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Industrialização do visível e isolamento do Eu

PARTE I DO MUNDO FILMÁVEL

3. D ISPOSITIVOS E FENÓMENOS QUE PRECEDERAM A UTILIDADE DA

3.4 Industrialização do visível e isolamento do Eu

A tecnificação impõe a disponibilidade como princípio. Theodor W. Adorno

Recear a natureza das imagens técnica ou de qualquer outra imagem é tão aceitável como recear a natureza subjectiva do olhar humano37. As imagens, como a linguagem, postas ao serviço dos programas ideológicos em que se inserem, são hoje mais perigosas pela sua abundância e omnipresença. Para Belting, a «actual sobreprodução de imagens estimula os nossos órgãos visuais na mesma medida em que, felizmente, os paralisa ou imuniza» (Belting, 2014: 46); por conseguinte, há uma diferença substancial entre as «imagens que provemos de um significado simbólico na nossa memória corpórea» e as que «consumimos e esquecemos» (ibid.) diariamente, no mundo de imagens proliferadas.

Tal acepção devia servir de caução a artistas e criadores com uma ética de trabalho que almeje ter em conta o (reiteradamente citado) «lado medial, intersubjetivo e dialógico» (Flusser, 2010: 60) das imagens que compõem as suas obras.

Da mesma forma, recear os produtos culturais, ou a natureza específica dos objectos que protagonizam uma ‘segunda industrialização’ caracterizadora da cultura de massas, é tão lógico como recear qualquer objecto que possa servir como arma de arremesso. Não nos importa especular se o smartphone é o símbolo tecnológico de uma fase final de mudança de paradigma antropológico, mas, sim, de que forma ele intensificou, acelerou, reformulou e expandiu as formas de experimentação e percepção, já semeadas no advento imaterial das imagens cinematográficas através

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De acordo com Jonathan Crary, visamos distanciar-nos da crítica a uma suposta essência de qualquer aparato, aparelho ou tipo de imagem específicos. Nesta investigação, procuramos seguir este posicionamento: «To be preoccupied with the aesthetic properties of digital imagery, as are many theorists and critics, is to evade the subordination of the image to a broad field of non-visual operations and requirements» (Crary, 2013: 47).

de técnicas mais ou menos estacionárias – desde a leveza do suporte material do cinematógrafo dos Lumière até à imersão corporal nas salas-de-estar públicas e privadas. O nosso argumento é o de que, na sequência desses fenómenos, a chegada ao mercado de câmaras com som síncrono e com a disseminação do novo paradigma perceptivo do cinema directo (resultante das técnicas de sincronia em directo ou não) pelos circuitos televisivos, os conteúdos gerados pela câmara-mão agudizaram uma industrialização do visível na história da nossa relação com os espaços naturais, heterogéneos e potencialmente sagrados do mundo. Como consequência, anulou-se substancialmente a importância de outros sentidos humanos que, como a audição ou o tacto, conferem densidade à linguagem e à imagem.

Quanto ao estado da arte sobre este complexo processo de rarefacção dos sentidos, foi Guy Debord quem denunciou a contradição fundamental da participação do sujeito alienado e acrítico na sociedade do espectáculo. Em A Sociedade do

Espectáculo, diz-nos que separação do mundo se deu por uma «imensa acumulação

de espectáculos» onde ocorre um fenómeno de «inversão concreta da vida» e em que o «movimento autónomo do não-vivo» passa a regular quotidianidade (Debord, 2012: 9). O espectáculo está por todo o lado onde o vivido é substituído por uma representação. A vivência da História na primeira pessoa vê-se negada por uma separação efectiva do mundo. De modo análogo, o sujeito vê-se obrigado a corresponder à espectacularização de tudo. Em torno do fenómeno cinematográfico, assim como das outras indústrias do entretenimento ou da economia dominante, «do automóvel à televisão, todos os bens seleccionados pelo sistema espectacular são também as suas armas para o reforço contante das condições de isolamento das ‘multidões solitárias’» (id.: 17). O espectáculo é, então, o processo pelo qual as imagens se recompõem, num conjunto dotado da coerência (pelo menos aparentemente) que a realidade em si foi perdendo progressivamente.

Esta crítica não anda longe daquilo a que chamámos de fenómeno de

cinematização da vida, embora o ponto que nos interesse no famoso ensaio de

Debord não seja a radical crítica da cultura que ironicamente o popularizou. No que respeita ao pessimismo cultural de Debord, somos menos sensíveis a um enfoque nos produtos culturais ou nos objectos estéticos que foram democratizados de forma massificada, com o objectivo de alienar as multidões solitárias. O que na sua investigação nos interessa é a ideia de que uma «sociedade que suprime a distância geográfica acolhe interiormente a distância enquanto separação espectacular» (Debord, 2012: 117) – ideia da qual releva uma degradação do espaço social. Ou seja, a separação que diferencia a entrada e saída de um local de trabalho, ou entrada e

saída de uma sala de cinema ou de qualquer espaço sagrado deixou de se fazer sentir como uma suspensão do real ou como um intervalo, e passou a ser a palavra de ordem de um estado de remissão interior, lúdico, alienado e continuado.

Não é necessariamente a relação com o Outro que define o espaço de alteridade, mas antes o poder que se estabelece através de regras e limites de que o Eu e o Outro dependem nesse espaço, para nos relacionarmos com determinados gestos de interacção. O que define um espaço social são as condições de alteridade que o singularizam e isolam em relação àquilo que escapa inevitavelmente ao sujeito que lhe é estrangeiro: a sua territorialidade, o que em si é físico, material, ou as dinâmicas do seu funcionamento dramático, uno e único. Ora, o espectáculo não é só o que nos mantém cativos da passividade ou da capacidade de agir no mundo: acima de tudo, e como a etimologia da palavra sugere, é o que faz do mundo um lugar de espectadores para quem esse mundo, tal como um ecrã, se revela intocável. Nesse mundo espectacular, os espaços sociais aparecem num novo «território ordenado» em que a apatia é consequência «das condições de aumento da burocratização estatal moderna» (Debord, 2012: 111-112). O espectáculo transforma qualquer espaço social num produto de consumo ao dispor do nosso olhar, em que a vivência histórica ou a distância entre o Eu e o Outro (ou aquilo que condiciona a nossa subjectividade nessa relação) são rasuradas. Na sociedade do espectáculo, não respondemos perante ninguém, a não ser por nós próprios. Tornamo-nos especialistas de uma vida isolada, tão apática como auto-regulada, e conhecemos espaços, cuja divisa pode ser: «Neste exacto lugar nunca acontecerá nada, e nunca nada aqui aconteceu» (id.: 112).

A crescente especialização na produção de imagens não está só dependente da técnica que as produz, mas também da ideia de que nos é possível, em primeiro lugar, dar-lhes um valor de uso absoluto e, em segundo, um valor de troca relativizado, de acordo com as nossas expectativas individuais. Este fenómeno intensifica-se com o aparecimento de aparelhos que foram desenvolvendo um estado de passivização, sob a ilusão de uma participação activa. Eis o início da era da hiperindividualização, em que a tecnologia, cada vez mais preponderante e acessível, nos seduz ao remeter-nos para um universo interior. A separação total do mundo por uma acumulação de imagens, que ora consumimos, ora pomos a circular numa rede espectacular de visibilidades, antecipou um mundo progressivamente ao nosso dispor. Os mundos da imaginação, obliterados pelo aparecimento de realidades virtuais, são materializáveis – logo, menos imaginativos. E a realidade física, ao ser substituída pelas imagens, é cada vez menos considerada em si mesma, até dispensável.