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Um dos outros nomes atribuídos metonimicamente à estratégia da desconstrução poderia ser identificado a partir do seu conceito de “différance”, construção que situa uma dissimetria conceitual acerca do conceito de “diferença”, perceptível apenas pela escrita. Muitos autores traduziram para o português esta ideia derridiana por “diferança” ou “diferência”, mas tais traduções não atendem ao jogo linguístico proposto pelo autor – que enseja a própria quebra do conteúdo lógico do termo – esvaindo por completo a ruptura de sentido que há por trás desta proposta. Outras propostas mais atentas, traduzem-na como "dyferensa", preservando o valor fonético do termo162.

Entre o termo "différence", escrito gramaticalmente de forma correta, e o neologismo derridiano "différance" existe uma diferença perceptível apenas pela grafia, mas imperceptível pela fala. Ambos os termos são pronunciados da mesma forma, mas contém uma pequena diferença (de apenas uma letra na escrita) que traz o tensionamento para além do modelo

160 Idem. Gramatologia. São Paulo: Perspectiva, 2004, p. 33-79.

161““Desconstrução” significa, também, uma ousadia para além das moderações, dos controles e meios-termos

das tradições, dos meios-termos intelectuais tão bem cultivados por certos tipos de pensamento que fazem de seu pretenso equilíbrio sua tentação maior; através da tensão de fronteiras do pensamento, chega-se à des- neutralização de todo e qualquer pensamento” In SOUZA, Ricardo Timm de. Justiça em seus termos. Dignidade

humana, dignidade do mundo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 95-96.

162 É a estratégia adotada por Rodrigo Barros Oliveira, recepcionada por Moysés Pinto Neto in PINTO NETO,

67 padrão de construção de conceitos filosóficos. Daí a necessidade de uma tradução para a língua portuguesa que atenda a esses dois elementos (grafia e pronúncia)163. Podemos interpretar o conceito de diferensa, em alguma medida, como a vingança da escritura em relação à fala164, uma vez que sua sutileza gráfica só pode ser percebida lendo-a em um texto, e não pelo recurso do som. Para Derrida, este neologismo não corresponde a um conceito165, como os demais conceitos filosóficos, pois demarcaria a própria desestabilização da ideia de conceito - do próprio conceito de conceito.

O que se pode afirmar desta propositura derridiana é que ela escapa às barreiras impressas pelo plano lógico. Entre a “diferença” e a “diferensa” é possível perceber que há uma distinção na escrita das palavras, caracterizada sutilmente por uma letra. Assim, contém na estrutura representacional na escrita da palavra “diferensa” um "erro" gramatical, mas mais que isso: há uma estranheza, uma animosidade, uma tensão. Posso dizer tudo dela menos o

óbvio. Existe um dizer maior do que aquilo que a própria palavra diz. Um descaminho

potencial que se diferencia de si mesmo. A reserva de dúvida inscrita em seu próprio plano interior. Derrida articula uma razão diferancial (ou uma pulsão diferancial, para resguardar aqui a influência de Freud em seu pensamento e também escapar, em alguma medida, do potencial logocêntrico); algo que servia para esclarecer, diferenciar, mas agora assume tarefa de desestabilizar. Transmutar a própria ideia de limite. “Uma ordem que resiste à oposição, fundadora da filosofia, entre o sensível e o inteligível”166. A "diferensa" procura retirar o conceito de seu sossego teórico e colocá-lo no plano concreto do mundo da vida.

A “diferença”, gramaticalmente correta, provém do verbo “diferir”, que pode significar, em primeira ordem, uma ação de “remeter para mais tarde”, em uma operação que

163 Por isso, aderi a tradução proposta por Ricardo Timm de Souza, "traduzindo" o termo como diferensa,

proposição que manteria o jogo de sentido objetivado, ainda que incompleto, pois o diferenciador apontado pela letra "a", no neologismo derridiano, é carregado de sutilezas importantes, dentre elas a relação com a primeira letra do alfabeto, guardando relação também a multiplicidade impressa pelo Álef - א - primeira letra do alfabeto hebraico (articularei de forma mais detida no próximo capítulo a "relação" de Derrida e o judaísmo). Apesar de ser um termo intraduzível por assim dizer, penso ser essa forma mais "fiel" à pretensão do autor do que as demais investidas pelas traduções brasileiras. Outra possibilidade seria trazer o termo derridiano em sua expressão original como fazem inúmeros intérpretes.

164 Bennington, abordando a temática, afirma que “ao passo que a palavra desaparece instantaneamente na hora

em que é pronunciada, a escritura dura e pode sempre estar de volta para me festejar ou me condenar. E mesmo se tenho a prudência ou a modéstia de não escrever nada de comprometedor, a escritura é na sua essência falsificável: se não se está a priori seguro de alcançar o destinatário certo, o destinatário também não está nunca

a priori certo da identidade do remetente ou do signatário”. In BENNINGTON, Geoffrey. Jacques Derrida por

Geoffrey Bennington. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1991, p. 40.

165“A diferensa, que não é nem uma palavra nem um conceito, me pareceu ser, estrategicamente, o mais próprio

a ser pensado, se não a dominar – sendo talvez aqui o pensamento aquilo que se mantém num certo nexo necessário com os limites estruturais do domínio – o mais irredutível de nossa época”. In DERRIDA, Jacques. A

diferença. In Margens da filosofia. São Paulo: Papirus, 1991, p. 34.

68 envolve o tempo que se prolonga; um desvio, uma demora; e, em segunda ordem, o sentido do diferencial (pólemos), do não-idêntico, do outro, do discernível, da dissemelhança167. Já a “diferensa” procura dimensionar, de forma conjugada, segundo Derrida, os dois sentidos que se pode auferir pelo conceito pré-original da palavra “diferença”. Tanto deixar para depois quanto sugerir o não-idêntico. A “diferensa” rompe, portanto, com a lógica do conceito de diferença”, pois este jamais carregara consigo os dois sentidos que o neologismo derridiano168

incorpora.

Nesse sentido, a diferensa, como "diferir", marca não só a dilação temporal dos presentes, mas principalmente a mediação temporal e temporizadora, o tempo antes do tempo que se inscreve na síntese passiva produzindo-a como síntese em um tempo finito. Já a diferensa, como "pólemos", marca não apenas a não-identidade ou a dessemelhança do "diferente", mas principalmente a impossibilidade de uma presença simples em geral, ou seja, a impossibilidade da auto-afecção pura que preside á noção de auto-identidade, o que possibilita uma abertura para a alteridade. Por esse motivo é necessário aqui perfilar pela pulsão diferancial, pois é nos seus passos que a categoria de hospitalidade será posteriormente sustentada, já que a aporia da hospitalidade é pensada na dinâmica aporética da temporalidade como contrapartida ao desejo de presença.