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3 LINHAS TRANSGÊNEROS OU A MONTAGEM COMO RITUAL E SUAS

3.11 Luís, Leo ou Leila Romana

A primeira vez que se montei foi há mais de vinte anos atrás. Eu fazia teatro e numa peça que participei eu ia interpretar um personagem, que era transformista. Isso foi em 1979. No ano seguinte, eu fiz mais duas montagens em peças e depois fui pra boates. Sempre gostei de interpretar, e a boate, pra mim, é como se fosse um teatro, um lugar onde a

gente pode viver inúmeros personagens. Quem não me conhecia intimamente, quando eu saia do palco, não sabia que eu era a pessoa que estava montada, há pouco tempo atrás. Na época, eu tinha cabelo grande, então, quando eu saia do palco, eu amarrava o cabelo, vestia as minhas roupas masculinas e ia embora. Assim lá ninguém sabia que eu, Luís, era a Leila Romana. Mas nunca escondi nada da minha família. Ah, família é tudo na vida da gente! Por mais que a gente brigue com um irmão ou com a mãe, a gente sempre tem um querer bem por eles, e eles, pela gente. Hoje em dia, voltei morar com a minha mãe e meu irmão. Mas, quando comecei a se montar, fui morar em São Paulo, capital. Lá, além do teatro, eu fazia shows de transformismo. Isso eu já falei, né? É que a gente quando vai ficando Keka, a gente começa a repetir as palavras. Pois bem, eu fazia esses shows ganhava até bem por eles. Nesse tempo, quem se montava era valorizado no meio gay. Cada cachê de show que eu recebia, nesse tempo, cobria os gastos da montagem e ainda sobrava é muito. Hoje em dia, com a concorrência, os cachês baixaram. Mas, hoje em dia, até cachorro se monta! Quando eu era jovem não tinha esse horror de transformistas pelas ruas como tem atualmente. Drag queen é coisa que eu vim ouvir falar já no final dos anos oitenta. Mas, assim que eu fiquei por dentro do que é a montagem das drags, eu passei a realizar ela. Quando voltei de São Paulo, eu fui uma das primeiras drags de Fortaleza. Lembro que pra sair de casa eu tinha que sair correndo. Isso tudo, porque esses matutos daqui não tavam acostumados a ver drags. Eu chamava pelo telefone um táxi, quando o táxi chegava na porta de casa, eu entrava bem rápido no carro e pedia pro motorista acelerar. Eu fazia só de mal, porque não sei como se espalhava o zunzum na rua de que eu ia sair montado. Aí, a rua ficava cheia de gente querendo me ver.

Se querem ver a Leila, paguem para assistir meus shows, e não fiquem plantados na porta da minha casa.

[Luís/Leo/Leila Romana, entrevistado(a) em abril de 2005]

Quando Luís começou a ―se montar‖, ele dependia apenas do dinheiro que ganhava como ator e, posteriormente, dos cachês oriundos dos shows para sobreviver. Até o ano de 2005, foi através da profissão de fotógrafo que esse agente obtinha o dinheiro para realizar suas montagens.

Quem se monta tem vida dupla, logo tudo que precisa tem que ser em dobro. Se vou comprar sapatos, tem que ser pro Luís e pra Leila. Com roupa, acessórios é a mesma coisa: tudo em dobro. Quando comecei a se montar, percebi que precisava ganhar mais do que eu ganhava nessa época pra mim poder se montar e viver, né? Aos poucos, fui me profissionalizando no ramo de fotografia. Hoje, sou bastante convidado pra fotografar todo tipo de eventos, principalmente os GLS. É engraçado, porque, quando eu vou fotografar eventos lógico que não vou montado. Fotografar, na maioria das vezes, é cansativo. Já pensou, eu, de salto 15, andando de um lado pro outro batendo foto. Vou ficar morta de cansada! Então, como eu ia dizendo, tiro fotos dos outros desmontado, e como muita gente sabe que eu vivo a Leila Romana, em vez de me chamarem de Luís, que é meu nome de nascimento, me chamam de Leo. Tá entendendo a marmota? As pessoas masculinizam o Leila. Eu costumo brincar dizendo que o Leo é a minha versão hetero. Isso é só brincadeira, eu me considero bissexual, pois já fui casado com mulher e já vivi maritalmente com outro homem. E, depois de ter passado por esses dois relacionamentos, passei achar mulher e bicha casadas a mesma coisa, são todas nojentas, tudo o mesmo nhenhem. A mulher parece que é a mesma bicha só que já nasceu operada. O bom do

meu primeiro casamento foi o filho que eu tive. Uma vez, eu perguntei ao meu filho, que já é homem feito, o que ele achava de ter um pai que se monta. Ele disse que era maravilhoso, porque assim tinha duas mães, no caso, a biológica e a Leila. Ele também vive dizendo que a Leila é mais divertida do que o Luís. E eu também acho. De Leila, eu faço coisas que eu não tenho coragem de fazer quando tô desmontado. A Leila é mais alegre, audaciosa e sexy do que o Luís.

[Luís/Leo/Leila Romana, entrevistado(a) em abril de 2005]

Luís brinca como os modelos de sexualidade. Ora, se diz heterosexual, ora, trans e homossexual. O sexo e gênero parecem que não o pegam, mas esse agente não escapa por muito tempo. A captura é testemunhada pelos enunciados da fala, que insiste em fazer referência aos modelos, demonstrando uma necessidade do agente em ver-se pertencente há algum deles (masculino, feminino, heterossexual, transgênero, etc) ainda que por determinado momento. Essa pertença não pode ser tomada como voluntarismo. Por trás da aparente brincadeira, na verdade, há práticas discursivas de saber e poder que obriga o agente a assumir um sexo. Existe, nesse caso, a imposição de uma materialidade ao agente que a incorpora e a reproduz, dando mostra através dos enunciados que ele emite. Esses enunciados denunciam a estratificação dos nossos corpos e subjetividades pelos modelos. Todavia, a sexualidade das pessoas trans radicaliza o projeto de uma sexualidade plástica, no sentido de uma sexualidade descentralizada da reprodução, tal como que Giddens a concebe:

A sexualidade plástica é a sexualidade descentralizada, liberta das necessidades de reprodução. Tem suas origens na tendência, iniciada no final do século XVIII, à limitação rigorosa da dimensão da família; mas torna-se mais tarde mais desenvolvida como resultado da divisão da contracepção moderna e das novas tecnologias reprodutivas. A sexualidade plástica pode ser caracterizada como um traço de personalidade e, desse modo, está intrinsecamente vinculado ao eu. Ao mesmo tempo, em princípio, liberta a sexualidade da regra do falo, da importância jactanciosa da experiência sexual masculina (GIDDENS, 1993, p.10).

Os ―eus‖ transgêneros, de modo geral, ―desestabilizam a idéia de imutabilidade desde o nascimento como homem ou mulher, através da performance que eles incorporam e expõe‖ (JAYME, 2001, p.56). Além disso, esses ―eus‖, em seu desejo de montar, encontram um devir-mulher, experimentam uma microfeminilidade que não se confunde com o ser mulher.

O que chamamos de entidade molar aqui, por exemplo, é a mulher enquanto tomada numa máquina dual que a opõe ao homem, enquanto determinada por sua forma, provida de órgãos e de funções, e marcada como sujeito. Ora, devir-mulher não é imitar essa entidade, nem mesmo transforma-se nela. Não se trata de negligenciar, no entanto, a importância da imitação, ou de momento de imitação, em alguns homossexuais masculinos; menos ainda a prodigiosa tentativa de transformação real em alguns travestis. Queremos apenas dizer que esses aspectos inseparáveis do devir- mulher devem primeiro ser compreendidos em função de outra coisa: nem imitar, nem tomar a forma feminina, mas emitir partículas que entrem na relação de movimento e repouso, ou na zona de vizinhança de uma microfeminilidade, isto é, produzir em nós mesmos uma mulher molecular. Não queremos dizer que tal criação seja o apanágio do homem, mas, o contrário, que a mulher como entidade molar tem que devir mulher, para que o homem também se torne mulher ou possa torna-se (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p.67- 68).

A entidade mulher, ao estar na fala das narrativas ou no projeto de intervenções corporais por esses agentes empreendidos, revela um corpo capturado pela enunciação. As entidades são compostas de enunciados de si. E o que dizer da entidade mulher? Os signos corporais dessa entidade estão em sintonia com a máquina dual, masculino e feminino. E não basta satirizar a máquina para sair dela. A paródia que as drags fazem de uma ideia de gênero torna-se subversiva sob a perspectiva do por vir, não porque, como queira Butler (2003; 1993), essa paródia denuncia a ficcionalidade do gênero, mas mostra-se subversiva, porque, por vezes, nessa ficcionalidade, o agente transgênero vizinha-se com um tornar-se mulher em que a entidade mulher já não é mais ela e o masculino tampouco seu apanágio. O comum mundo dos signos masculinos evocados pelas drags para criarem identidades, ou melhor, entidades (personagem, intérprete, boy, etc) perde sua condição de ser o que são. Não importam mais o que eles querem dizer ou dizem. Trata-se agora do agente que passa por um devir-mulher.

Entrar em devir é furtar-se59. Não existe o caso da drag que se mostra

permanentemente no devir-mulher. Temos ou poderemos ter a drag que encontra seu devir-mulher, que no seu tornar-se mulher não possui sexo, gênero ou sexualidade. Em tal encontro, movimentos de lentidão e repouso tomam conta da drag, a qual vive ―n‖ sexos. Chegamos ao território do desejo. Aquele território corriqueiramente negligenciado ou trabalhado de forma suspeita pelos estudos sobre transgêneros. Estudos por diversas vezes muito ricos em seu poder conceitual, mas que tendem a se preocupar em ver o subversivo somente no que tange a uma afronta a ―matriz heterossexual‖, perdendo de vista os processos de resistências e microresistência que não se enquadram nos segmentos duros de gênero, sexo e sexualidade e que não formam novos territórios de signos significantes. Digo signos significantes, porque Deleuze; Guattari (2006) compreendem os signos do devir como a-significantes, como aqueles signos que não entram na relação pierciana ícone, índice e símbolo. A ―matriz heterossexual‖ joga com signos desta última relação.

Na liminaridade sexual, a drag subverte a ―matriz heterossexual‖ por se mostrar um ser ambíguo, indefinido e paradoxal. Aqui, ela embaralha os signos (significantes) do masculino e feminino. Nas linhas de fuga, a drag subverte a mesma matriz e qualquer outra, porque esta personagem furta-se a um campo de possibilidades que pode ser destrutivo para si mesma. Aqui, só há uma matriz, a do devir-mulher. Como Guattari observou, ―o devir-mulher serve de referência, eventualmente de tela aos outros tipos de devir‖ (1987, p.35).

A análise ritual tem o prodígio de facilitar o trabalho de compreensão da iniciação e da passagem de agentes na montagem, formando mapas de representação em que o pesquisador pode se mover com um olhar cortical. Quero dizer que, com trechos de narrativas sob a perspectiva da iniciação e da passagem ritual, podemos tornar explícitos, no papel, alguns dos modelos da experiência trans, podemos mapeá-los. Aí, surgem as liminaridades dos ritos que levam o olhar a ―vibrar‖ com forças paradoxais e pontas de desterritorialização. Não menosprezar o

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Os encontros do devir nunca se fundamentam na troca, mas no roubo, na dupla-captura. É como no caso da orquídea e a vespa. ―A orquídea parece formar uma imagem da vespa, mas, na verdade, há um devir orquídea da vespa, uma dupla-captura pois ‗o que‘ cada um se torna não muda menos do que ‗aquele‘ que se torna. A vespa torna-se parte do aparelho reprodutor da orquídea, ao mesmo tempo em que a orquídea torna-se órgão sexual da vespa. Um único e mesmo devir, um bloco de devir‖ (DELEUZE; PARNET, 1998, p.10).

mundo significante daqueles que pesquisamos e, sobretudo, não negar suas possibilidades de desterritorialização. Assim, a análise ritual aqui lida com o duro e o molecular. E o antropólogo que, neste trabalho, se tornou cartógrafo percebe que também está se movendo sem saber ao certo onde vai parar e como parar. Ele, em sua autoridade etnocartográfica por diversos instantes, não acredita em um fim previamente visível do trabalho de análise. A cada encontro com transgêneros, a cada nova página encerrada nos diários e por aqui, principalmente, sou tomado por sentimentos de dúvidas, de suspeita quanto ao velho hábito de certas antropologias em negar o não representável da vida, assim como vários de meus colaboradores não creem em poder ser capturados por uma única forma de ser.

Trava, transex, operada, transformistas, drag, passiva, ativo são tantas as definições, mas elas nunca dizem tudo que temos por dentro. Guardo muitas coisas no meu coração. Lembro da primeira vez que amei um homem, do nascimento do meu filho, de quase todos os meus shows, mas lembro mesmo é do primeiro deles, nesse, eu subi no palco, foi cantando e não dublando, cantei sabe o quê? Volare.

Penso che um sogno così non ritorni mai più: mi dipingevo le mani e la

faccia di blu,

poi d’improvviso venino dal vento rapito

e incominciavo a volare nel cielo infinito...

Volare...oh,oh!... cantare...oh,oh,oh,oh!

nel blu dipinto di blu, felice di stare lassú. E volavo, volavo felice più in alto del sole ed ancora

più su,

mentre il mondo pian, piano spariva lontano laggiù, una musica dolce suonava

soltando per me... Volare... oh, oh! cantare... oh, oh, oh, oh!

nel blu, dipinto di blu, felice di stare lassù. Ma tutti i sogni nell’ alba

svaniscon perché, quando tramonta, la luna li

porta com sé. Ma io continuo a sognare

negli occhi tuoi belli, che sono blu come um cielo

trapunto di stelle. Volare... oh, oh!... cantare... oh, oh, oh, oh!

[Luís/Leo/Leila Romana, entrevistado(a) em maio de 2005, falecido(a) meses após essa entrevista]

4 PEDAÇOS-PAISAGENS: MOVIMENTO E EXPERIMENTAÇÃO

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