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3 LINHAS TRANSGÊNEROS OU A MONTAGEM COMO RITUAL E SUAS

3.9 Daniel ou Rayana Rayovac

Na minha primeira montagem, eu não sabia se montar. Eu era de menor. Foi uma amiga minha que é de maior quem fez minha montagem. Ela fez uma montagem bem putaria, aquela coisa caricata. Eu achei escândalo. A bicha ia me montando e me ensinando a se montar. Tipo assim: ela encaixou a peruca na minha cabeça, mas, na hora de encaixar, ela explicava como devia ser, ela pintava meu rosto e falava como se pinta, ela trucou a minha neca e explicou cada passo do trucamento. Ah, doeu muito trucar! Uma coisa é você trucar sua própria neca, outra coisa é chegar uma pessoa e trucar. Quando é você mesmo que truca a sua neca, é mais fácil, você dificilmente machuca. Mas dor não é monstro de sete cabeças, nessa situação. Para viver a Rayana, eu truco quantas vezes for preciso.

[Daniel/Rayana Rayovac, entrevistado(a) em julho de 2005]

Na passagem acima, ―encontramos a dor como enfrentamento simbólico no limite e batente provisório de uma identidade a ser construída‖ (LE BRETON, 1995 apud LE BRETON, 2003, p.43). Em síntese: Daniel, para ―se fazer‖ enquanto Rayana, revela a dor do ―trucamento da neca‖ como um obstáculo a ser vencido. A dor, em muitos rituais, torna-se necessária para o neófito adquirir o status almejado e que dá significado ao rito. Clastres (2003) evidencia isso quando afirma que, entre

os Guayaki, os meninos, para serem reconhecidos como homens adultos, passam por verdadeiras escarificações corporais. Todavia, no caso da montagem, a dor do ―trucamento da neca‖ não está diretamente associada a qualquer ideia de bravura ou coragem. O ―trucar‖, aqui, é mais um ato necessário caso o agente transgênero queira dar mais feminilidade ao novo corpo. Se fôssemos tentar conferir títulos de bravura aos transgêneros que se submetem a intervenções corporais de dores significativas, todos esses agentes de uma maneira ou de outra seriam como guerreiros. Por exemplo, imaginem as dores pós-operatórias que aqueles que se submeteram a transgenitalização sofreram.

Porém, anterior a publicação dos trabalhos de Clastres outro antropólogo, Van Gennep já nos alertava que mutilações ou processos de tortura são comuns em rituais de iniciação ou de passagem, marcando no corpo uma divisão temporária de uma fase do agente a outra:

As mutilações são um meio de diferenciação definitiva. Outras há, porém, como o uso de um vestuário especial ou de uma máscara, ou ainda as pinturas do corpo (sobretudo com minerais coloridos) que marcam uma diferenciação temporária. São estas que vêm desempenhar considerável papel nos ritos de passagem porque se repetem a cada mudança na vida do indivíduo (VAN GENNEP, 1974, p.76).

As dores que certas técnicas da montagem propiciam para drags e transformistas mostram o montar como um processo que leva a um estado temporário de existência à diferença de como esse processo surge no caso de travestis e alguns transexuais. Estes dois últimos grupos de transgêneros dificilmente se desmontam. Em alguns momentos de suas vidas, travestis e transexuais até se submetem à desmontagem. Mas, esse processo é sempre parcial, nunca completo, e muito doloroso. Nesse caso, a desmontagem acontece geralmente quando o silicone industrial apodrece dentro do corpo e é preciso retirá- lo ou mesmo quando esse silicone desenvolveu alguma espécie de câncer ou se espalhou de forma indesejada pelo organismo, a desmontagem se faz necessária.

A passagem à travestilidade e à transexualidade pode ser irreversível. No entanto, travestis e alguns transexuais consideram a retirada do pênis uma verdadeira mutilação, ao passo que outros transexuais têm essa retirada como sendo um sonho realizado ou ainda por se realizar. Enquanto, para as drags e

transformistas, desmontar é um processo rápido que leva no máximo alguns minutos.

Desmontada eu procuro não agir como a Rayana nem sempre eu consigo. Aqui e ali escapole uma fala ou um gesto da Rayana no Daniel [...]. Fui eu quem escolheu o nome Rayana. No começo, eu não tinha sobrenome de montagem. A bicha que me ensinou a se montar eu não a quis como mãe. O nome Rayovac veio por causa da marca de pilhas chamada Rayovac. É que eu sou uma pessoa muito agitada, elétrica. Eu vou pra festa que for e saio da festa com a mesma energia que entrei. Aí, umas bichas que eu conheço começaram a me chamar de Rayovac. Eu juntei o Rayana com o Rayovac. Essa junção deu uma sonoridade legal, aí, eu adotei o Rayovac como sobrenome. Essa eletricidade que eu tenho foi muito positiva pra minha carreira, tanto a de drag com a de transformista. No mundo da montagem, você tem que se relacionar bem com outras pessoas que se montam. A gente nunca saca tudo de montagem, a gente tá sempre aprendendo algo de novo. Às vezes, vem uma drag e descobre um truque novo pra fazer maquiagem ou, então, chega um transformista e apresenta novas técnicas de dança. Ah, bicha é bicho truqueiro! Vira e mexe, e nós refazemos a montagem. Mas, pra tá por dentro das novidades, é preciso fazer amizade com outras pessoas que se montam. Assim, você vai trocando ideias, aprendendo com os outros. O difícil, quando você começa a se montar, é exatamente isso: se relacionar bem com outros transformistas e drags. Tem bicha que é invejosa, despeitada, perigosa que adora dar rasteira em que tá começando a se montar. Por aí não é todo mundo que lhe dá a mão. E, no mundo da montagem, as coisas não são diferentes. Graças a Deus, eu fui bem aceita por outras drags

e transformistas. Eu cresci muito profissionalmente, graças a dicas de muito dessas pessoas. Com essas dicas, fui evoluindo nas minhas apresentações [...]. Eu soube conquistar as pessoas. Com o meu jeito extrovertido, eu conquistei muitas pessoas. Só não consegui fazer com que a minha mãe me aceite como eu sou. Ela sabe que eu me monto, mas não aceita isso.

[Daniel/Rayana Rayovac, entrevistado(a) em julho de 2005]

Aprender a ―se montar‖ sozinho, somente com algumas dicas de agentes já experientes na montagem requer, como a própria Rayana deixa transparecer, um bom relacionamento com outros transgêneros. A simpatia, no sentido de ser apreciado pelo outro, ser uma pessoa bem quista, é uma moeda de troca fortíssima para conseguir que outros transgêneros cedam seus conhecimentos sobre a montagem e até mesmo para adentrar em alguma família trans. O nascimento dessa qualidade de família é oriundo de laços de amizade e cumplicidade, ainda que com o tempo eles possam ser desfeitos. Quando falha a tentativa de estabelecer esses laços ou mesmo não há o interesse por alguma das partes (a trans e o iniciante na montagem) em estabelecê-los, iniciar alguém na montagem ocorre mediante a um pagamento em dinheiro. Diversas drags e transformistas, por exemplo, oferecem seus serviços acerca de como montar e utilizar um corpo em troca de certas quantias para aquele agente, o qual não quer pertencer a alguma família trans ou aquele que a família procurada não o quer como membro.

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