela não é como uma pintura ou fotografia que delimita, em unidades distintas, o que se apresenta como um continuum à percepção imediata» (id.: 35). O célebre conceito de um ‘inconsciente óptico’ próprio

6 Para um entendimento científico da divisão entre ‘coisas’ e ‘não-coisas’, cf. Martin Kemp, Visualizations: The Nature Book of Art and Science (Cambridge and California: Oxford University Press, 2000) e Martin

Kemp, Seen/ Unseen (Oxford: Oxford University Press, 2006).

7

Estas palavras contêm um aspecto poético que não merece ser retirado de contexto: «Há uma estrutura cinematográfica da vida cuja temporalidade é inteiramente realizada pelo cinema. Se a percepção humana inscreve nos órgãos naturais o movimento da vida, a percepção que o cinema possibilita é a grafia do que desse movimento não é visível a olho nu» (Maia, 2016: 22).

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do cinema, de Walter Benjamin (2012), já antecipava esta ideia, ao pôr a nu a natureza inconsciente da imagem-movimento. Faltava-lhe porém uma poética monadológica, um elogio do sentido e da unidade, de que a imagem cinematográfica é, à semelhança da palavra, agente.

O cinema, enquanto campo disciplinar, tecnologia da atenção e agente económico, foi o primeiro grande laboratório em que uma crise relacional foi testada, experimentada e provocada de forma mais aguda ao longo da história, no que respeita à manipulação da relação de paridade entre a percepção humana e as imagens cinematográficas do mundo. Foi nesse laboratório em que se tomou de assalto o espaço sagrado das salas de cinema que germinou, de forma irrevogável e paroxística, a des-ligação física e espiritual entre nós e um mundo de coisas, e em que se levou ao limite a nossa imersão nele, pondo-o à nossa disposição. Camuflado pela eterna função mediadora da arte, o cinema foi o maior cúmplice involuntário no crime histórico, cultural e tecnológico que as imagens cometeram contra a realidade física, de forma evidente e acelerada a partir da segunda metade do século XX.

Contudo, nesta tese, o nosso esforço irá numa direcção contrária: tentaremos provar que a arte, através de um modo-de-estar humano, simplesmente humano, se pode opor à domesticação do visível. É nesse modo que os filmes de Frederick Wiseman recuperam uma suspensão que invoca a presença do humano, à semelhança das pinturas de Cézanne ou de todas as outras grandes obras que, de Lascaux a Warhol, nos levaram a questionar com assombro o nosso lugar no mundo, ao situarem-nos temporariamente fora dele. Ao desejo de pensarmos transversalmente os meios, os suportes e os campos disciplinares da arte, sobrepõe-se ainda, mais que nunca, a urgência de repensar a relação com as coisas que nos rodeiam. Mais que pela arte, é por essa relação que ainda vale a pena lutar. E, no que respeita a continuarmos voluntariamente esta luta no território cinematográfico (seja ele feito de janelas, espelhamentos ou simulacros do mundo, seja ele lugar, negócio ou mera forma de mediação, seja ele, ainda, feito de ‘grafias’, palavras ou ideias), temos de voltar a perguntar o mesmo que, há 70 anos atrás, numa data crítica na história das imagens, Bazin perguntava: o que é o cinema?

(28)

2.

R

ELAÇÕES ENTRE MUNDO E TÉCNICAS DE ISOLAMENTO NO

SÉCULO

XX

Tão fácil que era amar o mundo quando se sabia pouco dele. Tão fácil que era ser mundano numa época em que o cosmos era pouco maior que a maior cabana, quando muito, o céu estrelado sobre a cidade.

Peter Sloterdijk E eis, sem dúvida, a certeza da indústria do cinema, que poderá sempre transformar o espectador numa presa fácil.

Tomás Maia

2.1 Fabricar imagens – novos media e diluição da realidade física

A civilização da imagem é actualmente tão expansiva que o termo produção, enquanto acção do que ocorre materialmente entre o homem e a natureza, deixou de estar estritamente relacionado com as forças produtivas do trabalho que o homo faber levou a cabo. Da produção passou a fazer parte também uma capacidade técnica cada vez mais própria do homo faber: fabricar imagens. Se considerarmos o termo

produção no seu sentido actual (em que a criação, difusão e programação de

conteúdos, informações ou imagens, se equivalem a uma forma de produção), então, tal como na terminologia marxista, não deixa de ser igualmente devido às relações de produção que hoje se produz espaço, por mais que este se restrinja a espaço

imaginário8. No centro desta inédita tempestade de imagens físicas e virtuais, a «vida ganha novos matizes num mundo-ambiente cada vez menos real» em que estamos «completamente impregnados» (Flusser, 2010: 98) colectivamente. À escala mundial, o espaço real já não está somente sujeito à sua fisicalidade; ele constitui-se, hoje, de tal forma, em representações imaginais, que a sua matéria-prima, a ‘natureza’, é também constituída pelas imagens de si própria.

8

É na esteira de Henri Lefebvre que estabelecemos a analogia entre espaço natural e espaço imaginário, sobre os quais o humano se assume como produtor: «A terra é antes de tudo ‘o grande laboratório’ que fornece tanto o instrumento e a matéria de trabalho como a sua base e o seu lugar. […] Que é então a cidade? A exemplo da terra em que se apoia, é um meio ambiente, um intermediário, uma mediação, um

meio, o vasto dos meios, o mais importante. A transformação da natureza e da terra implicam outro lugar,

outro meio: a cidade. […] Na cidade e pela cidade, a natureza cede o seu lugar à natureza segunda. […] A cidade torna-se, assim, o grande laboratório das forças sociais, em vez da terra» (Lefebvre, 1972: 88-89). A cidade, que para Lefebvre é o meio da modernidade, encontra hoje, na imagem omnipresente, uma nova forma de mediação, uma terceira natureza tardomoderna.

(29)

Mais do que a predominância cultural da imagem, interessa-nos perceber de que forma uma suposta ontologia da imagem cinematográfica contribuiu para o aparecimento dessa forma de dominação virtual. Hans Belting entende que a unidade fílmica passa pelo jogo coordenado das imagens cinematográficas com as «imagens virtuais» do espectador, que provêm tanto das suas recordações e dos seus sonhos, como do seu «treino medial» no cinema (Belting, 2014: 60-61). É desse «treino medial» que brota um imaginário colectivo, dificilmente distinguível do imaginário pessoal, imerso em «material imaginal», que durante mais de um século de cultura de massas experimentámos na ficção, logo, também no cinema (id.: 106-107). Os espaços físicos do mundo natural, ou mesmo os simples objectos que compõem um mundo objectivo, estão assim sujeitos às actividades humanas que lidam com o

cinematográfico.

Enquanto veículo de imagens entre homem e mundo, o cinema foi bem mais que uma forma de documentação do real através das suas ficções: um filme, sediado no meio cultural de que provém, «constrange o receptor a avaliá-lo subjectivamente, em função dos seus conhecimentos, expectativas e emoções» (Mendes, 2009: 187)9. Neste constrangimento entre um cinema que é ainda tão necessário culturalmente (do ponto de vista multiculturalista, a transmissão de conhecimento de culturas alternativas oferece uma preciosa resistência no mercado do mundo ocidental) quanto nocivo (do ponto de vista da psique e do consumo, as técnicas imagéticas na área da economia comportamental começam só agora a dar os primeiros passos), os sujeitos que habitam um mundo de imagens apercebem-se de quão longe está o tempo em que ver um filme numa sala escura parecia ser uma inocente maneira de escapar ao mundo real.

É na tensão entre um restrito sentido sociológico e um amplo sentido cultural que as imagens do mundo do século XX (sobretudo, da segunda metade do século, após a massificação do aparelho televisivo e das técnicas de comunicação publicitária) arcaram a índole ‘laboratorial’10 que, no século XIX, sob a crítica de Marx,

9

João Maria Mendes sintetiza um ângulo do pensamento de Edgar Morin, referindo-se ao facto de uma «recepção do cinema resulta[r] da articulação entre um sistema sociocultural e o imaginário. […] Um filme exprime o meio cultural de onde provém, e constrange o receptor a avaliá-lo subjectivamente, em função dos seus conhecimentos, expectativas e emoções. A imagem vista no ecrã duplica-se numa outra criada pelo espectador, e que reflecte a primeira como um espelho» (Mendes, 2009: 187). Uma passagem do ensaio O Cinema ou o Homem Imaginário, de Morin, que poderia exemplificar esta ideia seria a seguinte: «há também que ter em conta, para aclarar o problema, as dificuldades sociológicas. Nem tudo num filme pode, bem entendido, ser universal, visto que todo o filme é um produto social determinado. Valores, costumes ou objectos, desconhecidos de um dado grupo social, é evidente que se lhe mantêm estranhos no filme. Por isso todo o filme é diversamente inteligível, incompletamente inteligível» (Morin, 1970: 230).

10 Embora o termo ‘laboratorial’ remeta para diversas fontes na teoria da cultura, usamos o consignado

(30)

caracterizava as relações espaciais concretas entre cidade e campo, nas sociedades industriais. Simulacro exponencial de um mundo totalmente aculturado, a indústria do cinema e a exploração das suas salas uterinas foram o grande «laboratório mental» (Morin, 1970: 241) que forneceu os instrumentos de percepção e a matéria de conhecimento de um novo mundo de lugares imaginais ao homo spectator do século XX. Consequentemente, os espaços do século XXI (os públicos e, sobretudo, os privados) equivalem-se cada vez mais numa dimensão virtual, em que o material e o imaterial se confundem. A matéria concreta dos lugares assemelha-se às imagens que circulam em canais de televisão, na publicidade radiofónica ou nos ecrãs da web, em que nos movimentamos antropologicamente através da atenção.

Desde o início que o cinema-espectáculo11 não foi senão um laboratório de tecnologias da atenção em experimentação. Logo na primeira projecção pública, o cinema quis ser pós-cinematográfico, expandir-se para lá da simples ‘representação’ em sala – sempre em função de uma relação de atenção estabelecida com as suas ‘presas’. Todas as evoluções técnicas que se lhe ajustaram progressivamente (o som, a cor, o formato do ecrã, a portabilidade das câmaras de filmar, etc.) expressaram, à vez, o desejo de ir correspondendo à relação mental e sensorial que as imagens pareciam estabelecer, de forma peculiar, com o espectador. É neste sentido que o ‘naturalismo’ cinematográfico, enquanto mecanismo de representação do real, não foi mais que um negócio como qualquer outro no mercado da arte: os realismos, à semelhança de qualquer ‘ismo’, foram sempre (e apenas mais uma) mercadoria fetichista na sociedade do espectáculo da imagem cinematográfica. O paradoxo do cinema reside no facto de ser uma extensão do olhar do homem sobre o que lhe é exterior e, ao mesmo tempo, uma máquina de sonhos capaz de atingir o que qualquer outra forma de mediação alguma vez havia alcançado. Enquanto «grafia de um movimento que não é visível a olho nu» (Maia, 2016: 22), o cinema espelha de forma idêntica as representações mentais que só nos são possíveis a partir de uma ‘visão mágica’. Por outras palavras, nele sempre residiu uma fonte de captação da nossa atenção, demasiado irresistível para não se aprofundar. Para Edgar Morin, «o universo do cinema deriva genética e estruturalmente da magia» (Morin, 1970: 104), aproximando-se, portanto, mais da pintura pré-histórica que da técnica representacional da imagem fotográfica:

psíquico. As suas salas são autênticos laboratórios mentais onde, a partir dum feixe luminoso, se concretiza um psiquismo colectivo» (Morin, 1970: 241).

11

Edgar Morin argumenta que o cinema enquanto forma de espectáculo deriva da invenção do cinematógrafo, cuja essência se viu interrompida em detrimento da exploração económica para que foi ‘sugado’ (cf. Morin, 1970: 61-104).

(31)

A pintura naïve é guiada por um espírito imediato que, no próprio quadro, opera uma humanização da visão. Na fotografia, pelo contrário, as coisas acham-se entregues às suas dimensões e às suas formas aparentes, perdidas no espaço e encerradas na unidade do momento. (p. 244)

Esta consideração é fundamental para a nossa tese, tendo em conta a aproximação que faremos entre cinema e pintura, enquanto formas de mediação do real.

O cinema, mais que qualquer outro médium, parece ter o condão de reproduzir, reformular e refazer a relação física que estabelecemos com os objectos que nos rodeiam. Em Espírito do Tempo, Morin descreve o modo como a cultura12 de massas encontrou na indústria cinematográfica um agente principal no estabelecimento de um novo paradigma para a «relação estética» entre os homens e o mundo. Chamou-lhe, na sequência de uma primeira grande industrialização dos corpos, uma «industrialização do espírito» (Morin, 2008: 29):

A segunda industrialização, que é doravante a industrialização do espírito, e a segunda colonização, que incide doravante sobre a alma, progridem ao longo do século XX. Através delas, opera-se o progresso contínuo da técnica, já não dedicada apenas à organização exterior, mas penetrando no domínio interior do homem e aí despejando mercadorias culturais.

Das experiências de montagem soviética à industrialização dos estúdios norte-americanos, o cinema foi sendo ‘ponta de lança’ de uma segunda industrialização, efectuada à escala global. Por via das suas diversas formas gramaticais, desenvolveu e promoveu, através dos media subsequentes, as técnicas fundamentais na modulação da vida interior e exterior do sujeito do mundializado século XX. A sua natureza técnica e laboratorial foi crucial para a introdução de uma «esteticização do vivido nos sistemas dos media, onde circulam, hora após hora, as suas produções» (Mendes, 2009: 151) imaginais. Contribuiu, sem paridade, para o fenómeno estético a que Jean Baudrillard chamou de «mundialização» e que veio estabelecer-se enquanto movimento sistémico irreversível onde a imagem vagueia selvagem, como num sistema de signos sem referente real13. Quer dizer, o cinema foi o grande palco de

12

Sobre a noção de cultura, Edgar Morin avança esta definição: «uma cultura consiste num corpo complexo de normas, símbolos, mitos e imagens que penetram o indivíduo na sua intimidade, estruturam os seus instintos, orientam as suas emoções. Essa penetração efectua-se segundo as relações mentais da projecção e da identificação, polarizados em símbolos, mitos e imagens da cultura, assim como em personalidades míticas ou reais que incarnam os seus valores (os antepassados, os heróis, os deuses). Uma cultura fornece pontos de apoio imaginários à vida prática e pontos de apoio práticos à vida imaginária; ela alimenta o ser meio real, meio imaginário, que cada um segrega para o interior de si (a sua alma), e o ser meio real, meio imaginário, que cada um segrega para o exterior de si e de que se envolve (a sua personalidade)» (Morin, 2008: 31).

13

A hipótese de uma ausência do referente real da imagem é um dos argumentos estruturantes do pensamento de Jean Baudrillard. Não podemos, pois, deixar de citar uma passagem sobre a sua inserção no âmbito de uma crítica à sociedade do consumo: «De certa maneira, o consumo generalizado de

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