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3 LINHAS TRANSGÊNEROS OU A MONTAGEM COMO RITUAL E SUAS

3.7 Jayme ou Hanna Lester

Quando eu comecei a andar pelas boates de Fortaleza, eu não conhecia ainda drags e transformistas, eu só os conhecia pela TV. Nessas minhas idas às boates, eu comecei a receber elogios por causa da minha aparência. As pessoas diziam que por eu ter os traços do rosto bem finos e delicados, além de ter um corpo magro, sem músculos, eu daria um belíssimo transformista. Como, nessa época, eu já tava trabalhando no ramo de estilismo e confecção, eu sabia que até que não seria difícil fazer um figurino para minha montagem. Então, eu gostei da ideia de que eu daria pra ser transformista e fui adiante. Num certo dia, eu fui no centro da cidade e comprei tecidos, acessórios, peruca, saltos, maquiagem e meias. Isso, na época, eu nem era profissional em maquiagem, mas hoje eu posso dizer que sou. Eu já maquiei várias personalidades do mundo da montagem. Já viajei para várias cidades, realizando shows. Sim, mas, quando eu montei pela primeira vez, foi sem a ajuda de ninguém. Eu mesmo fiz toda a minha produção. Quando eu apareci montado, muita gente que entende de montagem viu e elogiou bastante minha produção. Aí, eu continuei realizando montagens e fui fazendo shows. O meu primeiro show, eu fiz a convite da artista Lena Oxa. Ela me convidou sem eu precisar participar de algum concurso. A Lena é a pessoa que apresenta os shows que ocorrem numa boate aqui em Fortaleza. Pra participar desses shows é necessário

que você já seja de certo modo uma pessoa conhecida por fazer no mínimo bons shows. É difícil alguém que nunca fez show se apresentar na boate onde a Lena trabalha. Apenas, quando ocorrem os concursos de novos talentos, é que essa boate dá chance para quem nunca fez show realizar o seu lá. Só que eu nem precisei passar por isso. Graças a Deus, meu show foi muito bem recebido pelo público. Desde que eu o realizei, eu fui ganhando fama. Até hoje várias drags e transformistas vivem me procurando para eu fazer roupas pra eles. Eu sou conhecido tanto como drag como transformista, depende da montagem que eu apresente. Quando tô de transformista, eu faço a Hanna Lester ser bem feminina, com o corpo de mulher. Quando eu tô drag, eu faço a Hanna ser bem extravagante, isso pode ser no estilo amapô, andrógino ou caricato. Os estilos drags são muitos, viu queridinho? Eu adoro todos.

[Jayme/Hanna Lester, entrevistado(a) em outubro de 2005]

Jayme, ao ter seu talento para com a montagem reconhecido por outras pessoas, passou a ser procurado para iniciar várias delas nas artes da montagem, o que fez que Hanna adquirisse, por determinado momento, bastantes filhas. No entanto, estas em tal condição depositaram na personagem da mãe expectativas de retornos que parece não ter vindo como foram idealizados. Em uma família de montagem, não existe apenas regras a serem seguidas pelas filhas. As mães também têm atividades a desempenhar, segundo as próprias filhas. Essas famílias costumam ser maculadas pela discórdia e intriga quando algo que se esperava ter como presente na relação familiar não ocorre ou ocorre de outra forma. Essas discórdias podem levar ao fim da família ou de parte dela se alguns membros ou todos decidirem sair do grupo. Quando há essa saída, alguns agentes procuram se agregar em novas famílias ou passam a ―se montar‖ sem fincar laços familiares com outras trans.

Fiquei pensando: que nome usaria para representar minha personagem? Isto antes de eu montar. Aí, fui lendo umas revistas e, de uma delas, eu tirei o Hanna e, da outra, o Lester. No que juntei esses nomes ficou Hanna Lester. Já me monto faz alguns anos. [...]. Só que nunca levei a sério esse negócio de mãe e filha de montagem. Porque falar a palavra mãe é muito sério. Muitas drags levam como brincadeira. Eu levo como criação de produção corporal, de ensinamentos sobre a montagem. Criei várias drag queens, que inclusive receberam meu sobrenome. A Andressa Julí, o Junior meu amigo, e a Asha são pessoas que quando foram se montar pela primeira vez foram atrás de mim. Eu os ensinei a maquiar e a se vestir bem. Então, elas me tomaram como mãe delas. Só que eu não me considero como mãe, mas como amigo delas. É como amigo que leva qualquer coisa boa de si para o outro que eu me considero. Mãe, eu não levo mais nesse sentido de drag queen, eu levo no sentido de mãe de sangue mesmo, aquela que pari. Quando alguém me procura pra mim ajudar montá-la, eu primeiro penso no figurino. Penso nisto até mesmo antes de pensar no nome da personagem da criatura. É que tem drag que nem o nome feminino ainda tem. Aí, além de dar meu sobrenome, eu costumo ainda ajudar a pessoa na escolha do primeiro nome [...]. Penso logo no figurino, porque é a minha especialidade. Desde os meus 15 anos que comecei a confeccionar roupas. Comecei trabalhando em fábricas, mas hoje eu produzo mais pra mim. É com o que ganho trabalhando que banco as minhas montagens. Meus pais sabem que eu me monto, mas eles não dão nenhum centavo pra mim gastar com alguma coisa que seja pra montagem.

O fato de uma família em que os membros possuem recursos financeiros amplos para por em prática suas montagens é quase sinônimo de uma família em que os integrantes se montam com bastante frequência. Embora o montar e desmontar dependa muito das idiossincrasias do montador mais do que do capital econômico dele. Jayme costuma dizer que ―se montava‖ quando tinha humor para viver sua personagem. Vale informar que, mesmo que uma pessoa pratique tanto a montagem dos transformistas como a montagem das drags, ela não precisa possuir dois nomes femininos.

Contudo, assim como cheguei a encontrar drags que reclamam dos preços em geral ofertados pelas casas noturnas aos shows trans, encontrei vários transformistas que se mostravam insatisfeitos com o que comumente recebem pelos seus shows nessas casas. Para algumas dessas pessoas, um mundo possível de ascensão financeira por meio da montagem seria o mundo do trabalho em programas de televisão, seja participando de concursos de dublagem e dança, que alguns programas locais, vez por outra, exibem, ou mesmo apresentando ou atuando diretamente em ―quadros‖ de certos programas humorísticos.

A vida não é só de montagem, de peruca e de shows. A vida é dura. Eu sei que não vou viver montando e desmontando a vida inteira. Então, eu procuro crescer profissionalmente no ramo de confecções e estilismo, pra no futuro eu ter dinheiro pra me sustentar. Eu aconselho muito as minhas amigas drags. Eu digo pra elas procurarem um emprego fora da montagem, pra estudarem muito, pra ter uma escolaridade boa. Eu digo isso, porque nem toda drag consegue fazer carreira na televisão. As TVs que contratam drags pagam bem. Só que como eu disse nem toda drag vai pra TV, e aí? A gente tem que pensar no nosso futuro e na família da gente. Um dia, a velhice chega. Meus pais não vão estar comigo por toda a vida. Eles sabem que eu me monto e me aconselham não largar os estudos e o trabalho com roupas. Eles podem até não gostar que eu me monte, mas eles se preocupam comigo. Deles, quem primeiro soube que eu se

montava foi meu pai. Eu mostrei pra ele umas fotos da Hanna. Ele foi compreensivo e ainda disse que eu era uma filha linda. A minha mãe foi que quase me matou quando soube tudo. Com o tempo, ela aceitou a situação. Ela só não quer que eu me monte em casa.

[Jayme/Hanna Lester, entrevistado(a) em outubro de 2005]

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