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Capítulo 6 – Na rota de Leuctros

6.5 A Paz de Cálias – 371

À semelhança da descrição das Hélenicas sobre a Paz de 375, Xenofonte refugia-se nas divergências no eixo tebano-ático como causa-efeito para a subscrição de um novo armistício, omitindo as valências político-económicas da guerra na frente ocidental helénica. Tal como em 375, a questão tebana teve, de facto, o seu impacte para a reaproximação diplomática entre Atenas e Esparta. Mas, em 371, os Atenienses

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compreendiam que apenas a validação de um novo tratado poderia limitar, de vez, a acção de Tebas na Beócia.

Realizada em Esparta, a convenção de Paz decorreu com o aval da autoridade Susa, cujo papel foi de novo predominante na arbitragem das questões helénicas, e com a participação massiva de diversas entidades integradas nas simaquias do Peloponeso e do Sinédrio Comum40. Tebas acedeu, igualmente, ao chamamento da Paz, com o despacho de um corpus diplomático. Entre os emissários tebanos achava-se Epaminondas, recentemente nomeado beotarcha41, o futuro arquitecto de Leuctros e da hegemonia tebana da década de 60. Num período de maior azedume e de indefinições nas conformidades com Atenas, Hack alega que a presença da delegação tebana se insere na tentativa da Cadmeia em legitimar o sistema político e reivindicar as suas pretensões na Beócia42. Nesta matéria, a cidade de Cadmo partia isolada para as negociações. Além do que foi anteriormente afirmado (vide supra 6.4.2), esta premissa é recalcada por dois dos três discursos dos emissários atenienses, reproduzidos por Xenofonte: Cálias focou, essencialmente, a opinião mútua dos Lacedemónios e Atenienses, quanto ao destino de Plateias e Téspias (Hell. 6.3.4-6); Autocles imputou responsabilidades à atitude agressiva de Esparta, por ocasião da tomada da Cadmeia, em 382, e à incoerência da sua política externa perante a cláusula de autonomia (Hell.6.3.7- 10); Calístrato, por fim, apontou também para os erros e inconsistências da Machtpolitik lacónica, nomeadamente para com Tebas, mas apelou para o carácter urgente de se criar condições para uma atmosfera concertadora helénica (Hell. 6.3.11-17). A tónica de se firmar a Paz Comum é reforçada nas três exposições. No entanto, Calístrato salienta que a conciliação devia ser construída com base no princípio de partilha de poderes da hegemonia helénica entre Atenas e Esparta, com ambos a assumirem a prostasia, conforme havia sido estipulado em 375 (vide supra 6.3). O discurso de Calístrato seria, efectivamente, o elóquio da Paz e nele não havia lugar para a ascensão de uma terceira esfera reivindicativa.

A Paz de 371, ou Paz de Cálias, foi sic et simpliciter a revalidação da Paz de Antálcidas: retirar os harmostas de poleis externas, dissolver os exércitos, tanto terrestres como navais e deixar as poleis autónomas. A estas foi acrescida uma cláusula inovadora, embora ambígua, que permitia penalizar militarmente os infractores da Paz,

40 D.S. 15.50.4; Xen. Hell. 6.2.3; Plut. Ages. 27.3. A participação aqueménida é igualmente corroborada

por Xenofonte, cf. Hell. 6.2.12; Vide Cawkwell (1972) 258.

41 Em 372/371. Vide James (1980) 30. 42 Vide Hack (1975) 179-180.

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mas libertava de obrigações todos os que se quisessem manter à margem da expedição punitiva (Xen. Hell. 6.3.18). Conforme tem sido observado pela maioria dos comentadores, este último parâmetro providenciava a imparcialidade de Atenas em eventuais confrontos de Esparta com outras poleis, gizando o caso particular de Tebas43. Não obstante, os acordos foram jurados individualmente pelas autoridades helénicas presentes na conferência, inclusive os emissários tebanos, que subscreveram os acordos na qualidade de «Tebanos».

Segundo Xenofonte, a delegação diplomática tebana apresentou-se no dia seguinte para corrigir o topónimo assinado, de «Tebanos» para «Beócios», tendo o requerimento sido prontamente rejeitado por Agesilau (Hell. 6.3.19). O testemunho de Plutarco talvez elucide essa súbita mudança de atitude dos diplomatas:

Um desses embaixadores (dos Tebanos) era Epaminondas, um homem de reputação na cultura (paideia) e filosofia, apesar de não ter dado ainda provas de comando (strategia). Este homem, ao ver que todos se retraíam perante Agesilau, teve coragem de patentear as suas convicções e fez um discurso, não em nome de Tebas, a sua cidade natal, mas em nome de todos os Helenos, declarando que a guerra fez de Esparta grande à custa dos sofrimentos de todas as outras poleis, e insistiu para que a Paz fosse em termos de igualdade e justiça, pois, duraria apenas quando todas as partes fossem tratadas como iguais. Agesilau, segundo se diz, ao ver que todos os Helenos ouviam Epaminondas com atenção e admiração, perguntou-lhe se considerava justo e igualitário que todas as poleis da Beócia fossem autónomas de Tebas. Então, quando Epaminondas lhe respondeu corajosamente em resposta, se ele também achava justo que as poleis da Lacónia fossem autónomas de Esparta, Agesilau levantou-se da cadeira e furioso ordenou-lhe que dissesse claramente se pretendia fazer das poleis beócias autónomas. Quando Epaminondas lhe respondeu, novamente, da mesma forma, perguntando se pretendia fazer das poleis da Lacónia autónomas, Agesilau tornou-se violento e alegrou- se com o pretexto para remover o nome dos Tebanos do tratado e declarou guerra contra eles (Ages. 27.4-28.2).

A intervenção de Epaminondas frisa o definitivo esforço reivindicativo de Tebas em legitimar a soberania da synteleia tebana, perante as comunidades helénicas, estabelecendo, para o efeito, analogias entre a situação política regional da Lacónia e da

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Beócia44. A confrontação de padrões de ambos os sistemas organizativos foi eficaz, embora outros exemplos pudessem ser empolados pelo estadista tebano. Xenofonte comenta que a subscrição da Paz pelos Peloponésios ficou a cargo exclusivo das autoridades lacedemónicas, enquanto líderes da simaquia do Peloponeso, pondo em causa a determinação moral da cláusula de autonomia (cf. Hell. 6.3.19). Contudo, apesar de Esparta tratar a simaquia como um braço extensível ao seu poder na região, a simaquia do Peloponeso era somente uma aliança que unia diversas entidades autónomas do espaço peloponésico, encadeadas em objectivos comuns. Por outro lado, o facto de Epaminondas se circunscrever concretamente à Lacónia, não só comprovava o seu ponto de vista, como colidia directamente com os interesses de Esparta. Tal como os Tebanos, os Lacedemónios dependiam de uma plataforma primária, através da subjugação de núcleos territoriais circunjacentes, para assegurarem o seu poder local/ regional.

Quanto às causas que levaram os diplomatas tebanos a firmarem posições no dia seguinte à assinatura do tratado, estas são difusas e conjecturais. Hack sugere que os emissários tebanos reconheciam os ditames da Paz da mesma maneira que as autoridades lacedemónicas. Ou seja, se Esparta jurou os protocolos na qualidade de «Lacedemónios», englobando no topónimo os restantes aliados Peloponésios, então Tebas podia assinar como «Tebanos», abrangendo desta forma, as restantes poleis beócias sob a sua dependência. Outra hipótese levantada pelo mesmo historiador é a presença de agentes beócios, externos à synteleia tebana, no conclave a reclamarem pela sua autonomia, sobretudo, os Orcoménios e os expatriados Plateenses e Téspios, que se fixaram em Atenas45. As propostas são coerentes mas paradoxais quando confrontadas com o testemunho de Xenofonte, que nos dizem, explicitamente, que o corpo diplomático tebano contestou apenas no dia seguinte e não no próprio dia dos juramentos da Paz. Por seu turno, Seager propõe uma hipótese mais sólida. Segundo o mesmo, a alteração de ânimos dos embaixadores tebanos deveu-se a divergências internas46, cujas repercussões se podiam alongar às disputas políticas na politeia tebana. O possível diferendo no fulcro do corpus diplomático não foi, de todo, singular e, de acordo com as fontes, a situação repetiu-se pouco antes da batalha de Leuctros com a

44 A região da Lacónia era constituída politicamente por territórios “vizinhos” (periokos), em torno e

subjugados a Esparta, cujos habitantes não tinham qualquer força política. De resto, o passo do biógrafo encontra paralelismos na obra de Pausânias (cf. 9.13.2) e Cornélio Nepos (cf. Epam. 6.4).

45 Vide Hack (1975) 183-184 (e respectiva nota n. 103) 46 Vide Seager (2006) 181.

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divisão de opiniões na cadeia de comandos tebana (vide infra 6.6). Epaminondas não agiu isolado mas, tal como ocorreria em Leuctros, teve a capacidade para gerir as emoções e pareceres dos restantes emissários tebanos, a fim de cativar a maioria dos membros, que lhe dariam legitimidade para enfrentar Agesilau.

É evidente que o tratado foi cinzelado em equidade dos interesses do Peloponeso e da Ática, reassumindo a óptica de “quebra-blocos”, e de modo a extinguir potenciais ameaças a essa soberania política. A reacção de Agesilau aos argumentos de Epaminondas serve para acentuar esses mesmos cânones e, mais uma vez, Tebas teve de se debater entre a prostração a Esparta e a extinção da unidade beócia ou a resistência face ao perigo externo. Quanto a isso, Epaminondas já tinha dado a resposta. Excluída do tratado e catalogada de «inimigos comuns», os Tebanos teriam de passar a derradeira prova de fogo pela sobrevivência e autonomia no teatro de Leuctros.