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Capítulo 6 – Na rota de Leuctros

6.3 Tebas e a Paz de 375

O heróico triunfo tebano alcançado no campo de Tégiras ressoou no espírito da Cadmeia. Porém, o desfecho da batalha não procedeu a consequências político- estratégicas estruturantes nas directivas de poder de Tebas no norte da Beócia e na Fócida. Os espaços setentrionais tinham-se tornado fortemente militarizados, velados por Cleômbroto e um massivo exército peloponésico, distribuído por praças raianas, limítrofes à esfera da cidade de Cadmo. Perante os sintomas de uma possível invasão da Beócia, as autoridades cadmeias foram forçadas a concentrar esforços e mobilizar forças para os recintos passíveis a maior risco, tecendo uma vasta rede defensiva extensível ao território aliado da Lócride Opúncia. A intromissão de Esparta, na Hélade central, paralisou a investida tebana de estender o seu domínio para essas áreas. No entanto, a segunda metade de 375 abrira uma janela a negociações e aproximações para a Paz20. Xenofonte sintetiza:

Pois bem, os Lacedemónios e seus aliados se congregaram à chamada dos Focenses, enquanto os Tebanos, depois de se retirarem para o seu próprio território, vigiavam os

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acessos. Quanto aos Atenienses, ao repararem que graças a eles os Tebanos prosperavam e, em troca, não forneciam dinheiro para a frota, enquanto eles se esgotavam por culpa das contribuições em dinheiro, da pirataria de Egina e da vigilância do território, lhes entrou o desejo de que se acabara a guerra, pelo que enviaram embaixadores à Lacedemónia e fizeram a paz (Hell. 6.2.1).

Apesar do êxito ateniense na Trácia e nas campanhas navais na orla oriental do Mar Jónio, Atenas ressentiu-se do elevado peso no custeamento bélico e na manutenção da frente ocidental contra Esparta21. A descoordenação no eixo Cadmeia-Pnix foi, conforme especifica Xenofonte, a causa-primária para o desequilíbrio orçamental nas contas atenienses e que empurraria a cidade de Palas a procurar o entendimento com o Peloponeso. O desajuste estratégico entre Tebas e Atenas é perceptível e resultou, essencialmente, dos contrastes político-culturais e das directrizes que cada uma das

poleis projectava nos dois palcos da guerra: os Tebanos prosseguiam com os objectivos

de estender o seu domínio a todo o espaço beócio e com fins a disciplinar a Fócida, ao passo que os Atenienses avultavam na actividade marítima, como procedente a estender as malhas do Sinédrio Comum. As disparidades de ambas as linhas estratégicas deixam latente a “anomalia” visceral que a cidade de Cadmo retratava no código genético do Sinédrio Comum, cujos propósitos da simaquia se fundiam com os de Atenas. A

Machtpolitik tebana estilizava os defeitos na imagem, nos princípios fundadores do

Sinédrio Comum – o decreto de Aristóteles – e na nova aura ateniense, distante dos vestígios hegemónicos do século V. Não obstante, os indicadores de erosão na parceria tebano-ática não devem ser interpretados como princípios de ruptura. Atenas continuava dependente do ónus geoestratégico de Tebas, no controlo da fronteira terrestre da Ática e do elo cadmeu no funcionalismo do Sinédrio Comum22.

A fragilidade financeira ateniense, decorrente da falta de apoio de Tebas, foi, por conseguinte, o factor fulcral para que Atenas tomasse a iniciativa em negociar a Paz com Esparta. Todavia, o passo de Xenofonte dissimula, talvez propositadamente, as debilidades conjunturais que a simaquia do Peloponeso enfrentava e que se reflectiriam nos contornos do armistício.

21 O combate ao bloqueio marítimo peloponésico, do qual resulta a batalha de Naxos, o périplo ao

Peloponeso e a actividade nas regiões em torno do mar Jónico, em particular, no Epiro e Corcira.

22 As fontes atestam a integração de embarcações tebanas na frota comandada por Timóteo, em 373 (cf.

[Dem.] 49.16) e a nomeação de um tebano no corpus dirigente do Sinédrio Comum, em 373/372. Sobre o assunto vide Rhodes (2006) 235; 250; Seager (2006) 171.

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A fugaz descrição de Xenofonte, sobre os eventos diplomáticos que conduziram à Paz de 375, quase nos passaria despercebida não fosse o testemunho de Diodoro, sob a tradição de Éforo. Ao contrário das Helénicas, o historiador sículo diz-nos que o novo tratado foi forjado em prol dos interesses aqueménidas, na tentativa de aliciar helenos para o conflito contra o Egipto (cf. 15.38.1). A presença de emissários persas é, aparentemente, segura23, mas não há dúvida de que os conteúdos do pacto seguiam a ortodoxia imposta em 387, com a cláusula de autonomia a despontar, de novo, numa posição central (D.S. 15.38.2; Isoc. 14.10). Dentro desse âmbito, os termos previam a desmobilização de guarnições estrangeiras, presentes em outras poleis; Atenas ordenaria a retirada da força naval sediada na Corcira e em outras bases ocidentais (Xen. Hell. 6.2.2) e Esparta seguiria o mesmo processo, com o recesso de contingentes peloponésicos fora do Peloponeso. A conduta das autoridades lacedemónicas foi em respeito aos acordos assinados com a cidade de Palas e não o reconhecimento declarado da «Beócia», enquanto entidade política soberana, como tem sido sugerido24. As tropas peloponésicas na Fócida, Orcómeno, Téspias, Plateias e Tânagra exerciam, nesta etapa, a função de praças-fortes ao impulso aglutinador da Cadmeia e de subsistência da jurisdição lacedemónica na região. Porém, é inegável que o status quo lacónico nas áreas meridionais da Beócia constituía uma ameaça localizada ao espaço ático. O incidente de Esfódrias deixara cicatrizes na memória colectiva de Atenas, que não estaria disposta a se expor novamente ao risco25. Decerto que a evacuação das forças peloponésicas agradaria também a Tebas, mas, aos olhos das autoridades atenienses, era sinal de alívio na linha de fronteira.

Do desfecho das negociações importa ainda salientar o modus operandi que se instituiu entre Esparta e Atenas, com a repartição da hegemonia pelas duas potências helénicas (D.S. 15.38.4; Isoc. 15.109-110). A cidade de Palas saíra, incontestavelmente, com a autoridade reforçada ao assumir o domínio dos mares. Mas o princípio de equilíbrio e distribuição de poderes por ambas as esferas sugeria ainda um outro sintoma que se tornava cada vez mais evidente: o ocaso da supremacia de Esparta na Hélade.

A subscrição da Paz de 375 tem, no entanto, suscitado questões prementes sobre o impacte real da autonomia no cenário jurídico beócio. Na prática, a renovação dos

23 Vide Buck (1994) 102; Seager (2006) 176. 24 Vide Hack (1975) 140 (e respectiva nota n. 95).

25 Xenofonte aponta que a acção de Esfódrias, em 378, fora um das razões para que os Atenienses

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votos, nos termos simétricos aos de 387, colidia com as pretensões político-regionais tebanas e prognosticava, à partida, a dissolução do aparelho tributário tutelado por Tebas. Parte dessa dificuldade advém, principalmente, da leitura e análise de Diodoro (15.38.3). A alegada resistência tebana aos acordos da Paz e o duelo de palavras entre Epaminondas e Calístrato, descritos pelo historiador sículo, integram o contexto cronológico de 371, aquando as negociações da Paz de Cálias e, como tal, não se ajustam na conjuntura de 375. Esta tese tem sido amplamente difundida pela historiografia, ancorada nos lapsos de coerência discursiva da obra de Diodoro26, mas os comentadores têm falhado na missão de clarificar a posição de Tebas perante Esparta. A questão tebana merece, naturalmente, algum tacto, contudo, não deve ser sobrevalorizada no painel da Paz.

Na verdade, as circunstâncias políticas e económicas asseguraram a continuidade da plataforma cadmeia. Esparta estava desgastada pela guerra, acossada pela actividade marítima ateniense na orla ocidental do Peloponeso e pelos custos de manutenção do exército de Cleômbroto na Fócida. Apesar do ónus da frente peloponésica na região central helénica, um tampão para obstruir a disseminação da influência tebana para essas áreas, a sua sobrevivência era cada vez mais ténue, como, aliás, demonstrou a batalha de Tégira. A par da pressão tebana, a crescente pressão de Feras na Tessália, ameaçava criar um anel hostil sobre a Fócida. Em 375, Jasão de Feras era, seguramente, aliado de Tebas, e uma eventual acção militar de Feras em concertação com a Cadmeia poderia encurralar ou suprimir a presença lacedemónica no território27. Por outro lado, a prioridade de Esparta era, sem dúvida, o ocidente, de modo a garantir a estabilidade de sua zona de conforto. A concepção de pólos satélites por Atenas, com a aticização da Corcira ou dos territórios circundantes, anexos ao Mar Jónio, não só constrangeriam os movimentos dos Lacedemónios na sua esfera de poder, como também colocariam em perigo as linhas de comunicação e abastecimento humano e logístico com o aliado sículo – Siracusa. A Paz veio aliviar o aperto que Esparta sentia das operações militares atenienses, junto ao Peloponeso e a Beócia não encabeçava, seguramente, a lista de inquietações dos Lacedemónios.

26 Vide Cawkwell (1972) 257; Hammond (2000) 90; Rhodes (2006) 249; Buck (1994) 102-103; Hack,

contudo, aceita o passo de Diodoro mas rejeita o testemunho da obra Plataicus, de Isócrates, vide Hack (1975) 127-141.

27 Cf. Xen. Hell. 6.1.10. Vide Hack (1978) 173. Sobre a aliança de Tebas com Feras, vide Pascual (1991)

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A cidade de Cadmo surgiu, portanto, num plano secundário da Paz, na qualidade de membro do Sinédrio Comum, subalternizado e gozando do apoio sustentável do governo ateniense. Porém, as raias protocolares permitiram a Atenas instrumentalizar a acção tebana, amenizando o ímpeto de Tebas na Beócia28. A resolução ateniense visava dois aspectos em particular: por um lado, evitar criar atritos entre ambas as poleis vizinhas e a consequente perda do seu maior aliado e, por outro, monitorizar as movimentações de Tebas, precavendo-se do surgimento de um bloco tebano que contestasse o poder ateniense no centro do Sinédrio Comum. As autoridades tebanas teriam, com efeito, poucas razões que justificassem o reconhecimento de um pacto que pudesse trazer severas implicações na orgânica política interna ou que limitassem o seu poder. Não obstante as possíveis reticências da Cadmeia, o enquadramento de Tebas, provavelmente como «Tebanos», na Paz de 375, é um dado sólido (Isoc. 14.10).