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Da virada fílmica – câmara-mão e a artialização do olhar

PARTE I DO MUNDO FILMÁVEL

3. D ISPOSITIVOS E FENÓMENOS QUE PRECEDERAM A UTILIDADE DA

3.2 Da virada fílmica – câmara-mão e a artialização do olhar

Flusser diria que a democratização das câmaras-mão, mais que concretizar o desejo de Alexandre Astruc por uma camera-stylo de cujas possibilidades pensantes o cinema-espectáculo passou ao lado30, veio repor a relação da mão com o polegar que, «em oposição aos outros dedos», é o que «caracteriza a existência humana no mundo» (Flusser, 2010: 101), pois é através das coisas que ‘agarramos’ com o intuito de as transformar, que os seres humanos, desde sempre, «se relacionam com o mundo-ambiente que os rodeia, modificando-o» (ibid.).

Voltamos a esta concepção da ‘mão’ para reforçar o nosso neologismo: a

câmara-mão. Se, para Crary, foi a televisão que introduziu um novo paradigma de

percepção acrítica e passiva, quanto a nós, foram as câmaras portáteis que adensaram esta ilusão de relacionamento com um mundo-ambiente que nos rodeia, através do seu sentido ‘táctil’, como modo de percepção hipersubjectivo. Afinal, desde Lascaux que a possibilidade de representarmos o mundo com a mão se revela a pedra de toque de um desejo demiúrgico, tão próprio do ser humano, que, no processo, se esquece que está só dentro de uma caverna a fazer/ olhar para imagens.

Foi também no seguimento da década de 80 do século XX que o interesse crescente numa ‘virada subjectiva’, no caso cinematográfico, se fez sentir nos círculos académicos e críticos. No entendimento de Iván Álvarez (2015), esta virada caracteriza com profundidade um pós-modernismo cinematográfico associado às aliciantes possibilidades técnicas das novas câmaras de filmar:

[…] the subjective turn of documentary film can be considered and adaptation of contemporary non-fiction filmmakers to the postmodern Zeitgeist. […] Hence postmodern cinematic representations of the historical world primarily focus on our perception of it, that is, on the subject and not on the object, or more exactly on the object (the historical world) through the subject (the filmmaker). (p. 25)

Não é surpreendente, portanto, que os filmes autobiográficos ou o aparecimento de novos subgéneros não-ficcionais tenham contribuído para esbater as fronteiras culturais entre a esfera privada e a pública. Ainda que num território caucionado pela arte cinematográfica, e tal como as salas de cinema o haviam feito inadvertidamente, esta nova dominação subjectiva antecipou os comportamentos correntes de uma

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Sobre o que terá sido um dos efeitos do confinamento da linguagem cinematográfica à sala de cinema, enquanto espaço apropriado pelo espectáculo, observava Alexandre Astruc, num artigo originariamente publicado em 1948: «It must be understood that up to now the cinema has been nothing more than a show. This is due to the basic fact that all films are projected in an auditorium». In “The Birth of a New Avant-Garde: La Camera Stylo”. Site: http:/www.newwavefilm.com/about/camera-stylo-astruc.shtml

amplificada «cultura do narcisismo» (Álvarez, 2015: 24), que lida com a câmara-mão como se se lidasse com um lápis numa folha de papel31.

Assim, hoje, os objectos do mundo deixam de representar apenas «mediações (media) entre mim e as outras pessoas» (Flusser, 2010: 58), para passarem a representar mediações entre o Eu e o mundo como imagem do (eu) Mesmo. A responsabilidade, que, para Flusser, «é a decisão de responder por algo perante outras pessoas» (ibid.), é reduzida à acção de respondermos por algo perante nós mesmos. O mundo reduz-se a um mosaico de hipersubjectividades ou, para usar terminologia mais política, a um totalitarismo composto de subjectividades. É por isso que, observava Flusser ainda nos idos dos anos 90, um «olhar sobre a actual situação da cultura põe em evidência o facto de esta se caracterizar por objectos de uso cujo projecto foi realizado de forma irresponsável, com a atenção voltada para o simples objecto» (id.: 59).

As imagens técnicas foram deixando de ser somente representações ou símbolos, para serem protagonistas imateriais de projectos irresponsáveis numa nova ‘cultura imaterial’. Falta-nos, por isso, mais responsabilidade no entendimento da imagem. Embora a ‘virada subjectiva’ tenha dado origem, no caso do cinema, a uma vasta gama de cineastas criativos, desagrilhoados das ‘garras’ do espectáculo industrial, a questão que colocamos é se o desejo crescente de entender o mundo a partir de um ponto de vista subjectivo, quando vinculado à artialização natural do olhar sobre o mundo, não contribuirá para uma desresponsabilização em crescendo. Com isto, não queremos desacreditar nem os artistas, nem as imagens subjectivas, nem as mediações entre ambos numa ‘cultura imaterial’, mas, tão só, advertir para a quebra dessas ligações. Como diria Flusser sobre este estado das relações, «É [ainda] possível ver o seu lado medial, intersubjetivo e dialógico» (Flusser, 2010: 60).

As gerações de artefactos tecnológicos do porvir continuarão a acentuar, inevitavelmente, uma ideia de ‘imunidade’ em relação ao olhar do Outro. No caso específico do cinema, desde os anos 50 do século XX que a humanidade começou a tomar ‘dosagens de antibióticos’ que tornariam quase imperceptível a revolução electrónica e digital que foi (e ainda vai) ganhando forma. Mais ainda do que quando Baudrillard o afirmou, impera hoje a ideia «simultaneamente ‘rousseauniana’ e naturalista» de que «há uma criatividade natural do homem e que basta ressuscitá-la»,

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Seria curioso revisitar a História da escrita, a propósito deste entendimento da câmara-mão. Nem sempre foi o lápis ‘o mau da fita’. A macieza do material (grafite, carvão) progrediu muito, desde o uso de glifos em formato de cunha. Entre os sumérios e babilónicos, à mão era pedida perícia, rigor no movimento e uma certa automatização do gesto. Como poderemos encontrar similitudes entre os instrumentos de escrita-mão e a câmara-mão?

como se habitássemos um mundo tecnológico em que «todos são capazes de criar» (Baudrillard, 2005: 129). Mas, como bem nota João Maria Mendes, «nesta matéria como em tantas outras, tem sido ilusório alimentar o ‘optimismo tecnológico’: a ‘tecnologia’ não gera ‘artistas’, mas sim mais utilizadores competentes» (Mendes, 2009: 82).

A invenção tecnológica das câmaras de pequeno porte com som síncrono, mais que produzir o que Derrida chamava de «imagens vivas do vivo» (apud Belting, 2014: 31), para além dos novos matizes que instituiu, transformou um desejo sensorial numa possibilidade óptica que se massificaria como produto na nossa era. No seguimento, somos todos operários de uma nova ‘cidade’ global, constituída de imagens vivas do mundo. Se a cidade física foi o local onde se elaboraram as relações de produção da economia política no século XIX, hoje, é numa Metrópolis virtual que «se manifestam os conflitos entre as relações de produção e as forças produtivas» (Lefebvre, 1972: 95), tal qual como na obra de Fritz Lang. E esses modos de produção, bem como a produção do espaço, como na acepção de Henri Lefebvre, só levam «em conta o tempo para o submeter às exigências e sujeições da produtividade. É um círculo estranho em que se aprisiona o tempo» (id.: 171).