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PARTE I DO MUNDO FILMÁVEL

2. R ELAÇÕES ENTRE MUNDO E TÉCNICAS DE ISOLAMENTO NO SÉCULO XX

2.2 Omnisciência da imagem cinemática

Mas não será [o cinema] a mais absurda das máquinas, uma vez que só serve para projectar imagens única e simplesmente pelo prazer de as ver?

Edgar Morin

Quando Alfred Hitchock disse que «o cinema é acima de tudo cadeiras com gente sentada» (apud Virillio, 1993: 30), salientou, melhor que ninguém, que as salas de cinema, enquanto meio, não são mais que um lugar onde se consegue imobilizar o corpo e onde, consequentemente, se pode promover uma relação de passividade com a ‘realidade física’, por mais activo que seja o olhar do espectador sobre as imagens.

Se o território das salas contribuiu para o início de uma nova relação estética entre os homens e um mundo do qual se foi separando espiritualmente, foi já numa outra zona de perversão consciente que, através da programação televisiva, se consumou uma ideológica ‘negação do corpo’, por via do aperfeiçoamento do aparato tecnológico em rede. O padrão televisual do reality show mundializado do século XXI foi precedido pela ideia cinematográfica de que «tudo pode vir a ser filmado, incluindo a agonia de um ser incapaz de escapar à tirania do em-directo» (Maia, 2016: 103). Do documentário mais sórdido à mais intimista das ficções, o cinema contribuiu para esse novo paradigma mundial da imagem, em que a «omnivisão» se tornou num «desejo do espectador que é, ao mesmo tempo, voyeur de todos e de si mesmo» (ibid.).

Nos registos da História privada do sujeito, o cinema foi a indústria do visível que levou ao limite a invasão da intimidade. Até as ideias patentes nas intenções visionárias do Kino-Pravda de Vertov já contribuíam para a antecâmara do projecto de omnisciência a que a televisão (ou a sua televisualidade, para ser mais exacto) foi

dando continuidade, até aos dias de hoje. Face à dimensão de tal projecto histórico, seria impensável que a índole da nossa relação com o mundo material não se tivesse alterado vertiginosamente. Basta sentarmo-nos numa qualquer esplanada, com uma estrada/ avenida/ rua à frente, para perceber que o fluxo urbano da automobilidade se tornou análogo à audiovisualidade cinemática que nos subjuga no lar, como se as coisas do mundo do homo faber se tivessem tornado numa sombra das não-coisas que o homo spectator se tem habituado a consumir, nas imagens em que a realidade aparece com melhor definição18.

Mais que a imagem-em-si, a ideia de omnisciência por detrás da imagem cinemática alterou profundamente a estrutura da nossa ontologia relacional com o Outro e com o mundo quotidiano. Nas palavras de Arjun Appadurai (apud Álvarez, 2015: 182), essa reconfiguração do mundo comum pode ser descrita como o território estético em que a imagem, o imaginado e o imaginário se encontram e confundem:

The image, the imagined, the imaginary – these are all terms that direct us to something critical and new in global cultural processes: the imagination as a social practice. […] the imagination has become an organized field of social practices, a form of work (in the sense of both labor and culturally organized practice), and a form of negotiation between sites of agency (individuals) and globally fields of possibility. […] The imagination is now central to all forms of agency, is itself a social fact, and is the key component of the new global order.

Chamamos cinematização do mundo19 a esta generalizada esteticização do vivido a uma escala mundial, na sequência daquilo a que Alain Roger denominou como artialização da natureza. Se a cinematização ocorreu progressivamente, entre a invenção da indústria do cinema e a incorporação massificada nas novas câmaras de

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No ensaio Inércia Polar, Paul Virillio correlaciona sistematicamente o advento da velocidade automóvel com o fenómeno espacial da audiovisualidade: «a velocidade audiovisual serve para ver, para ouvir, ou por outras palavras para avançar na luz do tempo real, como a velocidade automóvel dos veículos servia para avançar na extensão do espaço real de um território» (Virillio, 1993: 20-21). Diz-nos ainda: «Como ainda há pouco tempo dizia Fellini: “Já não viajo: limito-me a ter de cada vez em quando acessos de deslocação”. De facto, já não habitamos a energia motriz de um qualquer ‘meio de transporte’; é essa energia que, como a febre, nos habita, nos possui intensamente, de onde o grave risco do produto dopante, da droga que dá speed» (id.: 30).

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O destino colectivo de uma vida ensaiada nos circuitos televisivos e nas linguagens discursivas que provieram dos movimentos cinematográficos mais distintos é o de uma generalizada «conversão em filme». A ideia de uma «conversão em filme» parece-nos mais correcta se o seu termo derivar etimologicamente do ‘cinematográfico’. O termo ocorreu-nos a partir deste excerto de Inércia Polar, de Virillio: «A conversão em filme parece ser, portanto, o nosso destino comum. […] Encerrados nas nossas

montras catódicas, passaremos a ser os tele-actores, as tele-actrizes de um cinema vivo de que o recente

desenvolvimento dos espectáculos de ‘som e luz’ assinala o advento» (Virillio, 1993: 41). No fenómeno cinematográfico, onde se englobam tanto os modos perceptivos dominantes da história do cinema, quanto os modos de produção dominantes da indústria cinematográfica, surge-nos a imagem de uma forma de relação inerte e isolada com uma esteticização do vivido e, por consequência, com o mundo físico. A ideia arrojada de uma «conversão em filme» como «destino comum» é uma adequada ilustração daquilo que, de certa forma, já caracteriza o modus vivendi de grande parte da população mundial – do Ocidente ao Oriente, sobretudo onde as indústrias cinematográficas, os media electrónicos têm ou tiveram forte influência ideológica.

filmar em telemóveis – tendo, pelo meio, no ‘ecrã demoníaco’ da televisão, o principal catalisador de uma sensação de imediatidade –, a artialização da natureza, no entendimento de Roger, já era o que providenciava, a cada época, os modelos e esquemas perceptivos de cada qual. É como se à arte, enquanto elemento comunicacional entre culturas, tivesse sempre sido atribuída a tarefa de estabelecer e definir os padrões estéticos contingentes de cada lugar social.

A teoria de Roger parte da «revolução copernicana da estética em 1880» afirmada por Oscar Wilde, quando este último disse que a «vida imita a arte muito mais do que a arte imita a vida», sendo que as «coisas existem porque nós as olhamos, e a receptividade assim como a forma da nossa visão dependem das artes que nos influenciaram»; por isso, no final do século XIX, as pessoas já só viam nevoeiros, «não porque h[ouvesse] nevoeiros, mas por que os pintores e os poetas lhes ensinaram o misterioso encanto de tais efeitos» (apud Roger, 2013: 155). Para Roger, a essência de uma paisagem é igualmente de ordem estética, porque resulta sempre de acto criador do espírito humano, que é veiculado através do que a arte e a cultura estipulam. E Rogers adverte: «Somos, sem o sabermos, uma intensa forja artística e ficaríamos estupefactos se se revelasse tudo aquilo que, em nós, provém da arte» (Rogers, 2013: 156). Assim, a paisagem é o lugar privilegiado para se medir esse efeito do poder estético da artialização que, quando realizada in visu, se dá «através da mediação do olhar» (id.: 157), de tal forma que «é precisamente ao génio de Cézanne que devemos a Sainte-Victoire, à sua ‘inspiração’, à sua artialização da terra em paisagem» (id.: 161). Neste sentido, os lugares nunca tiveram um espírito senão através da nossa mediação – material (in situ) ou visual (in visu). Esta

artialização, ou a virtualização global da mesma, realiza(m)-se hoje numa escala cada

vez mais ampla, que vai dos locais públicos e urbanos aos lugares privados e íntimos. As imagens em movimento que circulam intermedialmente produzem a sensação de uma duplicação do mundo: são elas que definem o mundo como ideia e representação através de ecrãs.

Partindo da premissa de que uma paisagem é uma simples extensão da terra sob a alçada do olhar humano, foi o cinema a forma de mediação que iniciou um processo de reconfiguração das paisagens (imagens) da terra, na sua totalidade. Com efeito, a vida foi superlativamente cinematizada, até ao ponto que se tornou, ela própria, objecto de estudo laboratorial. As formas de cinema que não cessam de se disseminar e recriar, em publicidades, videoclips e vídeos on-line nas redes sociais, são as retaguardas activas em que desaguaram as experiências que as vanguardas soviéticas, a montagem de transparência griffithiana ou o cinema experimental das

décadas de 1960 e 1970 impulsionaram, com maior ou menor alcance, na cultura de massas. A cinematização do mundo não se teria sobreposto à visão dos artistas que falaram em nome da arte cinematográfica, caso ela não se ajustasse de forma tão perfeita a um mundo económico em aceleração vertiginosa.

Retomando o texto de Roger (2013), outra analogia se pode estabelecer relativamente ao desaparecimento da capacidade de recuo perante a paisagem:

A percepção de uma paisagem, essa invenção dos citadinos […] supõe ao mesmo tempo distanciamento (recuo) e cultura, no fundo, uma espécie de recultura. […] Falta-lhe [ao camponês], desde logo, essa dimensão estética, que se mede, ao que parece, pela distância do olhar, indispensável para a percepção e o deleite paisagísticos. O camponês é o homem da terra, não o da paisagem… (p. 164) Nesta ideia burguesa sobre uma paisagem que só é percebida com recuo, somos todos hoje, afinal e de certa forma, como camponeses a quem falta uma «dimensão estética» do olhar. Se as imagens cinematográficas substituíram as imagens da terra em que vivíamos, se não temos outra escapatória senão continuar a habitar essa terra, então, num mundo totalmente cinematizado, somos homens da terra, não da

paisagem. Basta concluir que já não sabemos imaginar o mundo que acontece sem

nós, senão como uma imagem cinematográfica que ofusca automaticamente a nossa

imaginação. Estamos não só imersos num imaginário cinematográfico totalitário, como

também sujeitos às actualizações dos modelos perceptivos e estéticos que se vão estipulando na paisagem dos social media.

Todavia, não é possível falar de um fenómeno de cinematização da vida, se não falarmos da sua pedra de toque: a montagem. Foi com a investigação de Vincent Amiel sobre as diversas estéticas da montagem que descobrimos que o espectador do início do século XX não podia estar «habituado, culturalmente, a incluir uma imagem num fluxo narrativo» (Amiel, 2007: 24), como hoje parece ser natural. A massificação dos diversos e dominantes modos de ver do cinema da primeira metade desse século foram tão levados ao limite da sua concepção e difusão, que nos lançaram na dúvida de perceber se foi o cinema que quis imitar, desde logo, o nosso olhar, ou se foi o nosso olhar que, progressivamente, passou a ver as coisas com os olhos do cinema. A noção de ‘naturalismo’ deriva, em boa verdade, de uma série de modos de representação sobre um fluxo imagético que simula uma ‘visão natural’ do mundo, em que a ‘grafia’ das imagens em movimento é pródiga. Neste sentido, a montagem narrativa (a primeira de todas a ser desenvolvida) foi muito mais que uma operação de legibilidade: foi, sobretudo, um momento fundador da operação de sentido, que aparece nas mais diversas formas de associação entre imagens. Amiel explica que é o

fundamento da montagem narrativa que «impõe uma unidade lógica por meio de elementos fragmentados, que são os planos sucessivos» (id.: 26); e alerta para que «hoje isso parece-nos muito simples, mas era preciso conceber, e fazer aceitar, que a sucessão no ecrã de duas imagens pudesse evocar no espírito do espectador uma contiguidade espacial» (ibid.).

A ligação dos planos entre si formou-se a partir de uma certa ideia de ‘escrita fílmica’. E toda a história do cinema, «desde a década de 1910 até à década de 1950, no período que se convencionou considerar a idade de ouro do cinema clássico» (Amiel, 2007: 24-25), assentou nesse princípio que devemos, grosso modo, a D. W. Griffith. Para além desse estilo dominante de compreensão lógica, é a Eisenstein que devemos a herança de uma forma de entender o mundo através de um discurso. Com ele, a ordem da montagem passou a ser também «uma ordem de pensamento» (id.: 61). O «cinema do conflito» foi muito além de um espelhamento narrativo da vida: ele criou a hipótese de «uma forma de compreender e fazer compreender» (id.: 65) o sentido, através de associações e inferências.

O que pretendemos argumentar é que, ao longo do século XX, a maneira como percebemos e pensamos imagens cinemáticas foi sendo condicionada por técnicas e formas de mediação que usaram e abusaram das duas grandes técnicas de montagem cinematográfica. O cinema de Hollywood é um excelente exemplo de como a massificação de uma forma de olhar (que o Ocidente continua a usar como colonização espiritual do resto do mundo) ocupou lugar central na cultura visual dos últimos cem anos. Nela se foi recodificando a forma como percebemos o mundo, enquanto compósito de imagens com um tipo específico de sentido (temático, semântico e estético). Por sua vez, o cinema soviético explorou as potencialidades de uma dialéctica discursiva entre dominadores e dominados (ou, numa linguagem corrente, entre programadores e programados), de que a publicidade audiovisual é a grande herdeira20.

A investigação da montagem enquanto busca de sentido revela que o trabalho especializado na associação de imagens acabou sempre ao serviço de um sistema de dominação económica, ideológica ou cultural. Neste ponto da nossa investigação, a questão da montagem interessa-nos, porque levanta indirectamente a questão da ubiquidade como nova ideologia: foi ela que ajudou a intensificar uma relação corporal

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Vincent Amiel defendia que se compararmos o cinema publicitário contemporâneo com o cinema soviético da década de 20 «pode considerar-se que ele funciona segundo um mesmo princípio dialético, mas em que a confrontação seria totalmente suavizada» (Amiel, 2007: 75). Desta forma, «a retórica e o lugar-comum juntam-se assim no cinema publicitário, que funciona de facto como uma ferramenta de propaganda, de que a montagem é uma alavanca privilegiada» (id.: 74).

com um mundo onde começámos a estar embrenhados cinematograficamente por meados do século XX. A ideologia da ubiquidade influenciou profundamente um modo de percepção sobre a realidade física através de imagens. Nela, sujeito moderno foi aquele que se deixou seduzir pelo movimento total, sucumbindo a uma alfabetizada televisualidade mediada pelos processos de montagem ou de associação de imagens. Não o diremos melhor que Edgar Morin, o qual, já em 1962 (cf. Morin, 2008: 90), afirmava:

As novas técnicas criam um novo tipo de espectador puro, isto é, separado fisicamente do espectáculo, reduzido ao estado passivo e voyeur. Tudo se desenrola perante os seus olhos, mas ele não pode tocar, aderir corporalmente, ao que contempla. Em contrapartida, o olho do espectador está em todo o lado.

No entendimento optimista de Morin, este novo paradigma realizava-se à luz de uma permuta dialéctica do sentido: se o «espectáculo» era, simultaneamente, uma presença e uma ausência, a possibilidade de «participação na multiplicidade do real e do imaginário» (Morin, 2008: 90) do observador moderno aumentava exclusivamente através de uma nova visão ubíqua; entende-se assim por que se vê correlativamente na televisão a tecnologia que melhor realizou «a extrema ubiquidade do alhures na extrema imobilidade do aqui» (ibid.). Pelo contrário, no entendimento pessimista de Paul Virillio (1993), este período marca o deflagrar de uma nova sedentariedade, que culminaria, no final do século XX, na aparição de uma inércia polar:

[…] se o final do século XIX e os primeiros anos do século XX assistiram ao advento do veículo automóvel, veículo dinâmico, ferroviário, rodoviário e mais tarde aéreo, parece evidente que o final do século anuncia uma última mutação, com a próxima chegada do veículo audiovisual, veículo estático, substituto das nossas deslocações físicas e prolongamento da inércia domiciliária que acarretaria enfim o triunfo da sedentariedade. (p. 35)

A razão por que tendemos a concordar com as conclusões de Virillio prende-se com a natureza estática da relação, de que temos vindo a falar, entre a imagem cinematográfica e o corpo imobilizado do observador (ou melhor, o pensamento, visto que o corpo só aparentemente está imóvel). Esta sedentariedade do pensamento é preocupante por ser real, mais que em qualquer outra esfera, ao nível da relação ‘óptica’ com as imagens do mundo. Preocupa-nos retratar um cenário em que se corre o risco de perder a relação ‘física’ e espiritual que a relação estética comporta, sob caução de uma imersão óptica nas imagens, que deixa de permitir (ou interessar-se em identificar) a distância que se interpõe entre nós e mundo. A tese de Virillio é materialista, no sentido em que prevê uma massificação da sedentariedade física do homem: «Doravante, tudo acontece sem que seja necessário partir. À chegada restrita

dos veículos dinâmicos, móveis e depois automóveis, sucede bruscamente a chegada generalizada das imagens e dos sons, dos veículos estáticos do audiovisual. A inércia polar começa» (Virillio, 1993: 38).

No entanto, tal «inércia polar» é somente o termo ‘óptico’ que melhor caracteriza a natureza da nossa relação estética com o mundo. Em boa verdade, o que está em risco é o motor dessa relação: o pensamento. Fisicamente, i.e., ao nível da relação corporal com a realidade material, é óbvio que o corpo e a mobilidade humana continuarão a ser uma das principais actividades na esfera dos negócios, para além da acumulação de espectáculos da imagem. A par do turismo21, o decénio de 1960 foi aquele em que o advento das câmaras portáteis com som síncrono testemunhou o emergir de uma epidemia da hipermobilidade. Antes porém, falemos do dispositivo laboratorial que antecipou essa epidemia e que sucedeu à sala de cinema: a sala-de-estar do lar privado.