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3.4 A lei e as leis da hospitalidade

3.4.2 Reinventar o cosmopolitismo kantiano

"Mesmo pelo direito à hospitalidade universal de que fala Kant, e que permanece ainda controlada por um direito político ou cosmopolítico. Apenas uma hospitalidade incondicional pode dar o seu sentido e a sua racionalidade prática a todo e qualquer conceito de hospitalidade"

Jacques Derrida375

Se, em sede grega, como vimos no primeiro capítulo, a hospitalidade é pensada em função da polis e da estrutura da democracia ateniense, na modernidade a grande contribuição sobre o tema, que por um lado extravasa as limitações do modelo grego, e por outro conserva seus princípios, vem de Kant, mais concretamente no “Terceiro artigo definido para a paz perpétua – o direito cosmopolita deve limitar-se às condições da hospitalidade universal”, em sua obra “À paz perpétua”. Kant, trilhando os passos do cosmopolitismo estóico e do cristianismo universalista proposto por Paulo de Tarso aos Efésios (rompendo com o unitarismo da polis grega) posiciona-se ao lado de uma hospitalidade universal, ou seja, uma hospitalidade que rompa com a dinâmica da especificidade geográfica como critério de exclusão. Kant tem o mérito de trazer ao plano da filosofia política, ainda que amarrada ao

plano do direito, a discussão acerca da recepção do estrangeiro que chega a um território

desconhecido376. Tem o estrangeiro o direito de não ser tratado como um inimigo. Esta hospitalidade universal é encarda por Kant como a condição de pensamento para uma paz perpétua entre todos os homens e todos os povos377.

A ideia de hospitalidade em Derrida, que aqui trazemos como possibilidade de superação do condicionamento herdado pela filosofia moderna (e seus seguidores contemporâneos como tratei anteriormente), em nada rememora a hospitalidade kantiana,

375 DERRIDA, Jacques. Vadios. Coimbra: Palimage, 2003, p. 261-262.

376 BERNARDO, Fernanda. Para além do cosmopolitismo kantiano: hospitalidade e "altermundialização" ou a Promessa da "nova Inter-nacional" democrática de Jacques Derrida. Coimbra. Revista Portuguesa de filosofia,

n.61, ano 2005 (p. 951-1005), p. 952.

122 embora tal afirmação não a desmereça378. Esta observação arqui-originária da lei da hospitalidade independe da vontade, portanto, é alheia ao imperativo categórico que obriga a acolher a partir de um ideal regulador. Em que pese ter sido Kant o autor que abre as portas para pensarmos a hospitalidade - a mesma hospitalidade pensada pelo direito internacional atual, pelas democracias liberais que hoje vigoram e por filósofos neo-contratualistas (como Habermas e Rawls) - é essa mesma hospitalidade pensada, ainda, a partir de uma série de regras a serem cumpridas pelo estrangeiro que, por si só, delimita a fragilidade e os limites deste pensamento.

A hospitalidade kantiana, em que pese seu avanço, ainda deixa explícito dois limitadores que expõem o condicionamento do acolhimento do estrangeiro. Em primeiro lugar, o direito à hospitalidade em qualquer lugar é encarado unicamente como direito de

visita e nunca como direito de residência, ou seja, todo homem tem direito de pisar em solo

terrestre de qualquer lugar do mundo, mas ainda sem direito de habitá-lo por tempo indeterminado e, em segundo lugar, é percebida outra limitação (que em verdade condiciona a primeira): a hospitalidade, como direito, permanece dependente da soberania estatal. A cultura, a língua, o direcionamento de ação das instituições, pertencem à soberania local, não estando incondicionalmente postos à disposição do estrangeiro, apenas aos concidadãos. Em Kant, a linguagem do acolhimento se confunde com a linguagem da polícia, em uma espécie de hospitalidade egocrática, onde o outro só é acolhido como estrangeiro desde que se comporte como estrangeiro379. Vejamos onde Kant, em seu projeto de paz perpétua, deixa claro as condicionantes de sua forma de compreender a hospitalidade aqui tensionada.

Trata-se, neste artigo, como nos anteriores, de Direito e não de filantropia, e

hospitalidade significa aqui o direito que tem um estrangeiro de não ser tratado

hostilmente pelo fato de estar em um território alheio. O outro pode desprezar o estrangeiro, se se pode realizar sem a ruína deste, mas enquanto o estrangeiro se

comporte amistosamente em seu posto, não pode o outro combatê-lo hostilmente.

Não há nenhum direito de hóspede no que se possa basear esta exigência (para isto seria necessário um contrato especialmente generoso, pelo qual se limitasse o tempo de ‘hospedagem’), mas um direito de visita, direito a apresentar-se à sociedade, que têm todos os homens em virtude do direito da propriedade em comum da superfície da terra, sobre a qual o ser humano não pode estender-se até o infinito, por ser uma superfície esférica, tendo que suportar-se uns juntos aos outros e não tendo ninguém

378 "Ir mais além do cosmopolitismo que não significa, no entanto, nem desacreditá-lo nem destruí-lo, mas antes,

e numa certa fidelidade à memória das luzes, pensá-lo e transformá-lo à luz de uma outra e mais elevada "ideia" de justiça e de hospitalidade". Cf: BERNARDO, Fernanda. Para além do cosmopolitismo kantiano:

hospitalidade e "altermundialização" ou a Promessa da "nova Inter-nacional" democrática de Jacques Derrida.

Coimbra. Revista Portuguesa de filosofia, n.61, ano 2005 (p. 951-1005), p. 953.

379 BERNARDO, Fernanda. Para além do cosmopolitismo kantiano: hospitalidade e "altermundialização" ou a Promessa da "nova Inter-nacional" democrática de Jacques Derrida. Coimbra. Revista Portuguesa de filosofia,

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originariamente mais direito que o outro a estar em um determinado lugar da terra. (grifos meus)380.

O direito de hospitalidade em Kant é, portanto, um direito que o estrangeiro tem de visitar passivamente o território que não o seu; portanto, um direito de "visitação", que pode ser exercido desde que "o estrangeiro se comporte amistosamente em seu posto". Destaquemos bem esse "em seu posto" para facilitar a compreensão de que todo o pensamento jurídico e toda construção neo-kantiana381 de compreensão da política internacional e dos direitos humanos alia-se a essa hospitalidade condicional, que nada mais é, insisto, do que um eufemismo para a tolerância.

Em que pese os avanços proporcionados pela hospitalidade kantiana, modelo esse que nem conseguiu ser implementado pela lógica soberana até os dias atuais nas relações internacionais, seus condicionantes representam ainda uma retomada, em certo grau, da tradição helênica da autonomia da polis: são os cidadãos, representados na modernidade pela abstração do Estado, que ditam as regras do feixe de terra em que o exercício de sua soberania é pressuposto, agindo nada mais do que um reflexo do direito estatal e das relações internacionais entre Estados. Quem tem o direito de acolhimento (de visitação) é o cidadão do outro Estado e que esteja disposto a ler e a cumprir a lei local, escrita no idioma local, devendo se comportar amistosamente. O comportamento amistoso é condicionado pelo direito a partir de uma série de imposições, já que o que define o jurídico é justamente a sua capacidade de instaurar e inscrever uma cadeia infinita de condições e limitações. Logo, segundo a hospitalidade kantiana, o totalmente estrangeiro responde pelo nome perante a lei em que se é sujeito de direito: ou seja, torna-se sujeito de direito aquele que passa a se portar como sujeito do direito – pertencido pelo direito, em uma clara dinâmica que permite-nos perceber todo o caráter biopolítico do direito. Nessa herança teológica secularizada, Kant pensa que nenhum ser humano pode ser excluído da partilha da terra. Mas se o direito natural à propriedade de um feixe de terra é condicionado aos ditames da soberania estatal e do direito internacional, o direito de hospitalidade deve se acomodar aos seus preceitos. A conclusão lógica em que chagamos ao analisarmos todo o grau de condicionantes impostos

380 KANT, Immanuel. A paz perpétua. São Paulo: L&PM, 1989, p. 79.

381 É importante aqui rapidamente diferenciarmos a escola neokantiana, personificada por um grupo de filósofos,

principalmente da Alemanha, cujos principais expoentes são Ernst Cassirer, Paul Natorp e Hermann Cohen, que, a partir de meados do século XIX, preconizou o retorno aos princípios orquestrados por Immanuel Kant em oposição, principalmente, ao idealismo alemão que predominava ao tempo, do aqui chamado neo-kantismo, que se trata de uma reaproximação as prerrogativas de Kant por parte de filósofos contemporâneos como Habermas, Rawls e muitos outros.

124 pelo pensamento de Kant e seu cosmopolitismo é de que não existe direito de hospitalidade em sua proposta, mas sim um direito condicionado de visita temporária.

Derrida também é atento à contradição impressa pela própria estrutura do pensamento kantiano, no plano da razão prática quando esta choca-se com sua proposta de hospitalidade. Na polêmica com Benjamin Constant, sobre uma suposta possibilidade moral de se fazer uso da mentira em nome da humanidade, o pensador de Königsberg entendia que nenhuma pessoa, sob qualquer hipótese, tem o direito de mentir. Nem mesmo aquele que abriga em sua casa um fugitivo de uma ameaça injusta. Para Kant, se pessoas procuram esse fugitivo abrigado por mim, mesmo tendo eles a visível intenção de matá-lo, ainda assim devo dizer que sei onde ele está. Não posso mentir afirmando que não sei onde o fugitivo está, pois isso contraria o supremo imperativo de dizer a verdade382. Kant compreende o imperativo categórico – em toda a sua manifesta relação teológica, ainda que com uma religião iluminada pelas luzes, principalmente pela religião cristã383 - como o imperativo da razão, o qual não admite qualquer previsão possível de mácula. No caso em tela, arrisca-se entregar o hóspede à morte, mas não arrisca-se a mentir. Vale mais entregar alguém à morte do que despir-se do seu dever moral consigo próprio, que marca a liberdade iluminista. “Vale mais romper com o dever de hospitalidade do que romper com o dever absoluto da verdade, fundamento da humanidade e da sociedade humana em geral (...) do ponto de vista do direito, o hóspede, mesmo quando bem-recebido, é antes de tudo um estrangeiro, ele deve continuar estrangeiro”384. Nota-se que a questão da hospitalidade em Kant ainda é uma questão relacionada ao mesmo e não endereçada ao outro. É ainda imersa no jogo de linhas demarcadas da tolerância.