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constantes e circunstancialismos

4. A era Putin

4.2. Política externa

4.2.1. constantes e circunstancialismos

Com o final da URSS e durante o conturbado período que imediatamente se lhe seguiu, uma nova tipologia surgiu na política externa russa, sendo que a pró-atividade, antecipação e iniciativa estratégica que em grande parte marcou o período soviético, ra- pidamente se transformou com a sua implosão rápida numa tipologia iminentemente reativa, limitando-se assim genericamente a gerir a debilidade estratégica em que o país apresentava e a controlar os danos dela resultantes.

Com Putin, alavancado pela recuperação gradual da economia do país e estabilização política do regime, retomou-se de forma progressiva a tradicional assertividade e alguma capacidade de antecipação estratégica, porém com a Federação sempre colocada numa posição subalternizada, não obstante o especial estatuto de potência nuclear que manteve ou o veto que possui no Conselho de Segurança das Nações Unidas.

Atualmente, e independentemente da volatilidade do preço das matérias-primas, da manutenção da atual posição de relativa irrelevância da Europa enquanto unidade geopolí- tica, da eventual deterioração do sector económico norte-americano e a sua anunciada reo- rientação estratégica, ou da manutenção do crescimento do protagonismo chinês, afigura-se credível que o terceiro mandato presidencial de Putin, no que diz respeito à política externa e exercício da ação estratégica, possa vir a ser marcado por um aumento de assertividade e dureza de posições. Esta assertividade é aliás claramente assumida em entrevista211 de Sergei

210 International Crisis Group (2012).

211 Foreign Policy (2013). Nesta entrevista Lavrov afirma ainda que a reciprocidade, positiva ou negativa, é a chave e lei nas relações internacionais, permitindo à Federação Russa, entre outras, a prossecução de uma política externa independente.

Lavrov, atual Ministro dos Negócios Estrangeiros, onde afirma que no plano da política externa a “Rússia se sente mais assertiva, não agressiva, mas assertiva”, consequência de ter saído de uma situação (após a implosão da URSS) em que “... não possuía fronteiras, orça- mento, dinheiro (...) com grandes problemas (...) sendo atualmente um país muito diferente (...) podendo dar mais atenção aos seus legítimos interesses em áreas onde esteve ausente durante algum tempo (...) possuindo uma agenda muito mais alargada porque tem maior capacidade, especialmente económica”.

Tal atitude, se por um lado é já visível nos discursos oficiais ou nos documentos orien- tadores da política externa russa, na prática, e especialmente nas problemáticas em que é notório o desacordo russo, tem sido acompanhada por posições de clara oposição e crescente intransigência, especialmente visíveis nas críticas efetuadas à arquitetura e funcio- namento do sistema internacional e do respetivo no quadro de segurança e defesa global e regional, à atual ordem económico-financeira, ou ao quadro geoenergético global.

Considerando que ao longo do capítulo se efetuará progressivamente a análise secto- rial e pormenorizada da política externa russa, optou-se assim por abordar nesta fase as grandes linhas de ação e prioridades da política externa russa, as quais são essencialmente enquadradas por dois documentos oficiais: a Ordem Presidencial de Maio de 2012212, e o

Conceito da Política Externa da Federação Russa213, aprovado em Fevereiro de 2013. Da análise

de ambos são de relevar os seguintes aspectos:

Relativamente à arquitetura e funcionamento do sistema internacional e respetivo quadro de segurança e defesa global (e regional):

• É acentuado o papel central da Nações Unidas enquanto principal centro regulador das relações internacionais, não sem que seja preconizada a necessidade do aumento da eficiência do Conselho de Segurança das Nações Unidas, tornando-o mais representativo do atual sistema internacional, porém mantendo o estatuto dos membros permanentes;

• É acentuada a necessidade de emergência da multipolaridade e policentrismo do sistema internacional, assumindo-se contudo que tal processo encerre uma elevada complexidade, seja gerador de tensões e eventualmente acompanhado de confli- tualidade. Neste quadro, é considerado que os modelos de governação e formas de cooperação económica regionais em emergência constituem a base do futuro modelo policêntrico;

• A diplomacia de rede deverá substituir a abordagem centrada em blocos político- -militares, por forma a evitar o carácter unilateral que tem marcado algumas das recentes intervenções no sistema internacional;

• No que respeita à emergência de novos polos de poder, sendo considerado que o domínio ocidental continua a decrescer, é evidente a sua deslocalização para a Ásia, especialmente para a região da Ásia-Pacífico;

212 President of Russia Official Web Portal (2012).

213 Disponível em http://www.mid.ru/bdomp/brp_4.nsf/e78a48070f128a7b43256999005bcbb3/76389fec1 68189ed44257b2e0039b16d!OpenDocument. Consultado em janeiro 2013.

• Relativamente ao relacionamento com a NATO, organização que Lavrov consi- dera ter “perdido a razão da sua existência com o desaparecimento da URSS”214,

a dificuldade do mesmo não se coloca com a organização em si, mas sim com a pretensão desta em assumir um carácter e alcance global. Ainda assim, são assu- midas áreas de cooperação comuns, das quais resultam inclusivamente objetivos e interesses estratégicos também comuns. Quanto a qualquer expansão ou apro- ximação daquela organização às fronteiras da Federação, tal cenário é encarado e considerado como um “perigo”, e consequentemente um ato hostil;

• No que respeita à contenção das novas ameaças, é preconizado no quadro multila- teral a utilização ativa dos BRICS, G20, G8 e SCO nesse sentido, bem como para a promoção da política externa russa.

No que respeita ao sistema económico-financeiro:

• Considerando-se que os problemas financeiros de génese estrutural do Ocidente não foram resolvidos, é preconizada a criação de uma nova e mais democrática ar- quitetura financeira, comercial, monetária e económica equilibrada e democrática, sendo indispensável a necessidade de maior equilíbrio no sistema de comércio e financeiro global;

• Será fundamental o apoio da política externa na criação de condições para a pro- moção do crescimento económico interno, modernização da sua economia e integração da Federação no sistema económico global em situação de paridade, considerando-se necessária a minimização dos riscos associados à sua integração na economia global, incluindo os decorrentes da sua integração na Organização Mundial de Comércio;

• Estabelece-se como objetivo a consolidação da posição de Federação enquanto país de trânsito comercial e link económico entre a Europa e a região da Ásia Pacífico. No que se refere ao quadro geoenergético global:

• É preconizado e estabelecimento/fortalecimento de parcerias com os principais produtores energéticos, acompanhadas de um diálogo com os países consumidores e de trânsito por forma a garantir a segurança do abastecimento;

• É considerado fundamental o desenvolvimento e recurso a novas tecnologias na exploração de fontes de energia não convencionais, até agora inacessíveis ou eco- nomicamente não rentáveis.

Finalmente, no que concerne ao espaço pós-soviético, os processos de integração múltipla em curso representam prioridade máxima da política externa russa, designada- mente, no plano económico, a União Euro-asiática, e no quadro da segurança e defesa a CSTO. Nesta última, é considerado fundamental o seu fortalecimento, nomeadamente através do incremento da eficiência dos seus mecanismos de resposta, do seu potencial de

peacekeeping, bem como de uma maior coordenação da política externa entre os respetivos

Estados-Membros. Quanto aos conflitos pendentes ou “congelados”, é preconizada a resolução da questão da Transdniéstria e de Nagorno-Karabakh, sendo de relevar que

a Federação relativamente às Repúblicas da Abcázia e da Ossétia do Sul “promoverá o apoio ao seu desenvolvimento”, enquanto Estados independentes, o que indicia por par- te da Federação a intenção de tais territórios manterem o seu atual estatuto e não serem reintegrados na Geórgia.

Em suma, poder-se-ão identificar três grandes objetivos da atual política externa russa, encerrando uma grande interpenetração e interdependência entre si e em que se destacam:

• O favorecimento e apoio à emergência progressiva da multipolaridade estratégi- ca no sistema internacional, dado que tal resultará inevitavelmente na diminuição do atual unilateralismo norte-americano, constituindo-se as Nações Unidas, bem como todos os fora de génese multilateral, em que os BRIC parecem ter crescente importância para a Rússia, como os principais mecanismos de promoção e conse- cução deste objetivo; por outro lado, a dimensão bilateral que este encerra, cons- tituindo como que a outra face da moeda, é tida como complementar, sendo que neste quadro a China, comungando idêntico interesse, surge como parceiro privi- legiado, embora circunstancial;

• O fortalecimento da situação económica interna, tida como fundamental no apoio à crescente afirmação externa do país, alavancando assim a sua contínua recuperação e constituindo-se o vetor energético como instrumento prioritário nesse desiderato, havendo no entanto que promover um balanceamento adequa- do com a diversificação económica interna, uma equação complexa e de difícil concretização;

• A prioridade à reintegração do espaço pós-soviético na esfera de influência e de- pendência estratégica russa, constituindo-se a conjugação dos vetores económico e energético com o respetivo processo de integração como o seu principal meca- nismo de alavancagem.