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PARTE I DO MUNDO FILMÁVEL

3. D ISPOSITIVOS E FENÓMENOS QUE PRECEDERAM A UTILIDADE DA

3.1 Observação e registo do real

A sensorialidade permitida pelas novas técnicas portáteis e leves do cinema amador – de certa forma, inimigas da natureza estacionária do aparato televisivo – foram, na consequência dos grandes eventos de passivização de uma ‘segunda industrialização’, uma descoberta intensa e ‘moderna’ nos anos 60 do século passado. Como todas as grandes descobertas modernistas de pretensão artística, esta viria a integrar-se, também, nas pretensões dos sistemas económicos (que desde o século XVI tão bem se habituaram a explorar a liberdade do sujeito para melhor o poder controlar). Em pouco tempo, a câmara portátil transformar-se-ia em mais uma mercadoria fetichista. Na segunda metade do século XX, todos os aparelhos que, da câmara super 8mm ao smartphone, pareceram promover uma nova autonomia do sujeito, coincidiram também na transformação desse sujeito num operário de pequenas indústrias privadas, dentro da sofisticada sociedade do espectáculo. Ao desejo de subjectividade nunca os sistemas económicos e totalitários deixaram de se adaptar, para impor os ditames de uma esterilizada29 objectividade do mundo: «Onde o pensamento não se torna pequeno, é perseguido e, de vez em quando, atingido pela sombra do pensamento da unidade universal» (Sloterdijk, 2008: 44).

A experiência visual da modernidade cinematográfica foi lentamente reconfigurada, de acordo com a natureza da inconstância e intermutabilidade de um processo de atomização global. Hoje, mais que mera experiência de observação e imaginação, a experiência visual do mundo transformou-se num simultâneo valor de uso e de troca, no contexto de uma virtual produção de espaço; e transformou-se numa experiência de ludificação, de jogo, tornando difícil dissociar a força produtiva do

homo faber da passividade criadora do homo ludens tardomoderno. Já não somos

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Jogamos aqui com o duplo sentido etimológico do termo «Esterilizado»: 1. Que foi alvo de esterilização; 2. Que se tornou infértil.

mais simples espectadores passivos na sociedade do espectáculo: somos operários inertes numa sociedade de imagens, à semelhança do proletariado de Metrópolis (1927), de Fritz Lang, contribuindo para o funcionamento de uma cidade imaginária e autofágica.

Com o advento da câmara portátil e das novas formas de captação sonoras, seria de esperar que as imagens do mundo apurassem a sua natureza indexical, i.e., a tendência para registar e conservar a memória colectiva do real. Mas, como bem aponta Edgar Morin, «essa função foi atrofiada pelo desenvolvimento prodigioso da função imediata» ou pelo fascínio de uma adesão à «realidade imediata» (Morin, 2008: 200). Foi esse fascínio pela sensorialidade de um novo tipo de acesso subjectivo à objectividade do ‘real em directo’ que se sobrepôs à História dos arquivos e, sobretudo, que reconfigurou uma sobredeterminação estética sem par dos aparelhos móveis. Ainda antes que estes aparelhos viessem a ser tão difundidos à escala global, na viragem do novo século, o tipo de conteúdos que, entre as décadas de 50 e 80 do século XX, circularam dominantemente entre televisão e salas de cinema foi-se enquadrando formalmente nos moldes perceptivos a que as novas técnicas da sensação procuraram sempre corresponder. Os espectadores da era televisual foram aprendendo a assimilar as regras do jogo sensacional, através da interacção passiva com o mundo. Foi assim que, em 1970, Baudrillard, pôde já falar de um «jogo dos elementos», cuja dimensão lúdica se tornou na totalidade dominante do nosso modus

vivendi, «na medida em que tudo – objectos, bens, relações e serviços – se torna gadget» (Baudrillard, 2005: 119). Nesse jogo dos elementos, o gadget de Baudrillard

antecipava a aceleração vertiginosa na criação de aparelhos com capacidade reprodutora de imagens, que, hoje, assumem a função principal de estabelecer o

modus vivendi quotidiano. Deste modo, o produtor de imagens tem vindo a estar,

gradualmente, no mesmo plano emocional que o consumidor – um consumidor generalizado, porque, mediado pelas funcionalidades dos gadgets, se julga mais especialista no jogo dos elementos.

Nesse jogo, o «sentimento de que é preciso procurar a verdade e o sentido nas aparências fenomenais torna-se dominante. O fenómeno torna-se a realidade essencial» (Morin, 2008: 202). Esta sensorial busca de verdade no fenómeno provém historicamente: 1) do imaginário cinematográfico pervertido pelo efeito sensorial do recolhimento na sala; 2) da disseminação desse recolhimento pelos novos canais televisivos; 3) da sensação de participação-projecção subjectiva nas novas e proliferadas imagens dadas pelas câmaras portáteis acompanhadas de som síncrono – que doravante denominaremos de câmara-mão. Se a génese do cinema-olho, para

Vertov, residia na metáfora de uma entrada perceptiva na ‘arena da vida’ através da

visão, o termo cinema-mão, aqui empregue, pretende salientar a importância de uma

virtual participação nessa arena, através do acto criativo do Eu pluralizado. Pela primeira vez na História, parece hoje haver tantas imagens criadas por mãos, como as olhadas por olhos. Essas imagens, que ora consumimos ora produzimos indiferenciadamente, são os novos produtos omnipresentes de uma «sociedade tardomoderna da produção» (Han, 2014: 47), em que as relações estéticas perderam capacidade intersubjectiva.

Estes fenómenos, ocorridos ainda antes do mundo imaterial da internet, esculpiram, de forma faseada, a antecâmara a um novo mundo de não-coisas, em que a relação com o mundo real (no sentido físico do termo) deixou de ser o referente primário. Paradoxalmente, a sensação de acrescida participação num mundo objectivável acentuou a obsessão de um acesso personalizado a tudo. A (re)construção dos factos perdeu superioridade sobre a possibilidade de os presenciar ou, até mesmo, de participar na sua fabricação.

Delfim Sardo considera que este tipo de dispositivos que realçam as qualidades subjectivas de observação, quando «globalmente sintonizados com a possibilidade de um espectador móvel e corporalizado, materializam a forma como as manifestações culturais de massas se apropriaram das inovações científicas» (Sardo, 2017: 11) – e, acrescentaríamos, também a forma como os sistemas de controlo económicos jogam com esses moldes culturais enquanto forma de sedução. Na sequência dos processos de individuação ultimados pelo conforto sensorial das salas de cinema e pela propagação de conteúdos da televisão, o advento de conteúdos e formas mediadas pelas câmaras-mão – que, enquanto aparelhos cada vez mais manuseáveis, fazem hoje parte de um processo de distribuição massificada em curso – contribuíram, substancialmente, para uma nova e «gigantesca reorganização do conhecimento e das práticas sociais que modificaram, de inúmeras maneiras, as capacidades desejantes, cognitivas e produtivas do sujeito humano» (Crary, 2017: 24), da segunda metade do século XX. O que se instalou com a difusão dos conteúdos televisuais, há quase setenta anos e, posteriormente, com o aparecimento e massificação das câmaras portáteis, foi um paradigma assente em «forças e regras plurais que constituem o campo em que a percepção ocorre» (id.: 28).