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Capítulo 2 – O despertar do século IV

2.2 O gradual afastamento tebano da política lacedemónica

2.2.3 Áulis, bastião de jogos de poder

Ao cabo de dois anos, o findar do conflito na Élide proporcionou o robustecimento da autoridade lacedemónica no Peloponeso e, por consequência, do seu

status quo no mundo helénico34. As actividades circunspectas desenvolvidas em torno

de uma política pan-helénica (e não necessariamente anti-persa) que tinha vindo a ser fomentada desde o final da Guerra do Peloponeso, aliada a um dinamismo diplomático agressivo, conferia-lhe esse estatuto. Aliás, os acontecimentos que foram descritos até ao momento: a reorganização administrativa ateniense – sob o regime d’Os Trinta – e a segmentação da Élide, levantam suspeitas de actos premeditados e vestígios de uma estratégia ensaiada pelos círculos de poder lacedemónicos. Embora o sistema de

32 A proposta apresentada por Buck, que situa o stasiasmon tebano entre a stasis ateniense e a ocupação

do Oropo/ campanha elidense, ou seja entre o solstício de Inverno de 404 /403, encaixa nesta perspectiva. Vide Buck (1994) 28; Cook (1988) 83-84.

33 Vide Rhodes (2006) 245. A questão do Oropo levanta fortes dificuldades de datação. Sobre o assunto,

vide Buck (1994) 123-126.

34 Vide Perlman (1964) 74. A paz foi firmada com uma aliança entre os principais contendores, contudo,

tive um forte impacte na textura da polis elidense instituindo uma perda substancial de terra com o espartilhamento da região; cf. Xen. Hell. 3.2.30-31.

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dekadarchiai de Lisandro tenha sido abolido no Outono de 403, Esparta não estava,

efectivamente, disposta a abdicar dessa hegemonia35.

As autoridades cadmeias souberam gerir e manter uma orientação ambígua e até mesmo passiva aos acontecimentos exteriores à Beócia, sem romperem abertamente os elos que ainda unia os dois blocos, todavia, os contrastes e antagonismos foram diluindo cada vez mais para o oposicionismo evidente. A recuperação de Heracleia e a expugnação da população autóctone na região de Oetes (D.S. 14.38.4-5) pelos Lacedemónios, em 400/399, ocasionou natural apreensão na cidade de Cadmo36. No entanto, será nos anos de 397 e 396 que as conformidades entre Tebas e Esparta – ocas e fortemente deterioradas – atingem o seu limiar.

A ascensão de Agesilau ao trono lacedemónico, sucedendo a Ágis, pela casa dos Euripôntidas, contribuiu para a revigoração das linhas do projecto asiático37. Perceptor da directriz hegemónica lacónica e associado ao grupo de Lisandro, a campanha asiática movida pelo novo rei, concedia-lhe o móbil ideal para a sua afirmação perante a casta aristocrática (e guerreira) lacedemónica, depois da polémica envolta na investidura em disputa com Leotíquides, filho de Ágis38. Recorrendo ao tradicional método de requisição dos aliados, Aristomelidas, provavelmente proxeno dos Tebanos39, é delegado para Tebas a fim de averiguar se estes se juntariam à empresa na libertação da Jónia. A proposta foi, evidentemente, recusada. O círculo de Isménias e Androclides estava, por esta altura, cimentado no poder e a sua influência nas boulai locais e junto dos Beócios estaria guarnecida. Será presumível julgar-se que as boas relações de Aristomelidas com os Tebanos se resumissem, essencialmente, à facção de Leoncíades e Coerítadas. Não obstante, os Lacedemónios estavam, aparentemente, dispostos a beneficiar da integração de forças beócias no exército pan-helénico que partiria para o Oriente40.

Depois de reunidos os aliados e cumpridas diligências e formalidades locais para a campanha militar na Ásia Menor, Agesilau reuniu as forças expedicionárias em

35 Cf. Xen. Hell. 3.4.2; vide Parke (1930) 52; Perlman (1964) 73-74

36 Os Lacedemónios terão também tomado Farsalo por esta altura, o que lhes conferia uma forte

influência na região central da Hélade e no sul da Tessália (cf. D.S. 14.82.6). Vide Seager (2006) 97; Perlman (1964) 75; Cook (1988) 84.

37 Cf. Xen. Hell.3.4.2; vide Cawkwell (1976) 66; Perlman (1964) 77.

38 Agesilau era filho de Arquidamo em segundas núpcias, ou seja, meio-irmão de Ágis. Sobre a ascensão

de Agesilau ao trono, cf. Xen. Hell.3.3.1-4; Ages. 1.5; Plut. Ages. 3.

39 Segundo Pausânias (3.9.3), os elos entre Aristomelidas e Tebas remontavam à rendição dos Plateenses,

em 427; vide Buck (1994) 29.

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Geresto, na Eubeia, em 396. Porém, antes de partir para Éfeso, Agesilau deslocou-se numa trirreme com alguns dos seus companheiros mais próximos a Áulis, no território beócio, para a realização de sacrifícios e libações beneficentes. A ocorrência não é inócua, nem acessória. Trata-se do pináculo da política pan-helénica, licitamente sustentada na campanha asiática contra o ancestral inimigo grego – o Persa. Do simbolismo de Áulis – estandarte das epopeias homéricas, do ciclo épico troiano e da tragédia ática – ressoam ecos da época micénica, onde Agamémnon sacrificou a sua filha, Ifigénia, para obter o favorecimento de Ártemis. Os analogismos são claros e será pertinente reflectir no passo de Plutarco (Ages. 6.4.), que projecta a campanha para uma dimensão divinizada e heróica. Foi através de sonhos que Agesilau ficou ciente do seu destino e pretendia selá-lo em Áulis, na qualidade de comandante supremo dos Helenos. O relato transmite uma predominante linguagem ideológica e de poder, que legitima as ambições do rei lacedemónio. O biógrafo menciona ainda que Agesilau escolheu o seu próprio mantis41 para a realização das libações, em detrimento dos vaticinadores locais nomeados pelos representantes beócios para o efeito, prática que ia em contrário aos costumes da Beócia (Plut. Ages. 6.6).

Ao tomarem conhecimento da conduta de Agesilau, os beotarchai enviaram oficiais de menor gabarito, impedindo-o de continuar os sacrifícios (Xen. Hell. 3.4.4). O acto consistiu num severo golpe na reivindicação pan-helénica de Agesilau e, embora Plutarco justifique a intervenção dos oficiais beócios, fundamentado na transgressão de Agesilau da patria boiotios, tais argumentos não deixam de transparecer uma certa relatividade tendo em conta a dimensão política do assunto. A ordem terá certamente partido da boule dos Beócios42 mas a ausência dos beotarchas é igualmente significativa. O despacho de oficiais menores para lidarem com as acções de Agesilau, prenunciou o desdenhar e o desprezo do grupo dirigente tebano das reclamações expansionistas lacedemónicas. Com este acto de hostilidade directa, os Beócios tinham deixado gravada a sua posição perante a política despótica de Esparta.