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Como vimos em Levinas e Derrida, o pensamento da hospitalidade remete à dimensão da exterioridade, o que pode ser traduzido como uma questão que ressoa a figura do estrangeiro, como trabalhei logo no início da tese. Uma questão que vem do estrangeiro e que assombra a soberania da ipseidade, para retomar o ponto em que pretendo desenvolver neste capítulo. É importante anotarmos que o conceito de "estrangeiro" assume-se pelo radical da palavra latina etranger como "estranho", ou aquele que vem de fora e estranha a cultura, a língua e o modo de ser do nativo. Vimos já que a própria condição de se pensar a si mesmo é também a condição de se pensar a exterioridade do outro, que condiciona o pensamento soberano do Ipse.

Hospitalidade ao outro que não o outro-de-si marca a aporia da hospitalidade. O acolhimento é o acolhimento do totalmente outro "em si", mas esse pressupõe sempre já um outro acolhimento: o acolhimento do outro que gera a origem do meu mundo (da minha casa) sem nela se instalar. É repetindo de cada vez como a primeira vez esse sempre já não fenomenológico que o fenômeno se dá como tal.

Devemos sempre recordar que o termo latino hostis (contido na expressão que designa o poder soberano de decidir acerca da hospitalidade: hosti-pet-s), faz notar que o termo dele derivado, hospes, significa literalmente o dono da casa, o paterfamilias que, por possuir uma

112 casa, pode ou não dar hospitalidade345. Há contudo algo nessa etimologia que assombra Benveniste, autor importante para Derrida no tema da hospitalidade, um misterioso - pse de

ipse, de onde deriva o "pet" de hosti-pet-s e o "pot" dos podere, possum e potere latinos (o

poder do hospes, aquele que decide acerca da hospitalidade). Mas como será que Derrida, por sua vez, traduz esse poder? I-pse é literalmente o "eu posso" daquele que decide acolher. Contudo, e é aí que entra a singularidade da hospitalidade derridiana em sua releitura da hospitalidade tradicional: esse "eu posso" não pode ser somente volitivo nem intencional, rompendo assim com a intencionalidade fenomenológica. Assim, eu "posso acolher" quer dizer unicamente "eu possuo condições para isso", isto é, eu possuo uma casa, uma cidade, uma cidadania, um Estado, uma identidade ou qualquer outra instância similar que pode servir de base para esse acolhimento. O poder que subjaz a determinação do i-pse não é visto como um poder ativo nem uma decisão egológica do receber outrem. Ao contrário, o acolhimento é a própria expressão da ipseidade daquele que acolhe. Hostis é, portanto, simultaneamente aquele que acolhe (o hóspedeiro) e aquele que é acolhido (o hóspede)346. Eles não se confundem. O que ocorre é que aquele que acolhe só se torna acolhedor porque dá acolhimento. Esta "passividade" por parte do sujeito (um "eu", uma língua, uma soberania, uma cultura, uma cidade, uma família, um organismo dentre inúmeros outros exemplos possíveis) que acolhe, perturba a própria lógica da subjetividade e da liberdade entendida pela dinâmica da tolerância.

Com respeito a esse acolhimento ou hospitalidade incondicional, Derrida estabelece justamente a distinção entre o convite (invitation) e a visitação (visitation). Enquanto convite é o dirigido a quem, de algum modo, já preenche o rumo da cadeia prévia de expectativas, segundo normas sócio-político-morais, a visitação rompe com conjunto natural da organicidade temporal e surpreende o tempo, sem notificá-lo antecipadamente. A distinção entre ambos não é do tipo quantitativo, pois não se inscrevem gradualmente em uma mesma dimensão processual - como se fossem dois momentos distintos da hospitalidade inseridos no campo do possível. Convite e visitação são duas dimensões que se compatibilizam por sua incompatibilidade. Exatamente demarcam a estrutura aporética da própria compreensão da hospitalidade.

Para compreendermos essa problematização aporética, devemos ter em mente que a relação de hospitalidade com o convidado é do tipo horizontal, ou seja, é por um lado, uma

345 BENVENISTE, Émile. “L’hospitalité”, Le vocabulaire des institutions indo-européennes. 1. Économie, parente, société. Paris: Minuit, 1969, p. 94

346 PEREIRA, Gonçalo Zagalo. A desconstrução derridiana ou a hospitalidade incondicional. Universidade de

113 relação que implica um código comum e uma demarcada reciprocidade (ele entra no espaço do próprio vindo de um outro espaço próprio), e que, por outro, implica uma pre-visão - exatamente o olhar prévio, inserido num horizonte antecipativo, que amortece o impacto da surpresa: o convidado é visto quando se espera por ele, porque a hora da sua vinda está prevista e pode até aguardá-lo à janela para vê-lo vir. Já a relação sem relação com o visitante é do tipo vertical: o visitante "cai sobre o hospedeiro", meteoricamente, interrompendo e estilhaçando o curso do esperado no cotidiano e do conjunto prévio de possibilidades pré- imaginárias347. Esse desenlace do tempo previsto nos auxilia a compreender o "très-haut" (muito elevado) que Levinas348 e Blanchot349 associam ao absolutamente outro: na impossibilidade de antecipação de sua vinda, o outro fende o horizonte enxertando-lhe com uma verticalidade dissimétrica e irredutível a qualquer configuração espacial concebida pela ipseidade (estranha, portanto, ao projeto investido pela consciência intencional husserliana, como trabalhado anteriormente).

O tempo como convidado é o tempo cronológico pensado a partir do presente: o convite endereçado antecipa a sua concreção que, mesmo que seja diferida indefinidamente, está já sempre pre-vista. Ele aparece à hora marcada (mesmo que chegue adiantado ou atrasado, mantém ordenado o conjunto prévio de expectativas). Em contrapartida, o tempo do

visitante é o tempo é o tempo espectral do fantasma: a vinda do visitante deu-se sempre já em

um tempo imemorial e irredutível a qualquer presente-passado e um porvir absolutamente aberto e eternamente diferido porque igualmente irredutível a qualquer presente-futuro. Por isso, o visitante está sempre já ao mesmo tempo radicalmente adiantado e radicalmente atrasado. Adiantado porque a sua chegada é inantecipável e atrasado porque, ainda que sua vinda seja breve e inoportuna, ela nunca chega propriamente, nunca coaduna-se com a luz da presença. Quando sua chegada inesperada concilia-se com a acomodação ao tempo do hóspede, ele já partiu. É o luto próprio pela morte do outro. Quando se acredita que enfim ele virá, verás que ele sempre está por vir350. Esse é o traço aterrorizante da hospitalidade. A hospitalidade, portanto, é sempre catastrófica. Não há festividade no pensamento da

347 PEREIRA, Gonçalo Zagalo. A desconstrução derridiana ou a hospitalidade incondicional. Universidade de

Coimbra. Dissertação de mestrado, 2005, p. 57-58.

348 LEVINAS, Emmanuel. Totalité et infini. Essai sur l' extériorité. Paris: Kluwer Academic, 1971,p. 211. “Le

visage est présent dans son refus d'être contenu. Dans ce sens il ne saurait être compris, c'est-à-dire englobe.”

349 BLANCHOT, Maurice. Le très-haut. Paris: Gallimard, 1988.

350 DERRIDA, Jacques. Anne Dufourmantelle convida Jacques Derrida a falar da hospitalidade. São Paulo:

114 hospitalidade (como alguns a assim entendem). A hospitalidade é sempre o trabalho do luto de ter que lidar com a fantasmagoria do outro351.

O convidado é recebido, como se diz popularmente, "na medida do possível", isto é, o hospedeiro despenderá de todos os artifícios para saber recebê-lo bem. Já o visitante exige o impossível porque exige acolher um excesso absolutamente fora do programa - irredutível às múltiplas possibilidades do acolher. Acolher o visitante seria, portanto, acolher para além da capacidade do acolhimento, logo, é acolher o impossível. O acolhimento possível preenche os requisitos do acolhimento do convite.

O visitante, portanto, exige sem poder de exigir, o acolhimento imediato e excessivo, avesso ao controle de uma preparação prévia, na urgência de um instante tão instantâneo que desagrega a cursividade do tempo. Este recém-chegado (arrivant) ou hóspede absoluto (hôte

absolu) - esse que vem (ce qui arrive) - demarca propriamente a ideia de acontecimento. O

acontecibilidade do acontecimento é tal qual esse que chega inesperadamente. O acolhimento ao recém-chegado será, portanto, uma hospitalidade ao que/quem eventualmente chega ou acontece: a hospitalidade ao acontecimento (événement)352 da vinda do outro singular.

O recém chegado de frescor: este nome pode designar, é certo, a neutralidade do que

acontece, mas também a singularidade de quem chega, daquele ou daquela que vem, advindo aí onde não se espera, aí onde se espera sem o esperar, sem se esperar, sem saber o quê ou quem esperar, o que ou quem eu espero - e é a própria hospitalidade, a hospitalidade ao acontecimento353.