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Seria, portanto, a hospitalidade a condição incondicional e incalculável ao que acontece - a própria acontecimentabilidade do acontecimento - à vinda do que quer que venha? É necessário tomarmos o cuidado de não simplificarmos a grandiosidade da experiência aporética da hospitalidade, enclausurando-a em uma redoma que reduziria a uma utopia ou a uma dimensão poética, meramente idealizadora, redução intentada por inúmeros críticos de Derrida. Um modelo de compreensão da hospitalidade (ou da democracia por vir, como tentarei expor no próximo capítulo) como uma dispersão absoluta, eternamente aberta a uma economia geral, cuja pretensão seria a de apenas acenar para um "para além", um "ainda

333 "Interessa-me cada vez mais discernir a especificidade de uma desconstrução que não seja necessariamente

redutível à tradição lutero-heideggeriana". In: DERRIDA, Jacques. Papel-máquina. São Paulo: Estação Liberdade, 2004, p. 333.

108 não", uma impossibilidade de purificação, ensejaria um modelo impresso, ainda, pelo determinismo. É necessário não transformar essa experiência do impossível em uma experiência impossível, ou uma não-experiência334. É o que Derrida denomina de im-possível: a experiência do impossível, a possibilidade do impossível, ou o anúncio sem anúncio como tal - o hífen que marca o caráter excessivo e excepcional da estranheza. Ousar pensar que o possível não se esgota na dinâmica de uma ontologia das modalidades do ser ou da compreensão do ser, suportando o excesso imperceptível da sua impossibilidade mais radical, é um paradoxo difícil de entender e quase impossível de ser expresso em linguagem filosófica335.

A hospitalidade que acolhe o visitante inesperado - que chega desafiando o estado pré-egológico - está aberta a exposição incondicional da surpresa absoluta, na medida em que acolhe "quem quer que seja", respondendo-lhe. Esse responder instaura a relação do acolhimento com a responsabilidade, vista não a partir de uma cartilha demarcatória e sim também produzida pela dimensão de aporia que demarca o conceito.

Não esqueçamos nunca que uma tematização insuficiente do que é, do que quer dizer, do que quer dizer, do que deve ser a responsabilidade, é também uma tematização irresponsável: não saber, não ter nem ciência nem uma consciência suficiente do que ser responsável quer dizer, é em si uma falta à responsabilidade. Para (se) ser responsável, é preciso poder responder pelo que quer dizer ser responsável. Porque, se, na mais segura continuidade da sua história, o conceito de responsabilidade implicou o compromisso num agir, num fazer, numa praxis, numa decisão excedendo a simples consciência ou o simples contato teórico, o mesmo conceito requer que uma decisão ou uma ação responsável responda por si mesma

em consciência, quer dizer, no saber temático do que é feito, do que significa a ação,

das causas e dos seus fins etc. É sempre preciso ter em conta nos debates em torno da responsabilidade, esta imbricação original e irredutível da consciência teórica (...) e da consciência prática (...) nem que seja para evitar a arrogância de todas as "boas consciências". É preciso lembrar incessantemente que alguma irresponsabilidade se insinua por todo o lado em que se exige a responsabilidade sem se ter suficientemente conceptualizado e tematicamente pensado o que "respopnsabilidade" quer dizer: quer dizer, por todo o lado. Por todo o lado, podemos dizê-lo a priori e de forma não empírica, porque se a imbricação entre o teórico e o prático, de que falávamos há instantes, é, é certo, irredutível, a heterogeneidade entre as duas ordens assim intrincadas é-o igualmente (...) devemos concluir que não somente a tematização do conceito de responsabilidade é sempre insuficiente, mas que o será sempre, porque deve sê-lo. O que vale para a responsabilidade vale também, pelas mesmas razões, para a liberdade ou para a decisão336.

334 PEREIRA, Gonçalo Zagalo. A desconstrução derridiana ou a hospitalidade incondicional. Universidade de

Coimbra. Dissertação de mestrado, 2005, p. 62.

335 DERRIDA, Jacques. Uma certa impossibilidade impossível de dizer o acontecimento. Transformação:

Revista da Universidade de São Paulo. Vol 35, n.02, 2012, p. 232.

109 Se o plano da responsabilidade, assim como o da liberdade e o da decisão, estão sempre sujeitos ao rastro da temporalidade, ou da diferensa, poderíamos propor, em cadeia conceitual, que a experiência do impossível e do acontecimento estariam, desde si e entre si, jogadas ao plano da invenção, ou seja, uma invenção do impossível (que vem do impossível). Se há, pois, a possibilidade de uma invenção, deve ela ser absolutamente estranha a qualquer programa, a qualquer tentativa de antecipação. Isto é, a invenção reinventa o contexto que intenta se aplicar no "a cada vez", sem se deixar totalizar. Portanto, tudo acontece na medida da singularidade infinita de cada contexto e é nele que se forma o sentido de todo o acontecer, mas este acontecer é uma negociação com aquilo que excede o contexto do acontecer e o sentido que daí advém e que é, por conseguinte, inegociável337.

Uma vez mais, é certo, mas para mim uma vez mais é sempre de novo, de cada vez de modo inteiramente novo, uma vez mais uma primeira vez, uma vez mais e de uma vez por todas a primeira vez. Não uma única vez por todas, mas uma vez por todas a primeira vez338.

Nesse contexto, a invenção é a própria condição da cursividade do tempo e do horizonte dos possíveis: a própria in-condição do mundo. Uma invenção deve ela própria inventar as suas condições de possibilidade que, assim sendo, são as condições da impossibilidade, onde a incompatibilidade com quaisquer condições pré-definidas é quem ou o que funda o acontecimento impossível, sem espessura. Mas essa fundação não é uma revelação ou programação, mas sim uma invenção pura que já nasce contaminada339.

3.2.1 Khôra: o lugar da invenção

A invenção, que sempre se destina ao outro (ao absolutamente qualquer outro), não cai nem na modalidade do como tal nem do como se. Por um lado, o absolutamente outro chega e acontece como alguém ou alguma coisa singular enxertada no plano da significação (ser), mas permanecendo sempre excessivo e espectral, sendo o rastro que produz o hífen - a hifenização do acontecimento im-possível340. Um acontecer que está contido ao mesmo tempo que independe das possibilidades oferecidas de antemão e, por esse motivo, a regra de seu acontecer é em si mesma incondicional e condicionada, agindo como uma ruptura ao plano

337 Idem. Psyché. Inventions de l´autre. Paris: Galilée, 1987. p, 160. 338 Idem. Vadios. Coimbra: Palimage, 2003, p. 38.

339 DERRIDA, Jacques. La dissmeminacion. Paris: Seuil, 1972.

340 PEREIRA, Gonçalo Zagalo. A desconstrução derridiana ou a hospitalidade incondicional. Universidade de

110 prévio de significações. A experiência do impossível da desconstrução é, logo, a experienciação do impossível e a "única invenção possível"341.

O outro é mesmo o que não se inventa, e é portanto a única invenção no mundo, a única invenção do mundo, a nossa, mas aquela que nos inventa. Porque o outro é sempre uma outra origem do mundo e nós estamos por inventar. E o ser de nós, e o próprio ser. Para lá do ser342.

É no contexto do acolhimento ao outro, portanto, que o im-possível "tem lugar". No entanto, esse "ter lugar" não remete propriamente a uma vinda à presença. O acontecimento tem lugar cedendo o lugar - como um deserto dos desertos - mas nunca ele próprio toma o lugar, a não ser por uma tomada provisória como inscrição de um excesso que interrompe a tomada definitiva de um lugar. O nome inominável desse lugar é a khôra, reproblematização intradizível da discussão intuída por Platão no diálogo "Timeu". "Ainda que digam respeito ao próprio nome de khôra ("lugar", "local", "localização", "região", "território" (...) khôra, não se reduz, acima de tudo, ao seu nome"343. Ou, o que daria no mesmo, falar na intraduzibilidade da khôra seria remontar o político, indo do mais antigo e ancestral ao mais absolutamente novo e imprevisível. O impossível faz-se "possível" dando lugar às possibilidades de ser e à tomada de lugar daí resultante, mas ele próprio permanece sempre impossível e, por conseguinte, sem lugar próprio.

É necessário estarmos atentos que a zona indecidível em que figura a khôra não pode ser identificada como uma certa ideia que remeta-a ao caos ou a um cosmos absurdo que aterroriza, domado por uma volúpia niilista que, ao fim e ao cabo, apazigua o desejo de totalidade, já que uma "economia geral" do mundo sugere, como vimos, uma dispersão infinita. A reinterpretação de Derrida dessa estranha lógica do lugar sem lugar que dá lugar, transpassa toda a obra do autor, e não apenas na sua análise da recentemente referida obra de Platão. A khôra seria, portanto, aquilo que expressaria a configuração do lugar de inscrição de "tudo o que o mundo se marca"344.

O mundo é a cadeia de inscrição ou o que resta da passagem de algo que nunca se inscreve ou se passa (rastro). E lançando ao pensamento da hospitalidade, khôra é o lugar de

341 Idem. Psyché. Inventions de l' autre II. Paris: Galilée, 2003, p. 27. "L´interét de la déconstrucion, de sa force

et de son désir, si elle en a, c´est une certaine experiénce de l´impossible: c´est-à-dire (...) de l´autre, l´experiénce de l´autre comme invention de l´impossible, en d´autres termes comme la seule invencion possible". (tradução minha).

342 Ibidem, p. 60. "L´autre, c´est bien ce qui ne s´invente pas, et c´est donc la seule invencion au monde, la seule

invencion du monde, la nôtre, mas cella qui nous invente. Car l´autre est toujours une autre origine du monde et

nous sommes à inventer". (tradução minha).

343 DERRIDA, Jacques. Khôra. Campinas: Papirus, 1995, p. 16-17. 344 Ibidem, p. 48.

111 acolhimento do absolutamente outro que é puro espaçamento sem espaço próprio. É tanto o "algures" absolutamente escapatório ao plano da significação que resulta desse espaçamento, como o tempo sem tempo e sem origem que nunca passa ou que nunca se inscreve como tempo presente, como experiência do im-possível. O absolutamente outro, que nunca passa, mas dá lugar à experiência do acontecimento impossível, cuja vinda é, portanto, absolutamente por vir - permanece por vir - na medida em que se anuncia em um instante tão instantâneo que dele só resta o rastro ou a assombração. Esta possibilidade do impossível é a possibilidade im-possível de acolher para bem além do que é possível acolher, ou seja, é a hospitalidade como "possibilidade" da impossibilidade: a desconstrução como hospitalidade

incondicional na cena de um tempo fora dos eixos (out of join) fraturado pela surpresa.