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3 LINHAS TRANSGÊNEROS OU A MONTAGEM COMO RITUAL E SUAS

3.5 Josué ou Jéssica

Desde criança é como tivesse algo errado comigo. Eu, quando menino, já me sentia feminina. Nunca me identifiquei com a maioria das coisas relacionadas ao universo masculino. Nunca gostei de roupas de homem nem de namorar garotas. Eu nasci com o sexo errado. Fui uma menina presa num corpo de menino. Só eu e a minha família sabem como sofri com isso. A minha sorte é que meus pais são pessoas esclarecidas, são pessoas sem preconceitos sexuais. Sou de uma família de classe média. Meu pai é artista plástico, e minha mãe é psicóloga. Foi minha mãe que logo percebeu que eu era transexual. Quando eu tinha 10 anos, ela me levou para um médico, clínico geral, e para um

psicanalista. Todos dois disseram que era muito cedo para afirmarem alguma coisa. Eles alegaram que eu precisava passar pela adolescência para poderem avaliar melhor meu caso. Quando fui ficando adolescente, meu sofrimento foi aumentando. Eu fui criando pelos, engrossando a voz, desenvolvendo músculos e eu odiava tudo isso. Cansei aos meus 13, 14, e 15 anos de chorar nua na frente do espelho. A vontade que eu tinha era de arrancar meu pênis e meus testículos com as próprias mãos. Para mim, essas partes do meu antigo corpo não serviam para quase nada. Meu pênis só servia mesmo pra fazer xixi. Quando eu tinha pênis, nunca olhei para um homem e senti ereção. Com 14 anos, eu já desejava homens, mas não tinha ereção alguma. Minha primeira relação sexual foi aos 17 anos. Eu fiz sexo anal com um garoto, dois anos mais velho que eu. Só que eu queria mesmo é ser penetrada pela frente. Odiei fazer sexo anal. Não sou nem nunca fui gay. Sou mulher e é assim que sempre quis ser tratada. Com 16 anos, resolvi usar tudo de mulher. A minha família apoiou todas as minhas decisões. Lembro como se fosse hoje quando eu e a minha mãe fomos pela primeira vez comprar roupas e sapatos femininos juntas. Os vendedores ficavam passados em ver eu experimentando vestidos, saias, sapatos de saltos. Nesse dia, a minha mãe ainda me levou pra um salão de beleza. Lá eu pintei o cabelo e as unhas, fiz depilação e limpeza de pele. Quando cheguei em casa, peguei todas as minhas antigas roupas e mandei tudo para uns primos meus. Foi assim que começou a minha montagem. Com 16 anos, passei andar bem feminina. Só que paguei caro por isso. Muita gente não só me condenou como condenou meus pais. Mas segui em frente nas minhas decisões e, aos 18 anos, decidi que era mais do que na hora de fazer a cirurgia de mudança de sexo, a tal da transgenitalização. Só que tinha um problema: nessa época,

essa cirurgia não era legalizada aqui no Brasil. Eu acabei me submetendo a essa cirurgia quatro anos depois. Fui operada nos Estados Unidos na cidade de Trinidad. Mas, antes de viajar pra lá, tomei muito hormônios por uns três anos seguidos. Eu conseguia esses hormônios de modo ilegal. Tudo começou quando um dia eu fui numa clínica hospitalar para me consultar. Na sala de espera, onde fiquei, havia duas travestis. Uma tava de acompanhante da outra, que pretendia fazer uma cirurgia no nariz. Eu ia me consultar, porque ia fazer e fiz uma cirurgia de redução do maxilar. Durante o período de espera, eu fui puxando conversa com as travestis. Aí, eu perguntei se elas tinham como vender alguns hormônios. Pois, se eu chegar pra algum médico e pedir, ele não vai me dá, né? Aí, a Tâmyla, que era uma das travestis, disse que ia me arranjar uns hormônios. Durante três anos, comprei hormônios arranjados pela Tâmyla, que até hoje é minha amiga. Devo grande parte da minhas formas corporais femininas à Tâmyla.

[Josué/Jéssica, entrevistado(a) em janeiro de 2005]

A cidade de Trinidad, onde Jéssica foi operada, localiza-se no Estado do Colorado (EUA) e há várias décadas se tornou um grande centro de referência para transexuais. Trinidad possui clínicas/hospitais pioneiros nas cirurgias para essas pessoas. Essas cirurgias também são conhecidas como adequação ou mudança de sexo. No Brasil, a primeira transgenitalização foi realizada, em 1971, pelo doutor Roberto Farina. ―O exercício desse pioneirismo custou-lhe um processo criminal e outro no conselho de medicina, tendo sido considerado culpado em primeira instância nos dois casos, preso e tido seu direito ao exercício da medicina cassado‖ (COUTO, 1999, p.37). Mas, anos depois, ―as duas penalizações foram revogadas e o professor pode retomar as suas atividades. O médico, professor da Universidade Federal de São Paulo, calcula que já fez mais de cem cirurgias‖ (COUTO,1999, p.37). É válido informar que a adequação de sexo pode ser de dois modos.

No caso dos ―transexuais femininos‖57:

[...] as cirurgias consistem na histerectomia, na mastectomia e na construção do pênis. A histerectomia é a remoção do aparelho reprodutor, e a mastectomia, a retirada dos seios. A construção do pênis é a parte mais complexa, uma vez que as técnicas cirúrgicas ainda são precárias. Vários músculos já foram testados como matérias-primas para o pênis. Os tecidos mais utilizados são os músculos do antebraço, da panturrilha, da parte interna da coxa ou do abdômem. Uma das técnicas utilizadas para a construção do escroto é a expansão dos grandes lábios para o enxerto de expansores tissulares ou implante de silicone (BENTO, 2006, p.50).

Para os ―transexuais masculinos‖:

[...] a cirurgia consiste na produção da vagina e de plásticas para a produção dos pequenos e grandes lábios. A produção da vagina é realizada mediante o aproveitamento dos tecidos externos do pênis para revestir as paredes da nova vagina. Tecidos selecionados do escroto são usados para os grandes e pequenos lábios. O clitóris é feito a partir de um pedaço da glande. Depois da cirurgia, deve ser usada uma prótese por algum tempo, para evitar o estreitamento ou fechamento da nova vagina (BENTO, 2006, p.51).

Após passarem pelas cirurgias, os transexuais têm que esperar alguns meses e, às vezes, até um ano para que os ―inchamentos‖ e cicatrizes oriundos da operação sumam por completo do corpo.

Depois de operada, eu fiquei dez dias internada na clínica, que é o tempo normal que um transexual permanece em fase pós-operatória. Nesses dias, eu sentia muita dor, porque o efeito da anestesia passou, aí, vieram as dores [...]. Quando eu saí da clínica, eu tinha que ficar indo e voltando lá pra trocar os curativos e ser examinada pelo médico. Eu tava nos Estados Unidos apenas com meu pai. Era ele quem me acompanhava em tudo [...] com três meses após a operação, eu me olhei no espelho do quarto do hotel, onde eu e meu pai estávamos, e vi que a minha genitália ainda tava muito inchada, toda feiosa. Foram necessários seis meses para a

57 A palavra transexualismo ―é a nomenclatura oficial para definir as pessoas que vivem uma

contradição entre corpo e subjetividade. O sufixo ‗ismo‘ é denotativo de condutas sexuais perversas, como, por exemplo, ‗homossexualismo‘. Ainda na mesma lógica da patologização, o saber oficial nomeia as pessoas que passam pelo processo transexualizador de mulher para homem, de ‗transexuais femininos‘, e de homem para mulher, de ‗transexuais masculinos‘‖ (BENTO, 2006, p.44).

minha vagina ficar com aparência perfeita. Mas, assim que ela ficou boa, eu tratei logo de estreá-la. Voltei para o Brasil com seis meses de operada. A minha mãe e amigos da gente fizeram uma festa de boas vindas pra mim. Após essa recepção, eu mais duas amigas, mulheres, fomos para um barzinho. Lá a gente paquerou, paquerou com vários rapazes. Aí, quando foi umas horas, um boyzinho que eu tava paquerando me chamou pra um motel. Eu fui. Lá a gente se amou muito. Ele nem desconfiou que eu era um transexual. Ele dizia que eu era linda. Nos braços dele, eu me senti 100% mulher. A Jéssica que sempre existiu dentro de mim estava mais viva do que nunca. A sensação de ter sido penetrada pela frente foi o que houve de melhor comigo naquela noite [...]. Para mim, ser uma pessoa totalmente realizada na vida, só falta agora eu ser reconhecida legalmente como Jéssica.

[Josué/Jéssica, entrevistado(a) em janeiro de 2005]

Os transexuais masculinos, em Fortaleza, as chamadas transex quando submetidas à cirurgia de mudança de sexo, passam comumente a serem tidas pelas outras trans como ―as operadas‖. No entanto, nem todas transexuais se identificam com os signos do mundo LGBTT. Algumas têm verdadeira aversão a esse mundo. Como demonstrou Bento (2006), existem diversas formas de transexualidade. A autora nos alerta que a figura do verdadeiro transexual é uma definição normativa sobre a transexualidade, divulgada amplamente pelos meios médicos-psiquiátricos, de tal modo que para ganhar a autorização médica para realizar a cirurgia de mudança de sexo, a pessoa transexual deve se enquadrar em tal representação normativa, que vê a transex como um doente, ou no mínimo, um ser com corpo e subjetividade destoantes. Nessa lógica, a cirurgia de adequação de sexo viria corrigir um defeito de combinação entre mente e genital.

Poderíamos dizer que o discurso de Jéssica combina com a representação desse agente que se sente pertencente a um gênero, embora esteja com um corpo de outro gênero e que não se conforma com tal condição. Mas esse é apenas um

caso de posicionamento da transexualidade. Há transexuais que vivem satisfeitas com seus genitais de origem. E há ainda aqueles transexuais masculinos que mesmo operados preferem se relacionar sexualmente com mulheres. Procurar estabelecer uma identidade para a transexualidade é no mínimo perigoso. Mas por que incursionar na experiência transexual em um trabalho sobre drags? Ao ver a montagem como ritual no caso das drags, não posso negligenciar que ela, no caso de outras trans, também assume certo aspecto de rito liminar e porque conhecer as linhas da performance drag me levou a outras linhas trans das mais diversas que ajudam a compor as cartografias deste trabalho. No entanto, não há, neste trabalho, uma preocupação teórica em debruçar-se bastante em pormenores das experiências trans não drags.

A montagem das transex se dá tal como as das travestis. Embora, uma vez a transex indo buscar orientação médica e sendo reconhecida pelos discursos de verdade acerca da transexualidade, postos pela psiquiatria, essas pessoas trans tendem a ter acesso a medicamentos hormonais sem precisarem buscá-los por outros meios. Todavia, conhecer as experiências transexuais e travestis de Fortaleza torna-se necessário para compreender como as drags desta cidade criam sociabilidade com essas experiências por meio de laços de semelhanças e diferenças.

Jéssica era uma admiradora dos shows drags e costumava financiar algumas famílias drags em determinados eventos. As famílias drags têm a prática de procurarem patriocinadores para os concursos direcionados a elas e outras trans. Mas Jéssica à diferença da drag, que não possui a menor preocupação em ter seu nome feminino reconhecido perante as leis do Estado, sonhava muito em possuir o nome, Jéssica, em vez do Josué, nos documentos. De volta ao Brasil, após a operação, Jéssica iniciou o processo judicial para a mudança dos documentos. Até o ano de 2007, sua luta para ser reconhecida aos ―olhos‖ da lei como Jéssica, e não Josué, persistia. Todavia, Jéssica tinha compromissos em outro país e acabou por viajar sem ter tal sonho realizado.

Já faz mais de dez anos que fui operada e ainda não consegui tirar o nome Josué dos meus documentos e substituí-lo por Jéssica. Só que tô com esperanças que em

breve conseguirei. As últimas audiências que fui mais meus advogados foram bem promissoras para nós. Mas espero que tudo se resolva antes de eu e meu marido irmos morar em Barcelona. Meu marido é espanhol. Ele tem negócios em Barcelona e Madri. Eu conheci ele no ano de 1997. A gente se conheceu num shopping. Desde a primeira vez que a gente se falou, eu disse pra ele que eu era transex [...]. Nós moramos juntos desde o ano de 2000. Em 97, ele tava se separando de uma brasileira, mulher. Ele também tem negócios aqui no Brasil, mas quer voltar pra Espanha e deixar os negócios daqui nas mãos de uns sócios dele, que são brasileiros. Mas vou contar uma coisa: quero muito conseguir mudar meus documentos antes de viajar com meu amor. Se já é constrangedor apresentar documentos com nome masculino aqui no Brasil, onde tô com minha gente, imagine lá fora, no estrangeiro.

[Josué/Jéssica, entrevistado(a) em janeiro de 2005]

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