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3 LINHAS TRANSGÊNEROS OU A MONTAGEM COMO RITUAL E SUAS

3.4 Venâncio ou Vanessa Vedranini

Foi quando meus pais se separaram que eu comecei a se montar. Mas, desde criança, eu gostava de coisas de mulher. Eu lembro que menino eu brincava com as maquiagens e roupas da minha mãe. Aí, com 15 anos, eu comecei a ficar com menino. Mas foi aos 17 anos que resolvi me chamar Vanessa, e não Venâncio. Eu aproveitei o fato do meu pai sair de casa pra viver com outra mulher, pra mim se montar. É que ele é muito preconceituoso com gays e travestis. A minha montagem começou assim: eu fui deixando o cabelo crescer, fui começando a usar maquiagem, fui pintando as unhas, usando roupa da minha irmã. Eu só fui tomar hormônios quando conheci a Tâmyla. Em dezembro de 2003, eu conheci a Tâmyla. Ela chegou, nessa época, para morar aqui na rua de casa. E, justamente, nessa época, eu tava atrás de um emprego pra mim poder ajudar a minha família. A Tâmyla me empregou como manicure no salão dela. Aí, um dia eu tava com uma blusa bem colada no meu corpo, e Tâmyla viu e falou assim: “tu não quer ter peito grande, viado?”. Aí, eu disse que queria. Com dois dias depois disso, a bicha me arranjou umas cartelas de comprimidos e mandou

eu tomar, conforme ela recomendou. Eu tinha 18 anos nessa época. Com os hormônios, a minha voz afinou mais, os meus peitos cresceram, embora pouquinho. E bom foi que meus pelos sumiram quase por completo. Hoje em dia eu mal me depilo. Tem parte do meu corpo que ainda nasce pelo, mas outras não. Meu rosto, por exemplo, praticamente não há nem sombra de barba [...]. Em casa, a minha família, no começo, não aprovou a montagem. Mas ninguém se atreveu a me expulsar de casa. Vivo com a minha mãe, dois irmãos e uma irmã. Estudo e trabalho de modo decente. Acho que por isso que tenho respeito da minha família. Ela sabe que não ando fazendo baratismo por aí. Eu também não costumo brigar com todo mundo que mexe comigo. Se eu sair por aí e alguém me insultar, eu não respondo, pois não vou me trocar com gente baixa. Agora se alguém for tentar me agredir fisicamente, eu parto pra cima, eu faço a linha perigosa. Em falar de perigosa, lembrei da Tâmyla. Com ela ninguém que a conheça bem se mete. Quando ela não gosta de uma pessoa, ela gonga a pessoa. Mas, no fundo, a Tâmyla é gente boa. Ela é uma pessoa que já sofreu muito nessa vida. Eu gosto muito dessa bicha. A Tâmyla me ensinou muita coisa. Foi com ela que eu aprendi a andar de saltos bem altos, a me maquiar melhor, a trucar a neca. A Tâmyla me passou uma série de truques ligados à montagem. O meu sobrenome, Vedranini, foi a Tâmyla que me deu. Ela disse que Vedranini é o nome de uma artista que foi muito famosa nos anos noventa. Aí, eu achei que Vedranini combinava de mais com Vanessa e aceitei a dica da trava. Mas, apesar de ter nome de mulher, não quero ser mulher. Aprendi gostar de mim como sou.

[Venâncio/Vanessa Vedranini, entrevistado(a) em setembro de 2004]

Vanessa não tomou Tâmyla como mãe de montagem assim não recebeu o sobrenome Tesão, aceitando a sugestão de usar o Vedranini como sobrenome. Aliás, a formação de famílias trans no caso das travestis é um fenômeno de menor visibilidade se levar em consideração a gama de famílias trans que as drags estabelecem entre si. Isso não significa que existam mais pessoas que ―se montam‖ como drags do que como travestis na cidade. O fato é que formações de grupos familiares trans no sentido ritual são práticas mais corriqueiras entre as drags e também entre os transformistas.

No caso das travestis, o desejo de ser adotado por alguma família trans se mostra fundamental para descobrir as estratégias de como conseguir medicamentos hormonais com maior facilidade. Em geral, quem domina esse mercado adquire tais produtos por meio das receitas médicas falsificadas, as chamadas receitas fakes. As travestis matriarcas costumam ser peritas nos truques relativos ao comércio desses medicamentos, mostrando-se em alguns casos como verdadeiras agenciadoras no mercado de hormônios.

Porém, tão perigoso como o uso de medicamentos sem prescrição médica legítima, temos a ação das ―bombadeiras‖, ou seja, daquelas pessoas responsáveis pelo serviço da aplicação de silicone industrial. A ―bombadeira‖, em geral, é uma travesti, mas mulheres também fazem a manipulação do silicone industrial em corpos de outras pessoas. Esse tipo de silicone pode causar uma série de danos ao organismo. Já os efeitos colaterais de certos hormônios são bastantes incômodos e também perigosos. Mas, entre as travestis, a procura pelo silicone é maior do que a busca pelos medicamentos hormonais. A quase imediata aparição dos efeitos femininos no corpo, causados pelo silicone, torna-se um fator decisivo para as travestis preferirem procurar as ―bombadeiras‖.

O uso do hormônio costuma surgir de tempos em tempos na vida de uma travesti. Ou seja, há intervalos de tempo entre um período de hormonização e o outro durante grande parte da vida de uma travesti. Mas, hormônios não ―fazem milagres‖ como corriqueiramente me diziam algumas trans para advertirem que certas características corporais tidas como masculinas somente são possíveis de serem anuladas através de cirurgias plásticas ou mesmo não são possíveis de serem apagadas.

Mãos, pés são coisas da sorte. Ou você nasce com pés pequenos e mãos de mulherzinha ou vai ter a vida toda mão e pé de boy. Queixo ainda tem bicha que manda diminuir. Uma amiga minha e da Tâmyla já fez isso. Eu tô só no comprimido dia e noite, dia e noite, cansei das ampolas. Quero ainda um dia mandar bombar meus peitinhos. Aí! Fica um luxo o silicone na bicha. Mas morro de medo da dor e do que me poder acontecer depois, é cada coisa que acontece com umas travas...

[Venâncio/Vanessa Vedranini, entrevistado(a) em setembro de 2004]

Vanessa, assim como Tâmyla, embora tenha se submetido a transformações corporais cujos reflexos são um forte ―processo de feminilização‖, não procura sofrer a cirurgia de transgenitalização. Esta cirurgia, que consiste na transformação de um órgão genital em outro, é bastante procurada por agentes que se identificam ou são identificados por outros como transexuais. Entretanto, nem todo transexual deseja realizá-la. Mas esse não foi o caso de Jéssica.

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