• Nenhum resultado encontrado

1. Interpretação do artigo 877º do Código Civil

1.4 Âmbito objectivo do artigo 877º do Código Civil

1.4.1 Da dação em cumprimento

Refere ABÍLIO NETO(237) que o tratamento drástico resultante do art. 877º só

ocorre no contrato de compra e venda, não se permitindo a interpretação extensiva de

tal artigo a outros negócios. Desta feita, observa também MARTA G. PINTO(238), que da leitura da epígrafe do art. 877º e da sua localização sistemática no Código Civil,

parece que o mesmo só se aplicará apenas aos contratos de compra e venda.

No entanto, devemos ter em consideração o disposto no art. 939º do CC. Assim, estabelece tal artigo que as normas de compra e venda são aplicáveis aos outros

contratos onerosos pelos quais se alienem bens ou se estabeleçam encargos sobre eles, na medida em que sejam conformes com a sua natureza e não estejam em contradição com as disposições legais respectivas. Portanto, a primeira parte do artigo determina, de

entre os contratos onerosos, a aplicação das regras de compra e venda; a segunda parte prevê as duas situações às quais não se aplicam as regras do contrato de compra e venda, sendo elas: 1ª quando as normas do contrato de compra e venda não são conformes com a natureza do contrato em questão e; 2ª não estejam tais regras em contradição com as disposições legais respectivas.

Ora, se este art. 939º nos diz que as normas da compra e venda se aplicam a outros contratos onerosos, observa-se que devido à sistematização do art. 877º no Código Civil (configurando este artigo uma norma relativa à compra e venda), que o mesmo e sua proibição legal se aplicam também a todos os contratos de alienação, salvo se os mesmos se encaixarem em algumas das excepções previstas no art. 939º.

De contrário, admite MARTA G. PINTO(239) não seria possível justificar a existência do n.º 3 do art. 877º, que nos diz que a proibição de venda a filhos ou a netos não abrange a dação em cumprimento feita pelo ascendente. Admitindo, ainda que, a previsão legal do n.º 3 no art. 877º não faria sentido se considerarmos que a norma do art. 877º se aplica unicamente à compra e venda.

237 Ob. Cit., p., 840. 238

Ob. Cit., p., 19.

95

No encontro desta posição vai também MENEZES LEITÃO(240) referindo que a

lei é expressa dizendo que tal proibição não abrange a dação em cumprimento realizada

pelo ascendente. Diz-nos o Autor que no que a este n.º 3 respeita está aqui acolhida a teoria de Cunha Gonçalves afirmando que “a semelhança entre dação em pagamento e a venda é mais aparente que real” e “em questão de incapacidade não se pode argumentar com qualquer analogia”. Todavia, MENEZES LEITÃO(241

) põe em causa esta argumentação alegada por Cunha Gonçalves e acolhida no n.º 3 do art. 877º pelo nosso legislador, considerando que as diferenças teóricas entre a dação em cumprimento e a venda não ilidem o facto de a mesma possibilidade de simulação de doações se

verificar nos dois casos.

Por seu turno, PIRES DE LIMA E ANTUNES VARELA(242) justificam a previsão legal estabelecida no n.º 3 do art. 877º com o facto de se supor que entre pai filho e avô ou neto existe uma dívida, chegando para afastar a possível simulação do

acto.

Também aqui MENEZES LEITÃO(243), refuta a posição de PIRES DE LIMA E ANTUNES VARELA, admitindo que será mais fácil simular a existência de uma

dívida antiga, do que o pagamento do preço de um contrato de compra e venda actual.

GALVÃO TELES(244) sustenta também a insuficiência da argumentação apresentada por PIRES DE LIMA E ANTUNES VARELA no que a este n.º 3 respeita. Para o Autor, pode ser mentirosa a dívida existente entre pai e filho e avô e neto, dando o seguinte exemplo: um pai, através da dação em cumprimento de dívida prevista no n.º 3 do art. 877º, quer doar a um filho. Para tanto, inventam os dois uma dívida que não existe e, sob simulação, encobrem a doação. Assim, sustenta o Autor, contrariando PIRES DE LIMA E ANTUNES VARELA, a simulação é perfeitamente possível nestes casos a que o n.º 3 faz referência. Ademais, a consagração deste n.º 3 do art. 877º só vem fazer prova, mais uma vez, da preocupação do legislador em reduzir ao mínimo o

âmbito da norma proibitiva.

240 Ob. Cit., p., 44. 241 Ob. Cit., p., 45.

242 Código Civil Anotado, Vol. II, Ob. Cit., Vol. II, p., 171. 243 Ob. Cit., p., 44 e 45.

244“Venda a Descendentes…” Ob. Cit., p., 519 e ss. Nas palavras de GALVÃO TELES, a dação em

cumprimento traduz-se na alienação do devedor ao credor de uma coisa, que é diferente da coisa que se encontra em débito entre os dois, obtendo desta forma a extinção do seu débito. A dação em cumprimento é um contrato de alienação a título oneroso.

96

No entanto, GALVÃO TELES(245) admite que, de certo modo, seria descabido proibir-se a dação em cumprimento, até porque considera, por um lado, que não é de todo usual os pais e os avós auxiliarem-se da dação em cumprimento simulada no intuito de beneficiar os filhos ou netos e, por outro lado, a prova de simulação nestes casos não seria difícil. Admite, ainda o Autor que é, sem dúvida, através da compra e venda, meio no seu entender, mais expedito e directo de um ascendente simular uma doação a um descendente.

Em suma, e no que concerne à explicação deste n.º 3, refere MARTA G. PINTO(246) que o art. 877º é regra específica da compra e venda, cabendo, deste modo,

na parte final do art. 939º, não sendo abrangido pela extensão. Sustenta que o n.º 3 é uma simples explicitação da limitação genérica prevista no art. 939º in fine.

1.4.2 A cessão onerosa de quota social

PIRES DE LIMA E ANTUNES VARELA(247) olham a proibição estabelecida no art. 877º como aplicável quer às vendas cíveis quer aplicável às vendas comerciais, nomeadamente à cessão onerosa de quotas. Assim, estabelece o art. 463º, n.º 5 do Ccom que é considerado compra e venda comercial as compras e vendas de partes ou de acções de sociedades comerciais.

Encontra-se regulado no art. 228º do CSC o contrato de cessão de quotas que, regra geral, reside na circunstância de o sócio, a título oneroso, transmitir a sua participação social. O contrato de cessão de quotas, normalmente, tem subentendido a si um contrato de compra e venda. A lei prevê certas limitações à livre transmissibilidade da quota. E a transmissão da quota só é efectuada livremente quando se trate do cônjuge do ascendente, dos descendentes ou entre os sócios.

Com efeito, ABÍLIO NETO(248) afirma que a cessão onerosa de uma quota social de pai para filho pode ser anulada com base no art. 877º, mesmo que do pacto social

conste expressamente essa autorização e os seus únicos sócios sejam o cedente e o filho impugnante. Afirma ainda o Autor, que a cessão onerosa de uma parte social e de duas

quotas em sociedades comerciais feita pelo pai a filhos maiores sem o suprimento do

245 “Venda a Descendentes…” Ob. Cit., p., 520. 246 Ob. Cit., p., 20.

247

Código Civil Anotado, Vol. II, Ob. Cit., Vol. II., p., 171.

97

consentimento de um outro filho menor é anulável, por violação do princípio de intangibilidade da legítima. Refere ainda que a transmissão onerosa de uma quota a

favor de nora do transmitente casado no regime da comunhão conjugal, viola o alcance

lógico do art. 877º, se tal transmissão for efectuada sem a concordância de uma filha do mesmo transmitente.

No entanto, e estando perante uma anulabilidade, o lesado possui do prazo de um ano a contar do conhecimento para fazer exercer e valer os seus direitos. Conquanto, findo este prazo o seu direito caduca.

1.4.3 A troca ou escambio

No que à troca ou escambio respeita MENEZES LEITÃO(249) afiança que, não obstante a remissão constante do art. 939º, não parece que a proibição de venda a filhos ou netos se deva estender à troca. Admite assim o Autor, que em relação à troca não se

colocam normalmente os problemas de simulação que estão na base da proibição do

art. 877º. GALVÃO TELES(250) vai também neste sentido, afirmando que a proibição contida no art. 877º não se alarga a outros contratos, como por exemplo a troca.

ABÍLIO NETO(251) parece ter opinião diversa dos Autores acima indicados e sustenta que são aplicáveis ao escambo ou troca as normas relativas à compra e venda. Considerando, assim, que à troca ou escambio é-lhe aplicável a disposição do art. 877º

que proíbe a venda de bens por pais ou avós a filhos ou netos, se os outros filhos ou netos não consentirem nessa venda.

O certo é que de facto, no dizer de MARTA G. PINTO(252) o legislador não estatui no nosso actual Código Civil nenhuma norma afastando a aplicabilidade da

proibição ao escambo, tal como fez com a dação em cumprimento. Além do mais, a

troca apresenta carácter oneroso e, através dela, é possível alienar-se bens, logo encontra-se preenchida a primeira parte do art. 939º.

Mas, não obstante isto, parece-nos de ser de levar em consideração, também aqui, o carácter excepcional do art. 877º, destinado, exclusivamente, a realizar os objectivos

249 Ob. Cit., p., 44.

250 “Venda a Descendentes…” Ob. Cit., p., 521. 251

Ob. Cit., p., 839.

98

que lhe servem de base. Entendemos, tal como MENEZES LEITÃO(253) que no caso da troca não se verificam os problemas inerentes à proibição que fundamenta o artigo. Ou seja, no caso da troca simulada não nos parece existir grandes dificuldades no que concerne à sua prova, pois a não verificação de correspectividade entre os bens permutados só por si poderá constituir um indício forte de que podemos estar perante uma simulação, sendo alegada nos termos do art. 240º.