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Audiovisão e teoria estética do som (sincronismo)

PARTE I DO MUNDO FILMÁVEL

4. P OTENCIALIDADES POÉTICAS DO SOM DIRECTO

4.3 Audiovisão e teoria estética do som (sincronismo)

Foi Edgar Morin quem pensou a dimensão sonora como o grande referente de um sistema de apreensão racional, quando ajustado à objectividade cinematográfica44. Pelo facto de o som não se assemelhar à imagem, no sentido em que «não é nem sombra nem reflexo do som original, mas sim a sua gravação», é que «os ruídos e as palavras orientaram o filme para um maior realismo» (Morin, 1970: 213). Eis porque, como bem observa Morin, o «som não afectou a ‘especificidade’ do cinema, antes pelo contrário, desenvolveu-a, em certos sectores, abrindo-lhe as possibilidades» (id.: 227). Mais tarde, seria Chion quem viria a contribuir para um novo e importante estudo do sonoro, num plano histórico, necessariamente pensado de acordo com potencialidades e contribuições técnicas e estéticas. Chion propôs-se a fazer equivaler o fenómeno sonoro ao visual através do termo audiovisão. É essa equivalência – que, no fundo, não é mais que uma tentativa de relativizar o poder da imagem face às potencialidades sonoras – que neste momento nos interessa explorar.

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Objectividade essa, cujo «primeiro suporte da realidade são as formas ditas reais embora mais não sejam que aparentes, formas que, precisamente porque fiéis às aparências, dão a impressão de realidade» (Morin, 1970: 141). É por isto que a ontologia da imagem cinematográfica é tão facilmente associável a uma «impressão de realidade» da imagem fotográfica, como, aliás, pensado por Bazin (2005).

Com Michel Chion, percebemos o quão aquém os cineastas ainda estão de conseguir questionar filosoficamente o novo mundo-ambiente que nos rodeia. O maior contributo de Chion (2011) foi o de contestar, sem pudor, uma «definição ontologicamente visual» do cinema:

Ontologicamente falando, bem como historicamente, a situação do som no cinema tem a ver com um ‘acréscimo’. Com efeito, tudo se prende com o facto de que, mesmo dotado do som síncrono trinta anos sem dele necessitar, e saturado por uma banda sonora que, nestes últimos anos, se tornou cada vez mais rica, brilhante e retumbante, o cinema não deixou de conservar intacta a sua definição ontologicamente visual. (p. 114)

É por isso que, apesar de o som «continua[r] a ser o que nos faz ver no ecrã aquilo que ele quer que nele vejamos» (Chion, 2011: 115), é o mesmo som que tem a capacidade retirar à imagem a capacidade de «estruturar o espaço» (ibid.). Ainda assim, a «progressão quantitativa do som – em quantidade de potência, quantidade de informação e número de pistas sonoras simultâneas – não retirou então a imagem do seu pedestal», ou seja, apesar das suas potencialidades estéticas, o «som continua a ser o que nos faz ver no ecrã aquilo que ele quer que nele vejamos» (ibid.).

Há, pois, uma história do som por fazer, no que se refere à importância, estética e ética da fonte de uma captação sonora coincidir no ângulo da imagem. As investigações de Michel Chion são forte contributo para uma compreensão do aspecto sonoro do cinema. Não obstante, pecam por privilegiar uma concepção sensorial do mesmo, uma concepção espectacular da sua função. Falta uma teoria estética do som síncrono que, realçando uma propriedade que transcende o cinematográfico, encontre em filmografias um certo conteúdo ético por pensar.

É nesse sentido que recuperamos uma outra expressão de Chion que remete a dimensão sonora para um plano simultaneamente moral e estético: os índices

materializantes sonoros que, devido à sua natureza duplicada, divergem

ontologicamente da natureza indexical da imagem fotográfica. Não sendo necessariamente mais ‘reais’ ou ‘puros’, estes índices são mais ‘mundanos’ – no sentido físico e não cinematográfico do termo. A gravação sonora traz até nós um índice físico do espaço, uma gravação que é simultaneamente representação de um modo de ouvir humano.

O som, ainda que mediado por uma gravação, dá o espaço como ele nos chega. Ao passo que a «imagem projectada num écran é desmaterializada, impalpável, fugaz» (Morin, 1970: 46), os índices materializantes sonoros são densos e presentes, quer nos cheguem através da sala de cinema (ou não) quer a sua

qualidade de gravação seja maior ou menor. Chion entende que esses índices materializantes funcionam, por vezes, como «flutuações de cor [que] contribuem para dar vida própria ao som direto» (Chion, 2011: 76), sobretudo nos filmes que dele fazem um uso pensado. São esses índices que nos indicam «um espaço concreto e enraízam o som num momento, num húmus de realidade mais sensível» (id.: 94).

Julgamos que é precisamente na origem do ‘sincronismo’ que reside a hipótese estética de uma equivalência em que se deixa de entender o som como simples complemento da imagem cinematográfica. No entanto, à semelhança do cinematógrafo dos Lumière, as câmaras portáteis com som síncrono, desenvolvidas nos anos 50 por Richard Leacock e Robert Drew45, viram, desde logo, ser sugada a sua técnica de sincronização por uma indústria cinematográfica que tentava renovar o

espectáculo, e ao qual não bastava já um sound sorround das novas salas de cinema

equipadas para aguçar as sensações. No universo televisivo, só quarenta anos após a invenção das técnicas do directo é que a reality tv – muito mais que o cinema

mainstream que, hoje em dia, recorrendo às mesmas, ganha óscares – haveria de dar

lugar a uma função sensorial, imbuída na imediatidade da relação entre som e imagem. Recentemente, assistimos à passagem dessa função para as novas redes dos espaços digitais, através da migração de conteúdos e estéticas televisivas do directo da viragem do último século.

Contudo, ainda antes da aurora do som síncrono e das novas técnicas de representação do mundo na sua imediatidade sensorial, existia, em potência, uma estética que transcendia a mera técnica de apresentação do mundo em directo aparecia, talvez pela primeira vez, uma forma de fazer dos ouvidos uma ponte entre o

pensamento e o mundo. A dimensão de uma ‘sensação de verdade’ do directo,

inicialmente produzida pelas câmaras portáteis e pelo som síncrono, foi oferecendo à história do cinema obras-primas imunes à espectacularização, tais como Faces (John Cassavetes, 1968), Trás-os-Montes (António Reis e Margarida Cordeiro, 1976) ou

Bless Their Little Hearts (Billy Woodberry, 1983). Faltar-lhes-ia tão-somente a

consistência – e a poética – de um pensamento (projecto) prolongado e não meramente pontual.

45 Sobre este assunto, cf. P. J. O’Connel, Robert Drew and the Development of Cinema Verite in America

4.4 Dimensão sonora do cinema directo

Prodigiosas máquinas (câmara e gravador) caídas do céu; não se servir delas senão para repisar o factício parecerá dentro de cinquenta anos desrazoado, absurdo. Robert Bresson

Um projecto singular de Vittorio de Seta ajudar-nos-á a identificar alguns traços

poéticos que nos interessam explorar no caso da dimensão sonora do cinema directo.

A série de dez curtas-metragens sobre rotinas e rituais campesinos e piscatórios, realizadas entre 1954 e 1959 nas ilhas da Sicília, por Vittorio de Seta, e que compuseram o projecto cinematográfico de Il Mondo Perduto, demonstram como o cinema, enquanto forma de pensamento, carrega ideias que transcendem as limitações formais das suas técnicas de mediação. À semelhança da leitura que Arthur Danto faz de uma estética pré-fotográfica na pintura Execução do Imperador

Maximiliano (de 1867-1868), de Manet46, também o projecto de Vittorio De Seta antecipou as possibilidades instantâneas do cinema directo. Esta antecipação de uma técnica característica de um dispositivo maquinal (no caso de Manet, o ‘instante decisivo’ da câmara fotográfica de lenta exposição; no caso de De Seta, os traços impressionistas do real captado pela câmara portátil com som síncrono do cinema directo) manifesta a ideia de que o olhar humano não se reduz a uma extensão das técnicas de representação de cada época. Por outras palavras: os casos de desejo por uma nova gramática ainda sem expressão são a prova de que a relação com o estético – tal como a linguagem – deriva do pensamento e não somente da técnica47.

Aquém das visibilidades que a sensação de imediatidade do cinema intensificou a partir dos anos 60, imperava no projecto de De Seta, meia dúzia de anos antes, uma tensão conceptual, que se situava num limite entre a enformação da matéria e o pensamento que buscava um meio de expressão para a ideia implícita nas técnicas do cinema directo por vir. O que nos interessa nesse liminar projecto não é o facto de ter vindo antes do tempo ou o de ter antecipado, de forma ‘pensada’, as proezas ‘naturais’ de uma técnica. Interessa-nos, sim, a forma como De Seta procurou

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Referimo-nos à passagem de What Art Is, na qual Arthur C. Danto afirma que Manet «was seeking to show the event the way it would look if it had been photographed» (Danto, 2013: 107). A técnica e estética antecipatória da pintura de Manet revela, no entendimento do filósofo, um desejo formal que a técnica da câmara de fotografar ainda não era capaz de cumprir: «Photography was not yet capable of recording events happening this quiclky» (ibid.). Este exemplo é paradigmático da noção de «embodied idea» que, quanto a Danto, caracteriza o que subjaz ao acto artístico.

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dar a ver uma invisibilidade a partir da desmaterialização do mundo fenoménico em directo. Tal desmaterialização, embora cinematográfica, partiu do pressuposto inédito

e irreverente de que deviam ser as imagens a corresponder aos sons e não o inverso. De Seta captava e montava os sons de cada curta-metragem antes que houvesse imagens que lhes correspondessem – tal como num videoclip em que é a música que, na base, irá motivar tonalmente as imagens que aparecem para a ilustrar. Só quando houvesse uma ‘musicalidade’ final construída por sons, uma duração sonora editada em fita magnética, é que o realizador procederia à captação de imagens que fossem ilustrar essa musicalidade. A poética de Il Mondo Perduto deve-se a uma imagética que deriva da audiovisualidade como forma de representação do mundo.

As curtas-metragens de De Seta foram visionárias, não por se anteciparem formalmente às possibilidades do cinema directo ou à indústria do espectáculo que desde a geração MTV assenta nesta metodologia, mas, sim, por se anteciparem a uma série de obras e projectos – sobretudo, experimentais e prementes no campo disciplinar da vídeo-instalação dos anos 8048 – que repensariam a questão do sonoro no âmbito da imagem cinematográfica. O projecto, que reúne diversos espaços temáticos de um ‘mundo perdido’ no sul de Itália, parte igualmente de uma premissa estética e moral: são as gravações sonoras desses lugares que materializam espaços comuns (que se perderiam, caso não fossem documentados), por oposição a uma simples cinematização que obedecesse à lógica substitutiva das imagens sensacionais de uma evidência. Os sons do projecto de De Seta compõem musicalmente a matéria enformada que nos dá uma audiovisão simultaneamente concreta e poética dos espaços. No trabalho de captação e montagem poética das bandas sonoras exprime-se uma invisibilidade que é imanente à representação etnográfica e antropológica.

A dimensão sonora neste tipo de cinema adquire uma premissa fenomenológica original: se a tarefa do artista cinematográfico, como na acepção de Sigfried Kracauer, se mede pela capacidade de «ler o livro da natureza» (Kracauer, 2012: 463); se o artista cinematográfico deve possuir as características «de um explorador movido por uma curiosidade insaciável» (ibid.), então, De Seta mostra-nos que o acto de escutar o mundo se pode sobrepor ou equivaler à necessidade de o ver. Na poética de De Seta, é a materialidade sonora do mundo que nos domina por via da audição. Estamos no pólo oposto da dominação que o nosso conhecimento efectua

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A este respeito, o trabalho de Michael Snow foi e continua a ser um dos mais emblemáticos e pertinentes. Recentemente, uma Exposição com a curadoria de Delfim Sardo, na Culturgest (24 Fevereiro – 22 Abril 2018), debruçou-se precisamente sobre o trabalho de Snow sobre o sonoro, sendo o título da Exposição explícito a esse respeito: The Sound of Snow.

sobre o mundo a partir do olhar – e no lugar oposto de uma «visibilidade exaustiva do objeto [que] destrói também o olhar» (Han, 2016b: 17).

Pela primeira vez, a curiosidade insaciável de um explorador cinematográfico traduziu-se numa vontade moderna de se ser-com o mundo. Essa vontade autêntica, a que os dispositivos de controlo viriam devolver uma ‘visibilidade exaustiva’, expressou- se numa distância que transcendeu a mediação da imagem cinematográfica. Ao partir de imagens sonoras, a estética fenomenológica de De Seta remete para segundo plano a «comunicação visual polida e impecável» que se efetua «como um contágio sem distância estética» (Han, 2016b: 17), por mais belas que sejam todas as imagens visuais de Il Mondo Perduto. De Seta provou-nos que o cinema – como o quadro de Manet o havia provado relativamente à fotografia – é muito mais do que técnica circunstancial que dá a ver o mundo; e que o regime de ‘visibilidade exaustiva’ em que vivemos desde o advento da modernidade não é mais que um bloqueio do ser-com o mundo. Neste modo de ouvir e ver o mundo, as coisas mostradas sujeitam-se ao princípio estético em que «o olho [é] superficial» e o «ouvido profundo e inventivo» (Bresson, 2000: 72); nesse modo de apreensão cinematográfica, falamos de uma poética em que «o apitar de uma locomotiva nos dá a visão de toda uma gare» (ibid.).

Com o exemplo de Il Mondo Perduto, quisemos demonstrar que o próprio cinema pode complexificar, num plano estético e moral, o que costuma ser entendido (de forma redutora) como uma certa ontologia da imagem cinematográfica; dito numa terminologia filosófica, que o cinema pode almejar reproduzir a categoria estética que transcende a imagem – o sublime. O belo das imagens técnicas no projecto de De Seta é desvalorizado em prol de uma estratégia de aproximação mais poética que imediata, lembrando-nos que a arte, mais que um modo de apreensão do visível, pode replicar uma ligação entre sujeito e objecto, através das invisibilidades que nos separam de um mundo inexprimível por palavras ou imagens. Nessa ligação tão rara que a arte nos oferece, a técnica é sempre e só uma via na obsessão com o real, e nunca uma via mais concreta para um pretenso realismo. Simultaneamente, o contexto histórico, cultural ou social deste tipo ‘superior’ de obra de arte – se tomarmos em consideração os modos de valoração na teoria estética de Adorno – releva de um conflito interno e nunca de um princípio temático que se situe no exterior da obra. Esse conflito ocorre entre um modo técnico de abordagem ao espaço e um fazer singular que dá à obra a aparência de um «não-fabricado» (Adorno, 2008: 203), como se a obra fosse, ela mesma, o mundo.

4.5 De Seta e Wiseman – o carácter transgressor da poética do som

Com Il Mondo Perduto, De Seta manifesta uma vontade de se fazer justiça à realidade física, ao fabricar de uma poética que compõe o dia-a-dia dos homens, mulheres e crianças de uma Sicília perdida no tempo. Para além da documentalidade etnográfica, há uma poética sonora e visual que conduz as histórias singulares daqueles que raramente têm lugar nas grandes narrativas.

Ao fazer o uso da dimensão sonora num plano estético e moral, que relega para segundo plano o visível, também a filmografia de Wiseman é singular no que respeita a dar um passo além na vontade de dar voz a gente perdida nos espaços. O cinema de Wiseman faz um uso técnico ímpar daquilo que o cinema de Vittorio De Seta desejava concretizar anos antes do cinema directo: uma obsessão pelos índices materializantes que nos dão a ouvir, ver e pensar um mundo perdido. Mas dá, também, um passo fundamental para uma estética relacional, que visa aludir a um

espanto renovado pelo mundo físico que habitamos – um espanto que vai para lá das imagens vivas do viv(id)o ou da nostalgia por um tempo perdido.

Ao nível fenomenológico, a dimensão sonora é, em Frederick Wiseman, um motor de arranque para uma metodologia singular – um ethos de trabalho. Ela instaura um processo que se inicia num acto de escuta dos espaços. Este acto, simultaneamente ético e estético, caracteriza-se pela prioridade que dá à voz humana e que realça as temáticas humanas pelas quais os filmes de Wiseman se pautam: espaços institucionais, que são definidos por aqueles que os habitam, que falam e que neles agem num momento histórico específico. Quem já viu um qualquer filme de Wiseman a partir de Titicut Follies (1967), sabe bem o quão ambígua uma cena pode ser no que respeita à paciência subjectiva para se continuar a ouvir, com atenção, aquele ou aqueles que nela estão a fazer uso da palavra. Muitas das discussões podem ser tão pertinentes como insuportáveis, dependendo do ponto de vista de cada espectador.

Assembleias, plenários, reuniões, debates, encontros de grupo, etc. constituem muitas das cenas dos filmes de Wiseman, não só por revelarem dramaticamente os procedimentos fundamentais do funcionamento institucional norte-americano – que assenta na tensão entre a importância da palavra, como ferramenta de organização e confiança associativa, e os constrangimentos políticos que a condicionam – mas, acima de tudo, por darem uma fisicalidade aos espaços documentados naquele tempo e naquele lugar singulares. De um ponto de vista da abordagem fenomenológica dos espaços, o que seria Hospital (1970) senão aquele hospital concreto de

Massachusetts, naquele tempo e lugar, habitado por aquelas pessoas e não por outras? O mesmo se pode dizer de todos os espaços, pessoas, coisas, na restante filmografia deste realizador. Trata-se, afinal, de uma obra que sempre apelou a um ‘estado de transgressão’ possível de experienciar na vivência de cada espaço social.

Acima de tudo, o acto de ouvir em Wiseman é um acto de fidelidade que nos

vincula à situação representada numa era de ‘atrofia da paciência’49 para se ouvir o Outro. Nesse modo de abordagem, a «fidelidade e o que vincula implicam-se mutuamente. O que vincula exige fidelidade. A fidelidade pressupõe o que vincula» (Han, 2016b: 98). Face ao despontar das técnicas de imediatidade das câmaras portáteis com som síncrono, num tempo de aceleração dos desenvolvimentos tecnológicos das formas de mediação, na sequência da Segunda Guerra mundial, as qualidades humanas para se esperar, ouvir e estar com o Outro foram as primeiras a desaparecer numa era de quantificações, hiperindividualização e isolamento exponenciais.

Ora, muito para lá do fascínio por acções e personagens singulares do cinema directo, a morfologia do cinema de Wiseman é hoje mais pertinente que nunca, por vincular o espectador à necessidade de escutar, que está na essência de toda a linguagem – porque «o que possibilita o diálogo não é quem fala mas quem escuta…» (Maia & Maranha, 2018: 41). Não será coincidência que um dos recentes filmes do realizador, In Jackson Heighs (2015), dê um retrato das formas de resistência num espaço determinado (o bairro de Queens, em Nova Iorque), perante um processo de gentrificação, cuja salvação depende da capacidade ou incapacidade de dialogar. Trata-se de um filme maioritariamente composto de discussões, assembleias ou encontros diários entre os habitantes; um lugar onde, em cada esquina, se faz um uso tão eficiente como impotente – em suma, um uso demasiado humano – da palavra. Face à palavra do outro, a (nossa) escuta prefigura a possibilidade de diálogo. A

escuta reencena um «certo modo de guardar silêncio», que «pode libertar o homem»

(id.: 45), porque o homem (ainda) está condenado aos lugares – a qualquer lugar na terra50.

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Pedimos de empréstimo a expressão a Jonathan Crary: «24/7 has produced an atrophy of the individual patience and deference that are essential to any form of direct democracy: the patience to listen to others, to wait one’s turn to speak» (Crary, 2013: 124).

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Cada lugar na terra é, em potência, um parlatório. Como Tomás Maia e André Maranha afirmam, o «parlatório é o ponto em que os seres aprisionados – as presas da vida que nós somos – se libertam… O homem não está (temporária ou acidentalmente) no parlatório: ele é o parlatório» (Maia & Maranha, 2018: 45).

A relevância da dimensão sonora no cinema de Wiseman – cuja dimensão estética o projecto de De Seta antecipou – é, como veremos, a camada técnica de que brota toda uma poética singular. Ela recupera a possibilidade sagrada de cada lugar, restituindo, pela imagem-sonora e em movimento, o carácter ‘transgressor’ que qualquer suspensão requer.

Essa ‘fé poética’51 é fundamentalmente constituída por uma audiovisão que nos

liga aos espaços e que transcende a ontologia das imagens técnicas que tanto sobrepovoaram o mundo do velho século XX e este jovem século XXI.

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A expressão ‘fé poética’ deriva da noção de ‘suspensão da descrença’, originalmente teorizada por Samuel Taylor Coleridge. É neste sentido mais profundo que temos falado de suspensão, omitindo,