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O princípio da liberdade contratual: origem histórica

Os princípios ideológicos aplicáveis aos contratos datam do séc. XIX, reconduzindo-se na sua essencialidade a uma única ideia: a liberdade de contratar. Tal liberdade é fruto de um direito amadurecido da burguesia e da hegemonia económica, cultural e política em que na época se vivia, considerando-se então que a conclusão de qualquer contrato devia consistir numa operação completamente livre para as partes envolvidas no negócio. E esta liberdade traduzia-se na liberdade de os contraentes interessados terem o poder de decisão, desde logo, no que concerne à escolha da parte com quem queriam concluir o negócio, no poder de decidir se estipulavam ou não estipulavam um determinado contrato, quais as cláusulas que o mesmo deveria conter e qual o preço que, dentro da sua soberania individual de juízo, o contrato estaria sujeito.

Considerava-se que o legislador e os tribunais não deviam interferir, de maneira nenhuma, na livre escolha dos contraentes privados. Isto é, não se afigurava possível que a liberdade contratual fosse submetida a vínculos positivos(129).

Os limites a tal liberdade eram admitidos como exclusivamente negativos, tidos como puras e simples proibições, sendo que mesmo estas limitações ao princípio eram

toleradas em muito estreita medida, admitindo-se, apenas, excepções ao princípio da

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liberdade destinadas a impedir vínculos limitadores da actividade própria, uma vez que se entendia que o exercício da liberdade contratual da pessoa que os assumia ficava afectada no futuro e, de um modo geral, tentava evitar-se lesar o sistema precisamente fundado na liberdade tendencialmente ilimitada do tráfico jurídico(130).

Paralelamente a estes limites puramente negativos à liberdade de contratar admitia-se também a exigência de tutelar sujeitos que, pelas suas condições psico-

físicas, eram indivíduos considerados não aptos a exercer de modo consciente a sua

liberdade, derivando daqui as agora conhecidas e estudadas incapacidades dos menores e dos diminuídos mentalmente. Mas se os incapazes eram de forma mais ou menos organizada protegidos pelos limites impostos ao princípio da liberdade contratual, o mesmo já não se pode dizer no que toca à protecção conferida aos indivíduos com menor poder económico e social.

No que a este assunto diz respeito – protecção dos desfavorecidos economicamente -, entendia o legislador que ao poder público não cabia intromissão sob pena de estar a limitar o poder contratual dos homens livres, adultos e mentalmente

saudáveis(131).

E ao longo de muitos anos, os contraentes, dando uso ao princípio da liberdade contratual de tendência ilimitada, tinham, por um lado, o poder de escolha e decisão cabendo-lhe decidir se queriam contratar ou não, em que circunstâncias ou condições o queriam fazer e, por outro lado, do compromisso que poderiam ou não assumir com a celebração daquele contrato resultando uma responsabilidade também ela

tendencialmente ilimitada, sendo que o contrato era na altura do Code de Napolèon

admitido como força de lei.

Entendia o art. 1134º do Código acima referido que cada pessoa na liberdade que

possui pode decidir ou não se se quer comprometer, mas se assim decidir – optar por se comprometer – fica ligado irrevogavelmente à palavra dada: «pacta sunt servanda». Só assim se assegura, neste entender, uma rigorosa circulação da riqueza (não esqueçamos a função do contrato abordada no capítulo anterior deste trabalho) de modo que as previsões e os cálculos das pessoas envolvidas na troca não se frustrem, antes fiquem eficientemente satisfeitas.

Neste sistema capitalista em que o princípio da liberdade contratual nasceu e se criou, alicerçado precisamente na mais vasta liberdade de contratar, não havia espaço

130

ENZO ROPPO, Ob. Cit., p., 33.

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para a questão da intrínseca igualdade, da justiça substancial das operações económicas(132).

A justiça que regularia a relação contratual era aquela que havia sido expressada pela livre vontade das partes no contrato; portanto esta justiça correspondia, nem mais, à vontade manifestada de forma espontânea das partes e correspondia aos seus interesses expressos no conteúdo do contrato levando isto sim, entendia-se, a uma igualdade

jurídica: eram respeitados os cânones da justiça comutativa.

Podemos traduzir, pois, o que acima ficou dito na seguinte fórmula: se somar-mos a liberdade de contratar mais a igualdade formal obtemos o resultado de contrato justo que, por conseguinte, nos leva ao resultado da satisfação e prossecução dos interesses das partes envolvidas no contrato mais a satisfação e prossecução dos interesses da colectividade em geral.

Estamos, claramente, no plano do Estado laissez-faire, laissez-passer(133) o bem da Nação é assegurado de forma independente, sem necessidade de intervenção pública, pelos particulares que movidos pelos seus interesses, pelas suas iniciativas e, atrevemo- nos a dizer, pelos seus egoísmos, coordenam e orientam a concorrência a bem da sociedade e da Nação.

Na segunda metade do séc. XX o pensamento já começava a ser diferente; já se admitia e considerava que o bem público além de passar pela liberdade contratual, princípio indiscutivelmente fundamental, passa também pela intervenção dos tribunais.

Ora, só assim se assiste a uma progressão no que a este princípio concerne: são- lhe acrescentados novos valores e novas orientações, traduzindo-se a força deste princípio na igualdade de todos os indivíduos perante a lei, sem quaisquer discriminações ou privilégios conduzindo a um novo nascimento de uma sociedade onde se dinamizavam as iniciativas e livremente se manifestava o potencial produtivo de cada sujeito.

ENZO ROPPO(134) afirma que o princípio até então envolvia e aprisionava o sujeito numa organização económica-social fechada, pouco dinâmica, encontrando-se submetido a uma série de incapacidades legais que lhe prejudicavam a plena expansão.

132 ENZO ROPPO, Ob. Cit., p., 35. 133

ENZO ROPPO, Ob, Cit., p., 35.

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E é por esta nova concepção de princípio da liberdade de contratar que a sociedade é impulsionada a organizar relações sociais contratuais. Aos cidadãos é assegurada a liberdade de contratar de forma justa, devido à igualdade jurídica existente entre as partes do contrato.

Mas adverte ENZO ROPPO(135) esta igualdade jurídica é apenas uma igualdade

de possibilidades abstractas, igualdade de posições formais, sendo que na realidade o

que se passa é que estando a sociedade dividida em classes sociais, existem gravíssimas

desigualdades substanciais, profundíssimas disparidades das condições concretas de força económico-social entre as partes possuidoras de riqueza e poder e as partes que

apenas dispõem da sua força de trabalho. Lembremos tão-só do contrato de trabalho, exemplo que ilustra bem o que se acaba de dizer: a entidade empregadora detentora do controle e de poder e o trabalhador detentor da sua mão-de-obra encontram-se, num plano formal, em posições jurídicas iguais com liberdade para fixarem o conteúdo do contrato de trabalho. Mas como demonstra a história do capitalismo, o trabalhador atento à sua necessidade de subsistência, aceita quase todas as condições estabelecidas pelo empregador. E, nos dias que correm, assistimos não raramente a trabalhadores muito mal remunerados, com horários de trabalho muito além do permitido, etc etc.

É evidente que a estratificação da sociedade impõe apenas que se tenha uma igualdade jurídica formal dos contraentes, resultando disparidades de poder contratual entre partes fortes e partes débeis.

Quantos de nós, certamente, já não viu a sua vontade a ser constrangida em prol de interesses dos mais poderosos? Muitos, decerto!

Não será então o princípio da liberdade contratual e da igualdade das partes um disfarce da lei? E será também ele um mecanismo ao serviço do capitalismo?

ENZO ROPPO(136) afirma que o princípio da liberdade contratual é, de facto, um

instrumento funcionalizado (esta funcionalização não nos é estranha. Recorde-se, uma

vez mais, o que no capítulo anterior ficou dito relativamente ao contrato de compra e venda) para operar do modo de produção capitalista e, neste sentido, realiza

institucionalmente o interesse da classe capitalista.

135

Ob. Cit., p., 37.

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Neste sentido, aponta também JOAQUIM DE SOUSA RIBEIRO(137) dizendo que a liberdade está directamente ligada aos princípios funcionais do mercado, sendo

valorada enquanto elemento constitutivo da ordem de concorrência. Ora assim sendo,

temos uma liberdade de contratar estimulada pelos mecanismos da concorrência, sendo que estes instrumentos são accionados apenas pela tomada de consciência e de informação da parte da sua liberdade de contratar e da sua escolha sobre a contraparte.

2. Codificação do princípio da liberdade contratual: O artigo 405º do Código