• Nenhum resultado encontrado

O herdeiro que atraiçoa Hamlet e a fantasmagoria fora dos eixos

4.2 Tecnocapitalismo democrático

4.2.4 O herdeiro que atraiçoa Hamlet e a fantasmagoria fora dos eixos

A condição fantasmagórica do estrangeiro que assombra a pretensão de totalidade (ou de soberania) não deve ser pensada como o efeito do testemunho de uma passagem, ou de um tempo-presente já passado. Os fantasmas, lembra-nos Derrida em sua releitura de Marx, são aqueles que nunca aparecem na modalidade do aparecer fenomenológico, portanto não se inscrevem em nenhuma instância senão como o seu rastro - no rastro como apagamento ou esquecimento do seu próprio rastro ou das suas cinzas. Logo, como nunca aparecem mesmo estando sempre presentes, os fantasmas estão ainda e sempre por vir: já estiveram entre nós, mas no instante em que assumem a condição de fora da cronologia, retiram-nos o acesso possível, permitindo demarcá-los temporalmente na cena do impossível. Como efeito de suplementariedade, o fantasma é justamente a figura que colore o campo não preenchido: é o que vem sempre de novo, porém sempre outro, na reiteração de sua visita. O fantasma é aquele que vê sem ser visto. Sem se deixar ver, portanto, a força de sua presença é constatada pela aparente inofensividade de sua ausência: o espectro471. Os espectros de Marx concentrariam sua força, portanto, nessa aparente inofensividade que retorna sem nunca ter se ausentado. Um espectro é sempre um retornado. Não podemos controlar suas idas e vindas porque ele começa por regressar472.

470 DERRIDA, Jacques. Espectros de Marx. O Estado da dívida, o trabalho do luto e a nova Internacional. Rio

de Janeiro: Relume, 1994, p. 85.

471 PEREIRA, Gonçalo Zagalo. A desconstrução derridiana ou a hospitalidade incondicional. Universidade de

Coimbra. Dissertação de mestrado, 2005, p. 54.

472 DERRIDA, Jacques. Espectros de Marx. O Estado da dívida, o trabalho do luto e a nova Internacional. Rio

148 O fantasma é sempre uma repetição do irrepetível, cuja sobrevivência se dá por assombração. Sua vinda é sempre um simulacro, uma perda irreparável que nunca ocorreu - um acontecimento aporético que se esvai como a morte do morto: quando me preparo para o

saudar, ele já partiu e, logo mais, prepara-se para vir. A relação com essa morte do morto que aqui está, mas que volta em breve é o luto. Luto que se faz de antemão e simultaneamente

tarde demais. Por esse motivo, a relação é aqui estabelecida entre o fantasma e o hóspede; entre o fantasma e o estrangeiro: o fantasma não pode ser convidado. Ele se assemelha à figura do visitante inesperado que clama hospitalidade - na sua condição de visitante inesperado que, na sua chegada, não se deixa ver nem ouvir, ainda que ele mesmo tudo veja através de seu acesso clandestino perante o mundo e que, por isso, surpreende sempre aquele que o guarda, vendo sem ser visto, vindo sem ser notado - exige a cada instante o acolhimento incondicional sem dar tempo à antecipação.

A hospitalidade incondicional atua como herança do desejo de acolher - a finitude que deseja acolher incondicionalmente o infinito que herda o desejo de acolher, mesmo em estado de vigília473. A herança, assim como o dom, não deve aparecer como tal; por isso o herdeiro herda a injunção com a própria herança. Em outras palavras, herdar é também contra-assinar. Herdar é também trair, e essa infidelidade é talvez a maior amostragem de fidelidade474. A herança exige ser reinventada, não sendo, portanto, integralizada como tal. Essa necessidade de reinvenção impõe uma contra-assinatura, pois "uma contra-assinatura põe algo de seu, no curso e para além da leitura de um texto, que nos precede e que reinterpretamos de maneira tão fiel quanto possível, nele deixando uma marca"475.

Hamlet é, na leitura de Derrida, a figura dessa herança paradoxal, tal qual Marx hoje nos pode ser apresentado: o fantasma do pai, o outro espectral que anuncia o que não lhe é propriamente claro, mas que agora é já inescusável. O "out of joint" que herda a missão de restituir o tempo em seus eixos. O fantasma de seu pai que lhe invoca a responsabilidade de honrar sua morte, vingando-se do assassino, o príncipe Cláudio, irmão do Rei e tio de Hamlet. Hamlet deve assumir o peso de tal herança. Herdar é, aqui, de algum modo, exorcizar ou espantar os espectros que assombram, expulsando do corpo o fantasma que está a possuí-lo.

473 "A singularidade de quem se mantém em vigília somente pode ser definida na hostilidade e na hospitalidade

que este mantém com a singularidade de quem permanece no sono; por isso, velar é uma ética. A espera pelo outro não constitui uma experiência pura, mas supõe um impedimento do perigo e uma pressuposição desse perigo". Cf: EYBEN, Piero. AnArquia do ensaio (Entre Experiência e desastre), p. 2. Disponível em http://www.scielo.br/pdf/alea/v13n2/07.pdf, acesso em agosto de 2014.

474 Sobre o tema da fidelidade da tradução, conferir o belo ensaio de Derrida. DERRIDA, Jacques. Fidelidade a mais de um - merecer herdar onde a genealogia falta. Tradução de Paulo Ottoni. In: OTTONI, P. Tradução

manifesta: double bind & acontecimento. Campinas: Ed. Unicamp, 2005, p.164-198.

149 Hamlet deseja o exorcismo porque deseja curar-se da condição de herdeiro. Está "fora dos eixos" por amaldiçoar sua herança, tarefa que lhe foi consignada por um pai ancestral, um pai que o trouxe ao mundo, mas que intentou apoderar-se de seu mais íntimo, assombrando-o e doando-lhe uma tarefa que lhe é incompreensível e ao mesmo tempo não pode se livrar476. É por esse motivo que Hamlet conspira contra a responsabilidade infinita que pesa sobre sua missão. Como poderia o príncipe Hamlet vingar a morte de seu pai se o tempo está sempre fora dos eixos? O fantasma requer o retomar de um tempo para sempre perdido, porém não se pode negar o tempo do fantasma, que nunca cessa. Mas a aporia permanece. Como responder "a tempo" a injunção fantasmagórica, se é impossível condensar o tempo do espectro que já não está entre nós? Como solucionar o paradoxo de investir-se na condição impossível de condensar o instante meteórico do apelo fantasmagórico na finitude do tempo presente que reivindica uma resposta?

A responsabilidade infinita perante toda a memória foi doada a Hamlet de forma violentamente ingrata: seu pai, ora fantasma, deu-lhe a vida e agora retorna de um passado imemorial e de um futuro que não é antecipável para anunciar o seu legado e ajustar as contas. A cada instante, há a necessidade de uma prestação de contas a uma multidão de espectros que se anunciam477, pois cada instante espectral "fora dos eixos" anuncia a singularidade de um espectro absolutamente outro. Nesse sentido, a injunção fantasmagórica, virtualmente reiterada a cada instante, exige o impossível e ordena: "é preciso (il faut) fazer o impossível, é

preciso ir aí aonde não se pode ir (...) a única decisão possível passa pela loucura do

indecidível e do impossível: ir onde é impossível ir"478. "Time is out of joint" é uma sentença inexorável, mas é ela que obriga ao empenho em desejar a justiça, em calcular infinitamente a vinda do outro à presença, velando sem horizonte de espera, segundo um messianismo desértico sem conteúdo e sem Messias identificáveis479, isto é, sem horizonte de consecução. Hamlet não pode ser senão infiel à sua herança, na medida em que a tarefa nela implícita é impossível de cumprimento: é impossível fazer o impossível como tal480. Conjura ele contra a disjunção do tempo conspirando contra a herança legada. Mas, ao mesmo tempo, Hamlet deseja o impossível. Repete a injunção porque deseja o seu cumprimento e o fim da

476 DERRIDA, Jacques. Espectros de Marx. O Estado da dívida, o trabalho do luto e a nova Internacional. Rio

de Janeiro: Relume, 1994, p. 34-41.

477 Ibidem, p. 13. "Espíritos. É preciso contar com eles. Não se pode não dever, não se pode não contar com eles,

que são mais de um: o mais de um."

478 Idem. Salvo o nome. Campinas: Papirus, 1995, p.42

479 Idem. Espectros de Marx. O Estado da dívida, o trabalho do luto e a nova Internacional. Rio de Janeiro:

Relume, 1994, p. 47.

480 PEREIRA, Gonçalo Zagalo. A desconstrução derridiana ou a hospitalidade incondicional. Universidade de

150 assombração. Por conseguinte, conjura sua herança, sendo fiel pela impossibilidade de fidelidade. Desejando o impossível, ele consagra a injunção do desejo do outro: o desejo do impossível. Mas essa afirmação só se dá se for reinventada, ou melhor, permitindo-se reinventar por ela. A cada instante presente ele tem que inventar a regra do acolhimento dos espectros que nunca se mostram como tal. Apenas infundem medo481. O exorcismo, ao invés de expulsá-los, acolhe os fantasmas como recém-chegados, dando-lhes a sobrevida e a sobrevivência de um porvir que é também a guarda impossível da memória do próprio por vir. É preciso (il faut) saber se endereçar (to address) ao fantasma. Mas esse saber implica, de certo modo, um não saber, ou seja, implica ter em conta uma razão que ouse não saber, logo, uma razão investida em certa experiência de fé482: "entre crer saber e saber crer". Responder ao fantasma consiste no desejo de se endereçar ao outro em uma experiência singular. Mas esse desejo de saber de nada tem a ver com o desejo do saber absoluto. A experiência do saber acolher recolhe-se em uma experiência de não saber. É, portanto, a desconstrução do saber como cálculo - do saber como submissão da razão a um imperativo - do saber determinado pela mediana. Enfim, é o exorcismo radical para além de todo o saber

possível.

A experiência com a conjuração do tempo vivida por Hamlet remete-nos novamente ao âmago da perquirição aqui pretendida: herdar os espetros de Marx, tal como o protagonista da obra shakespeariana herdou, significa pensar que não há desconstrução possível e praticável senão a partir de um retorno às sombras fantasmagóricas de Marx483, mesmo que tal retomada, embora urgente, não signifique, em absoluto, um "viva Marx". Ao contrário: a desconstrução das teses metafísicas do marxismo atuam também como um alerta de que suas críticas permanecem válidas, embora insuficientes. O verdadeiro herdeiro assume a dificuldade de conjurar e conjugar as ideias herdadas com o por vir. Com a democracia por vir. Até porque, como nos dias de hoje, "jamais a violência, a desigualdade, a exclusão, a fome e, portanto, a opressão econômica afetaram tantos seres humanos, na história da terra ou da humanidade"484. O renascer das cinzas para dar conta de uma crítica concisa à democracia capitalista supera Marx sem correr o risco de neutralizá-lo. É o que mantém intranquila a cena festiva e o efeito devastador do tecnocapitalismo.

481 DERRIDA, Jacques. Espectros de Marx. O Estado da dívida, o trabalho do luto e a nova Internacional. Rio

de Janeiro: Relume, 1994, p. 194. "É da essência do fantasma em geral infundir medo".

482 Idem. Fé e saber. As duas fontes da “religião” nos limites da simples razão. In: DERRIDA, Jacques.

VATTIMO, Gianni. A religião. São Paulo: Estação Liberdade. 2004, p. 19.

483 Idem. Espectros de Marx. O Estado da dívida, o trabalho do luto e a nova Internacional. Rio de Janeiro:

Relume, 1994, p. 125.

484 DERRIDA, Jacques. Espectros de Marx. O Estado da dívida, o trabalho do luto e a nova Internacional. Rio

151