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4. A era Putin

4.2. Política externa

4.2.2. Realidade e Prospetiva de curto/Médio Prazo

4.2.2.5. Ásia central

A evolução geopolítica que a Ásia Central atualmente experimenta, em grande parte um espaço pós-soviético, e a adiante analisar complementarmente no quadro dos proje- tos de integração regionais, está profundamente dependente das dinâmicas intra e inter- -regionais, estas nem sempre de fácil acomodação ou harmonização, encerrando por isso um substancial e complexo potencial de conflitualidade.

A privilegiada localização geográfica da Federação Russa relativamente à generalidade do continente asiático e especialmente em relação à Ásia Central, bem como o potencial e capacidade que apresenta face aos Estados da região, permite-lhe um menor esforço para projetar a sua influência geopolítica do que outros atores com interesses na região, emergindo assim o conceito de que “a Rússia não necessita de ir para lado nenhum”, bastando-lhe permanecer onde está, isto é, na Eurásia, o seu habitat natural. Contudo, e no que diz respeito aos Estados da Ásia Central, não obstante as fortes ligações de génese vária que a Federação possui com a generalidade dos mesmos, foi claro um processo de enfraquecimento decorrente da implosão soviética, restando a dúvida quanto ao seu ca- rácter circunstancial e capacidade de recuperação por parte da Federação, se pelo contrá- rio, são consequência de novas e irreversíveis dinâmicas, ou se a sua evolução será assente num modelo conjugado destes últimos cenários, porventura a hipótese mais viável. Entre outros, são de salientar nos Estados da região a emergência de posturas mais independen- tes gravitando em torno dos respetivos interesses nacionais, a crescente perda de ligação e laços com a Federação que as novas gerações de líderes já experimentam278, ou a entrada

de atores externos à região, significativamente ditada pelo potencial de recursos naturais que esta encerra. Ainda assim, e constituindo um dado generalizado nestes atores do espaço pós-soviético, é elevado o receio dos respetivos regimes face à ocorrência na re-

277 Onde a comunidade de cerca de 40 mil indianos é maioritariamente composta por estudantes na área da saúde.

278 O simples facto de ter terminado a obrigatoriedade do ensino da língua russa em muitos dos Estados do espaço pós-soviético criou dinâmicas nesse sentido.

gião de fenómenos idênticos aos ocorridos ou a ocorrer em alguns países árabes. Estes, passíveis de serem iniciados e/ou potenciados pelos processos sucessórios que a região experimentará no curto e médio prazo, eventualmente influenciados por atores externos com interesses na região, ou até mesmo pela forma como se processará a transição no Afeganistão, poderão levar os atuais regimes a procurarem apoios em aliados tradicionais e/ou históricos, cenário em que a Federação Russa poderá capitalizar.

Relativamente à atual postura dos atores outrora pertencentes à URSS, releve-se, es- pecialmente pela sua resiliência a projetos de integração propostos pela Federação, o Uz- bequistão e o Turquemenistão. Quanto ao Uzbequistão, ator que mais obstáculos e im- previsibilidade encerra, e sem desvalorizar algum recente desanuviamento ocorrido no relacionamento com a Federação279, o facto é que não se afigura simples que o abraçar das

propostas russas possa ser efetuado em detrimento do seu relacionamento com a China ou os EUA280. Adicionalmente, o grau de integração do país nos vários quadros de cooperação

multilateral que abrangem a região em muito dependerá da postura que venha a adoptar no cenário afegão pós-2014, dada a previsibilidade do aumento de protagonismo que pretende- rá neste âmbito derivado das aspirações de afirmação regional que possui. Como agravante, não é igualmente passível de ignorar a problemática de génese conflitual que a sobreposição étnica, a questão dos recursos aquíferos ou o Vale de Fergana encerram e introduzem no relacionamento trilateral uzbeque-quirguiz-tajique, dada a sua importância e latência.

Quanto ao Turquemenistão, embora a sua postura se revele menos afirmativa do que a uzbeque, o potencial que o país encerra em termos de recursos naturais e o vigor do seu atual relacionamento com a China poderão ser fatores limitativos da aproximação do país a propostas de integração efetuadas e lideradas pela Federação Russa.

Saliente-se igualmente neste âmbito o Quirguistão, país que não obstante o significa- do da cedência que efetuou aos EUA autorizando a utilização da base aérea de Manas no quadro do apoio logístico à ISAF, parece ter sido (re)cooptado para a esfera de influência russa, realidade sustentada pelos acordos económicos e militares entretanto assinados281

ou pela significativa influência que o regime russo (ainda) possui nas lideranças locais. Quanto ao Cazaquistão, um adepto e impulsionador da União Euroasiática, parece ter (re)eleito a Federação Russa como parceiro estratégico de cooperação, não obstante possuir espaço de diversificação no seu relacionamento bilateral, nomeadamente com a China, um parceiro também de especial importância.

Relativamente ao Tajiquistão e não obstante o recente acordo russo-tajique quanto à permanência no país da 201.ª Divisão Motorizada russa durante mais trinta anos282, resol-

279 Nomeadamente a assinatura de um memorando visando a entrada do país na área de comércio livre da Comunidade de Estados Independentes (CEI).

280 Releve-se contudo que o país aprovou recentemente legislação que proíbe a instalação de bases militares estrangeiras no seu território, o que o isenta de se constituir como alternativa à base aérea de Manas, loca- lizada no Quirguistão.

281 Nomeadamente o estabelecimento de uma base militar russa no país em 2017, com permanência inicial de 15 anos.

vendo uma questão que se arrastava há longos anos, é intensa a movimentação americana no país tendendo à sua cooptação, o que levanta algumas dúvidas quanto à manutenção futura do seu realinhamento com a Federação.

No que diz respeito a outros atores que operam na região, embora não a integrem geograficamente, a China e os EUA merecem particular relevo, embora o facto de a China partilhar claramente com Moscovo o objetivo de impedir ou limitar o acesso de atores à região a coloque noutro referencial geopolítico. Neste quadro saliente-se mesmo o papel facilitador que Pequim pode desempenhar, embora limitado no seu âmbito e obviamente acompanhado das necessárias contrapartidas, na reaproximação energética entre os dois principais competidores neste quadro, a Federação Russa e o Turquemenistão, dado o bom relacionamento que possui com este último país283. Quanto aos EUA, o outro dos

grandes atores externos com interesses na região, julga-se estar atualmente numa posição de alguma fragilidade, a qual pode ser agravada por uma eventualmente retirada total e/ ou parcial do Afeganistão em 2014, processo que embora anunciado começa entretanto a ser alvo de crescentes dúvidas.

Para além da postura dos atores da região atrás mencionados, que na sua generalida- de são alvo da competição sino-americano-russa na região, julga-se fundamental relevar a importância de outros, a qual não advêm unicamente da sua postura própria face à região, mas também de quadros mais abrangentes de análise, e em que o Paquistão assume espe- cial importância. A Federação Russa encontra-se fortemente empenhada no restabeleci- mento e consolidação relacional com o Paquistão, decorrendo esse interesse não apenas do cenário afegão pós-2014, em que este país terá certamente uma importância decisiva na estabilidade afegã e consequentemente na segurança regional, mas também pelo facto de o país se constituir como um valioso interlocutor com os movimentos independen- tistas e extremistas do Cáucaso do Norte russo. A génese e base desse futuro relaciona- mento terão como grande pilar a necessidade energética premente do Paquistão, sem a qual estará colocada em causa a sua autonomia e resiliência estratégica, e a consequente satisfação que a Federação poderá garantir nesse quadro. Deste modo, a Federação apoia claramente, desde há alguns anos284, a construção de um oleoduto ligando o Irão, a Índia

e o Paquistão (IPI), bem como de um outro unindo o Turquemenistão, Afeganistão, Pa- quistão e Índia (TAPI), projetos que no entanto se resumem ainda a um mero processo de intenções, fundamentalmente devido à competição energética entre os produtores energéticos da Ásia Central. No entanto, a eventual concretização destes projetos, e con- sequentemente a verificação da coincidência de interesses entre os produtores energé- ticos e os dos respetivos consumidores, constitui um dos principais fatores limitativos da concretização da estratégia norte-americana para a região. Deste modo não se des- cartam cenários tendentes à sua inviabilização através do minar das eventuais iniciativas

283 Que convidou para a Cimeira da SCO em 2012, tendo este aceite, muito embora não integre a organização. 284 Putin manifestou pela primeira vez essa disponibilidade em 2006 na Cimeira de Shangai da SCO, onde

também propôs a criação de um “Clube Energético” no seio da organização, dando prioridade uma vez mais a negociações diretas inter-governamentais.

que possam ser desenvolvidas nesse quadro, nomeadamente os sistemas de distribuição energética propostos pela Federação e tacitamente apoiados pela China, país que assim veria diversificado seu portfolio de importação energética e diminuiria a sua elevada depen- dência das rotas de trânsito através do Estreito de Malaca. A resposta norte-americana à aproximação russo-paquistanesa tem sido marcadamente de génese dual, em que a uma posição de força de Washington com o Paquistão se segue uma flexibilização quando a mesma sofre algum revés ou quando este país demonstra renitência no seu avanço. Con- tudo, determinados círculos do tradicional e mais forte apoiante da ligação paquistanesa ao Ocidente, a instituição militar paquistanesa, têm evoluído precisamente em sentido contrário, quiçá seguindo o “pulsar da rua”285, não sendo de descartar que futuramente

esta dinâmica se venha a acentuar, especialmente no cenário afegão pós-2014, e introdu- za um enorme fator de complexidade no relacionamento americano-paquistanês. Ainda assim, uma eventual saída do Paquistão da órbita norte-americana constituirá decerto um enorme revês na estratégia de Washington para a região, pelo que, não obstante o recente degradar do relacionamento bilateral, será decisivo o esforço no sentido da sua recuperação e estabilização.

No que concerne ao referencial geopolítico em torno da questão afegã, enquanto por um lado a Federação Russa tem apoiado de forma clara a missão internacional da ISAF, nomeadamente através da autorização do trânsito de material e equipamento não- -letal pelo seu território286, por outro garantiu recentemente no quadro da CSTO que os

respetivos Estados-Membros apenas autorizassem a instalação de bases militares no seu território por decisão consensual. Tal desiderato insere-se claramente num objetivo mais amplo – o de manter afastados da região atores externos, nomeadamente os EUA e em especial após a anunciada retirada destes do teatro afegão. Neste âmbito o Quirguistão, país onde os EUA possuem a base aérea de Manas287, poderá revelar-se o elo mais vulne-

rável nesse desiderato, dado que não possuindo recursos naturais em quantidade idêntica aos dos outros Estados da região, Moscovo será forçada a compensar o eventual fecho ou

downgrading daquela instalação militar num cenário afegão pós-2014, por forma a garantir

a inclusão do Quirguistão na consecução daquele objetivo. Neste âmbito a Federação po- derá ter igualmente de iniciar o pagamento de uma renda anual288 pela utilização da base

aérea de Kant que mantém no país, a maior de Moscovo na região, atualmente isenta por (alegadamente) se enquadrar no quadro da CSTO. Finalmente, no contexto securitário afegão haverá que contar igualmente com um ator cuja influência na região é já incon- tornável, a China, e que por tal razão tenderá apenas a integrar mecanismos de âmbito

285 Uma sondagem de meados de 2011 da Pew Global Attitudes Project revela que 74% da população pa- quistanesa “odeia” os EUA, tendo igualmente em muito baixa estima o presidente Obama. http://www. pewglobal.org/

286 Efetuado através da Northern Distribution Network (NDN). Saliente-se que os EUA pagam atualmente 60 milhões de USD à Federação, valor renegociado em 2009, altura em que se cifrava em 17 milhões de USD. Richard Weitz (2012).

287 Onde funciona o Manas Transit Center, de apoio à ISAF.

multilateral quando não lhe for possível o privilegiar da tipologia bilateral. Assim também sucede no Afeganistão, onde a China se constitui como o maior investidor e beneficiário da riqueza dos recursos do país, sem que contudo possua um único militar no terreno ou tenha apoiado financeiramente a sua estabilização securitária.