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3.4 A lei e as leis da hospitalidade

3.4.1 Hostipitalidade e auto-imunidade

É natural perguntarmo-nos sobre a ameaça que esse hóspede pode significar àquele que o acolhe. Esse hóspede do qual não espero reciprocidade, mas espero algo. Não esperar nada não seria, de algum modo, trair a lei da hospitalidade? O que espero desse hóspede que pode vir a ser hostil? Como proceder à hospitalidade incondicional se, ao que tudo indica, é inescapável recebê-lo como hóspede e ao mesmo tempo como inimigo? Há como fugir desta tensão? Da tensão dissimétrica de estar ao mesmo tempo na lei e nas leis da hospitalidade?

Remeto aqui o leitor ao próprio texto do autor365:

Como distinguir entre um hóspede (guest) e um parasita? Em princípio, a diferença é estrita, mas para isso se exige um direito; é preciso submeter a hospitalidade, a acolhida, as boas-vindas, a uma jurisdição estrita e limitativa. Nenhum que chega é recebido como hóspede se ele não se beneficia do direito à hospitalidade ou do direito ao asilo, etc. Sem esse direito ele só pode introduzir-se “em minha casa” de hóspedeiro, no chez-soi do hóspedeiro (host), como parasita, hóspede abusivo, ilegítimo, clandestino, passível de expulsão ou detenção.

A essa incalculável e formalizável; perfeita e insuficiente; plena e pueril; desejante e que deixa a desejar relação entre a Lei e as Leis, Derrida chamou de hostipitalidade366. Esse sintagma derridiano diz justamente que toda a hospitalidade implica de antemão a hostilidade, isto é, o hiato entre a capacidade finita de acolher no mundo e a injunção infinita ao

363 Ibidem, p. 138.

364 Ibidem, p. 139.

365 DERRIDA, Jacques. Anne Dufourmantelle convida Jacques Derrida a falar da hospitalidade. São Paulo:

Escuta, 2003, p. 53.

118 acolhimento incondicional do absolutamente outro e que exige o acolhimento efetivo e, por conseguinte, o espaço público da inscrição do significado pela linguagem. O acolhimento sempre é feito com reservas porque o hóspede pode ser também um inimigo. Lembremos que o radical hostis, como vimos, marca tanto o poder de acolher quanto a indistinção entre hóspede e inimigo.

A hospitalidade incondicional como exposição absoluta ao que vem é também a exposição imperiosa ao risco absoluto, já que este recém-chegado pode ser qualquer outro, anunciado única e singularmente. Se fosse possível antecipadamente determos segurança de que a chegada deste que se aproxima não nos causa ameaça então não se trataria de hospitalidade, uma vez que a incalculabilidade e a imprevisibilidade, de anunciam e constituem o acontecimento, estaria esvanecida. Essa exposição ao inaudito – a vulnerável ameaça de que o pior aconteça como um risco que é preciso (il faut) estar pronto a correr evita qualquer conotação moralista, uma vez que na cena da hospitalidade o bem chega já desde sempre contaminado pelo mal. A possibilidade do parasitismo é essencial à cena da hospitalidade. Toda a hospitalidade é um convite ou uma expectativa à experiência do parasitismo.

A reação natural do encontro com o recém-chegado é a do distanciamento da subjetividade e do recrudescimento das fronteiras, ambas situações articuladas pela dinâmica da soberania da ipseidade e da soberania dos Estados. Esse duplo movimento é resultado da gênese de todo colonialismo, que apaga a diferença ao relacioná-la violentamente com o mesmo, sendo também toda a gênese do ego constituinte e de toda a instância soberana. Derrida chama de auto-imunidade esta resposta da alienação originária, onde a identidade fecha-se em si para proteger-se do exterior, mas este movimento, em si mesmo, é suicidário, já que toda constituição da identidade é fruto da exterioridade. Assim, a auto-imunização é a reação imunitária que consiste em proteger o espaço confinado do próprio das invasões exteriores, acabando por se virar contra si própria, protegendo-se da sua própria auto- proteção. Antes da chegada do outro não há identidade; mas, como o acolhimento é também o que põe causa a identidade, esta tende a proteger-se.

Esse conluio é também o poder em sua finitude, a saber, a necessidade, pelo hóspedeiro, de escolher, de eleger, de filtrar, de selecionar seus convidados, seus visitantes ou seus hóspede, aqueles a quem ele decide oferecer asilo, direito de visita ou hospitalidade. Não há hospitalidade, no sentido clássico, sem soberania de si para consigo, mas, como também não há hospitalidade sem finitude, a soberania só pode

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ser exercida filtrando-se, escolhendo-se, portanto excluindo e praticando-se violência367.

Sem esse mecanismo suicidário de destruição das defesas próprias, o fechamento alérgico impediria as trocas vitais com o exterior, levando a um outro suicídio. Nenhuma instância se basta a si mesma e, por isso, toda a auto-posição implica esta estranha lógica da auto-imunização, que mais não é afinal que o desejo pré-volitivo, pré-egológico e pré- intencional que diz "sim" e que se expõe incondicional e passivamente ao outro que vem. Sem vulnerabilidade, sem fissura da fronteira, nada acontece de absolutamente novo - e a morte é justamente esse "sempre o mesmo" da autonomia. Além, a auto-imunização marca o caráter violento que subjaz a todo o acolhimento efetivo, e isso porque não há sequer desejo de relação ou trabalho de luto sem perjúrio da significação: se, por um lado, toda inscrição significante é violenta368 porque dada na forma do presente e da presença, isto, apesar de toda vulnerabilidade que todo o próprio se impõe e que resulta do desejo de acolhimento, por outro lado, a não-inscrição ou a não efetivação do acontecimento, isto é, sua resolução como silêncio finito, é sempre uma violência pior do que a violência da inscrição e da efetivação significante, restando tudo entregue, portanto, ao que Derrida chamou de "economia da violência" (tema que toquei anteriormente quando aproximei e distanciei Levinas e Derrida), que pratica a violência como condição de evitamento de uma violência maior. Trata-se, assim, de uma violência auto-imunitária que obriga uma certa inscrição do outro no espaço do próprio. Uma violência que opõe sem resolução possível estas duas violências: "O Um se faz

violência. Viola-se e violenta-se mas se institui também em violência. Transforma-se no que

é, a própria violência - que faz a si mesmo. Autodeterminação como violência. O Um se guarda do outro para se fazer violência (porque se faz violência e com vistas a se fazer

violência)". (grifos no original)369.

O "Um faz-se violência" significa, em primeiro lugar, que ele pratica a violência impondo um sentido àquilo que excede todo e qualquer sentido, apoderando-se deste que agora é nomeado e endereçado; em segundo lugar, significa que ele se inflige violência expondo-se a esse não-sentido que lhe dá sentido ao mesmo tempo em que lhe expropria todo o sentido: o Um é violência de um modo tal que violenta a própria violência, violentando-se. Se a hospitalidade incondicional é uma marca da suplementação que consiste em arquivar ou

367 DERRIDA, Jacques. Anne Dufourmantelle convida Jacques Derrida a falar da hospitalidade. São Paulo:

Escuta, 2003, p. 49.

368 Idem. A escritura e a diferença. Perspectiva, 2009, p. 145-ss.

369 DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo. Uma impressão freudiana. Rio de janeiro: Relume Dumará, 2001,

120 dar lugar àquilo que nunca acontece nem tem lugar como tal, a injunção arqui-originária que apela sem propriamente comandar (a lei sem lei da hospitalidade incondicional ou loucura pela justiça) não pode nada fazer a não ser, simultaneamente, apelar à sua interrupção como desejo do fim da violência: desejo da coincidência plena ou desejo do fim da mediação assujeitadora do significante. É, com efeito, a lei da hospitalidade incondicional como desejo de relação imediata e absoluta ao outro (justiça) que pode desconstruir toda a auto- determinação originária da auto-imunização suicidária370.

É neste espaço secreto de uma inexorável violência que se torna possível pensar a hospitalidade incondicional. É de sua zona de indecidibilidade que perfaz a tensão entre a possibilidade-impossível da hospitalidade incondicional. Dito sem rodeios: é do ininterrupto e disseminador dizer da lei da hospitalidade incondicional, de sua prática imperfeita, de seu desejo sempre a desejar, de uma economia da violência – que germinará uma maior abrangência e sensibilidade às leis da hospitalidade. É pelo além do jurídico e para além do

político que tateia a promessa da democracia por vir. O porvir da democracia por vir.

A hospitalidade incondicional – ideia que permite pensar o político e o jurídico - escandaliza as construções políticas enlatadas nas “propostas de conciliação que não entendemos”. Pressupõe o desapego das velhas certezas; o desapego da binaridade371 - um

desafio da subjetividade (se é possível ainda pensarmos nesses termos), sem pressupor um

messianismo. Talvez uma certa “messianicidade sem messianismo”372; uma “fé sem dogma”373, como nos incita a pensar Derrida.

Mas esse repensar da hospitalidade incondicional reivindicaria espaço para atuar no campo do pragmatismo político? Estaria ela relegada meramente ao campo da experiência particular privada e um romantismo argumentativo sem consequências políticas práticas, como sugeriu Rorty374? A desconstrução, ou seu outro nome, a hospitalidade, traduz-se como uma experiência passível de recair no jogo herdado pelo cosmopolitismo? Como poderíamos

370 Idem. Fé e saber. As duas fontes da “religião” nos limites da simples razão. In DERRIDA, Jacques.

VATTIMO, Gianni. A religião. São Paulo: Estação Liberdade, 2004, p. 71-ss.

371 DERRIDA, Jacques. Khôra. Campinas: Papirus, 1995, p. 9-10.

372 “Messianicidade sem messianismo. Isso seria a abertura ao futuro ou à vinda do outro como advento da

justiça, mas sem horizonte de expectativa nem prefiguração profética”. In DERRIDA, Jacques. Fé e saber. As

duas fontes da “religião” nos limites da simples razão. In: DERRIDA, Jacques. VATTIMO, Gianni. A religião.

São Paulo: Estação Liberdade. 2004, p. 29.

373 Ibidem, p. 30.

374 "Considero a las esperanzas en "La política de la amistad" una contribuición al autoajuste privado de Derrida

y al algunos de sus lectores (...) no considero (...) como contribuiciones al pensamiento político. Lo político, tal como yo veo, es una question pragmática de reformas de corto plazo y compromissos, compromissos que deben, en una sociedad democrática, ser propuestos y defendidos en términos mucho menos esotéricos que aquellos con los que superamos la metafísica de la presencia". RORTY, Richard. Desconstrucion y pragmatismo. Buenos Aires: Paidós, 2005, p. 43.

121 conduzir o pensamento da hospitalidade incondicional pensada por Derrida em diálogo com a necessidade sempre urgente de pô-la em contraste com a tolerância, ainda mais a tolerância pensada pelo horizonte jurídico ainda que na órbita de um direito cosmopolita?