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3 LINHAS TRANSGÊNEROS OU A MONTAGEM COMO RITUAL E SUAS

3.8 Ávila ou Laviny Woitilla

Ávila, jovem transgênero que, em Fortaleza, goza da fama de humilde embora já tenha conquistado títulos em importantes concursos trans, além de ter também a fama de belo tanto como simpático, quando ―se montava‖ vivia a Laviny Woitilla. Esse sobrenome igual ao do chefe supremo da igreja católica romana não é mera coincidência.

O Laviny era o sobrenome de um amigo meu que eu uso como nome. O Woitilla é o sobrenome do papa João Paulo II, Karol Woitilla. Eu tava no carona do carro com uns amigos, e, no meio da brincadeira, o povo começou a falar do papa, aí, alguém disse que ele era vê uma drag por causa daquelas indumentárias luxuosas e nada discretas que ele usa. Aí, esse povo começou a me chamar de Woitilla. Eu até precisava mesmo de um sobrenome. Não quis ser filha de nenhuma trans e só tinha um nome feminino. Agora, sou Laviny Woitilla e amo esse nome.

[Ávila/Laviny Woitilla, entrevistado(a) em agosto de 2005]

Para Ávila, que por alguns anos desempenhou o trabalho de ator, a Laviny surgia como uma personagem à diferença daquelas personagens que ele costumava apresentar nos palcos dos teatros. Assim mesmo, Ávila concebia sua personagem, Laviny, como sendo uma artista. A drag e o transformista ao invocar a noção de personagem do teatro clássico para pensar a existência das personagens da montagem se valem disso para nomear a si mesmos como artistas. Essa

nomeação reitera a matriz da arte de nossas sociedades à medida que esta reconhece o teatro como arte.

Embora drags e transformistas saibam que suas personagens não são originalmente personagens da convenção teatral essas pessoas ao usarem tal convenção para representarem suas identidades tornam-se seres que avizinham suas vidas com uma arte estabelecida, a dramaturgia. E como vimos ao longo deste trabalho essa não é a única vizinhança da montagem com alguma arte. A relação das drags e transformistas com técnicas de dança, de pintura e collage também acabam por fazerem essas pessoas se perceberem como artistas. Não nos esqueçamos que, de maneira geral, a dança é uma arte estabelecida desde os tempos da antiguidade grego-romana e que pintura e collage são técnicas de outra arte estabelecida, as artes plásticas. Contudo, é interessante observar como Ávila ao viver Laviny comparava esse viver a uma temporada de peça teatral.

Adoro o mundo do transformismo, e sonho um dia virar trans completa, possuir seios de carne e tudo mais de mulher. Só não vou cair na besteira de destruir meu corpo com silicone de bombadeira e medicamentos duvidosos. Quero tudo no luxo! Me tornar mulher com o aparato de uma boa clínica. Para se vestir bem, andar bem maquiada, eu só preciso de um pouco mais de dinheiro. Comprar um corpo feminino custa mais caro, e estou trabalhando para isso. [...]. Não há mais tantos problemas com a minha família. Meu irmão sempre foi meu cúmplice para tudo na vida, e mesmo meus pais que não queriam que eu fosse assim, hoje, me apóiam, me respeitam, e isso, para mim, é muito importante. [...]. Eu adoro me ver e me sentir montada, porque você montada sente que é outra pessoa, que está mais livre. A sensação de estar montada, para mim, é maravilhosa, eu sei que sou eu, Ávila, mas também sou Laviny. E, um dia, serei mais a minha personagem. Irei de transformista a travesti. [...] o desmontar, para mim, lembra quando as cortinas do teatro se encerram, a personagem acaba ali para voltar numa outra abertura,

caso tenha outra temporada. Quando se monto, é mais uma abertura para qual estou me preparando e sem a preocupação de convencer nenhum público do que sou, só de ser eu mesma, a mesma que vive em mim e que sou eu. [Ávila/Laviny Woitilla, entrevistado(a) em agosto de 2005]

Ávila deseja ―comprar" um corpo para si, montar uma sexualidade outra. Subjetividade e tecnologia estão aqui imbricadas, formando uma rede em que circula sentimentos e matérias. Há nisso o desejo de passar de um tipo de montagem para outra, deixando o corpo sempre sob experimentação. Mas o desejo não está livre dos códigos, e os enunciados logo aparecem para definir essa passagem como ―de transformista a travesti‖. O corpo, as ações e as paixões de Ávila são tomados em agenciamentos e o agenciamento coletivo de enunciação logo estratifica esse corpo, suas ações e paixões. Surge assim o Ávila transformista, o Ávila homossexual, o Ávila que é intérprete, etc. Estamos mais uma vez diante do mundo codificado da montagem.

A busca de um mundo significante por parte dos transgêneros, onde eles se agarram a uma identidade, não pode ser negligenciada em uma análise antropológica ou sociológica simplesmente porque essas pessoas também têm possibilidade de devir. Não podemos louvar os estratos e nos esquecer dos devires, tampouco fazer o inverso, ou seja, dedicar-se somente ao a-significante de tal experiência, negligenciando o mundo molar da mesma. O olhar cartográfico nos ensina a trabalhar com os três tipos de linhas. Demonizar o molar, excluir da análise os modelos que uma experiência nativa cria ou está a eles submetida, é tão ingênuo quanto reduzir essa realidade a uma vontade de esquadrinhar, demarcar, fazer o outro constantemente significar, ser algo inteligível, representável.

O pior não é permanecer estratificado — organizado, significado, sujeitado — mas precipitar os estratos numa queda suicida ou demente, que os faz recair sobre nós, mais pesados do que nunca. Eis então o que seria necessário fazer: instalar-se sobre um estrato, experimentar as oportunidades que ele nos oferece, buscar aí um lugar favorável, eventuais movimentos de desterritorialização, linhas de fuga possíveis, vivenciá-las, assegurar aqui e ali conjunções de fluxos, experimentar segmento por segmento dos contínuos de intensidades, ter sempre um pequeno pedaço de uma nova terra. É seguindo uma relação meticulosa com os estratos que se consegue

liberar as linhas de fuga, fazer passar e fugir os fluxos conjugados (DELEUZE; GUATTARI, 1996, p.23-24).

Os ritos de iniciação à montagem, na forma como estão sendo apresentados, caracterizam o meu intuito de serem exibidos no que há de mais estratificado assim como liminar. Ávila, bem como outros transformistas e drags, se agarra em uma ideia de personagem para tornar representável sua existência outra. A análise ritual entra nesse jogo nativo, intérprete e personagem, procurando compreender que signos estão em funcionamento e como agem. Continuemos o movimento por linhas transgêneros.

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