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4.2 Tecnocapitalismo democrático

4.2.2 Realinhando as estratégias do neo-evangelho

A atuação da política hegemônica liberal descambou nos tempos atuais para novas estratégias capazes de produzir e reprometer as ofertas de paz e conciliação às quais estamos acostumados. É claro que uma argumentação mais prudente em relação a essas novas fórmulas de adaptação da estratégia da hegemonia política aos corpos das pessoas demandaria uma aproximação aos trabalhos de Michel Foucault e muitos outros a respeito da biopolítica, terminologia pela qual Derrida procurou afastar-se em seus escritos, e das construções da sociedade disciplinar e do controle, tema que me afastarei por uma questão de espaço. Tendo- as como pressuposto e tomando-as de empréstimo para sinalizar a discussão, podemos analisar que no primeiro momento do capitalismo, a produção de corpos dóceis encontrou resistência, inclusive a resistência de tipo marxista, para conter o ímpeto do desejo totalizante

444 SOUZA, Ricardo Timm. Totalidade e desagregação. Sobre as fronteiras do pensamento e suas alternativas.

Porto Alegre: Edipucrs, 1996, p. 103-104.

445 Ibidem, p. 110.

446 DERRIDA, Jacques. Espectros de Marx. O Estado da dívida, o trabalho do luto e a nova Internacional. Rio

141 do liberalismo. Mas é claro que esse neo-evangelho precisaria reinventar-se para poder disseminar o seu poder. Digamos que a dinâmica de imposição de condutas, gerada pela indústria cultural e mídia, artefatos primordiais utilizados para desenvolver o tecnocapitalismo, encontraram um receptor talvez menos manipulável dos anos 60 aos dias atuais, cuja orquestração só se tornaria exitosa caso não fosse percebida como uma efetiva manipulação e sim identificada como um artefato natural da liberdade. Seria necessário um controle que invadisse a profundidade das consciências e dos corpos, integralizando o público e o privado das relações sociais. Estou me referindo aqui àquilo que Marx e a Escola de Frankfurt já assinalavam: a subsunção efetiva da vida ao capital. É essa reinvenção da biopolítica que se caracteriza como novo paradigma de poder, regulando a vida social por dentro447.

O elemento primordial do tecnocapitalismo em seu efeito imperial, ou todos os outros nomes que podemos aqui lhe conferir, não está no suposto efeito padronizador que a subsunção da vida ao capital gera: a padronização não atua no sentido de produzir unificações para instaurar uma massificação igualitária entre os viventes, devorando a diferença em nome de mentalidades homogêneas, e sim através de uma estratégia de pluralização e singularização dos indivíduos. Enquanto, nos regimes modernos, a administração dos conflitos se dava em um sentido de repressão das desavenças, no sentido de equilibrá-las valendo-se da estratégia da normalização, no atual modelo a administração dos conflitos visa integrá-los não a partir da imposição de um regulamento comum, e sim através do controle das diferenças. "A administração imperial atua, de preferência, como um mecanismo disseminador e diferenciador"448.

A massificação tem seu combustível no incentivo à diferença. A novidade está na produção de uma dupla dimensão nunca antes vista: a do poder sobre a vida e o da potência da vida, disfarçada como "direito de inventividade da vida". Tentarei esclarecer: nos dias atuais há uma clarividente complementaridade entre a democracia-liberal (eufemismo para capitalismo globalizado) e a biopolítica, no sentido de que esta só tem êxito com o auxílio da criatividade coletiva daquela. Nos anos 70, a crítica ao capitalismo, chamada de crítica artista por Luc Boltanski e Ève Chiapello449, reivindicava que o modelo político hegemônico naquele momento não mais produzisse a massificação de identidades e desse espaço para a criatividade e individualidade dos trabalhadores. A perspectiva de conseguir um emprego

447 HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Império. Rio de Janeiro: Record, 2001, p. 43. 448 Ibidem, p. 362.

142 regular e estável, mesmo que repetitivo, enfim, o sonho de entrar no regime da fábrica laboral, deixou de ser o sonho, vivido por muitas gerações, e passou a se tornar uma espécie de fardo. Exigia-se uma nova adaptação do capitalismo à demanda de inventividade reivindicada pela multidão. As duas reivindicações essenciais traduziam-se na recusa ao regime disciplinar e a experimentação de novas formas de produtividade450.

Qual foi a resposta do capital imperial a essa exigência? A resposta foi um expressivo

"sim, agora você terá espaço para expressar sua individualidade e criatividade. Isto será exigido de você!". Essa adaptação do capitalismo trouxe o maior êxito para a reafirmação da

biopolítica: o modelo de individualização e a obrigação torturante de autorrealização, demarcada pela capacidade do consumo, fizeram com que as pessoas não mais questionassem a estrutura política que as inseriu nesse contexto. Desse modo, a aparente liberdade das pessoas e o espaço para expressão das individualidades (por roupas, marcas, carros etc...) - a suposta escolha livre por uma vida autônoma - não passa de uma forma, muito bem disfarçada, de desviar os viventes do foco da crítica ao modelo de poder; o modelo de produzir alienação, como diria Marx. Desse modo, é possível afirmar que o intelecto geral da grande multidão de viventes inseridas em tal contexto (não apenas cognitivo, mas também corpóreo) é o principal suporte da biopolítica e, consequentemente, do poder soberano.

A aspiração das pessoas por uma autonomia, pela realização de uma pluralidade de atividades de ser e de se fazer, em outras palavras, de seguirem a imposição da realização pessoal, apresenta-se, em verdade, como um reservatório ilimitado de ideias a serem colocadas no mercado. Não é difícil perceber que quase todas as invenções que se alimentaram das atualizações e do desenvolvimento do capitalismo foram associadas a novas maneiras de libertação dos desejos: toda a parafernália eletrodoméstica, informática, turismo, entretenimento e até mesmo no campo da sexualidade mostra-nos isso. Em outros termos, o capitalismo mercantilizou nossos desejos, sobretudo nosso desejo de libertação, que foi recuperado e, finalmente, enquadrado ao mercado, já que mesmo o mais genuíno desejo de autenticidade foi transformado em mercadoria451.

O arquétipo que guia o conceito de "felicidade", produzido pelo tardo capitalismo, expressa-se como um fardo para os indivíduos. Nesse sentido há um tímido diálogo com a ideia de indústria cultural e vida danificada de Adorno e Horkheimer. As exigências do padrão de felicidade do capitalismo expressam a tonalidade da decepção, pois nos impõe um modelo de felicidade sem nos oferecer os meios para alcançá-la. Não temos parâmetros para

450 HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Império. Rio de Janeiro: Record, 2001, p. 295.

143 medir a viabilidade de nossos desejos, ao mesmo tempo em que a obrigação torturante de autorrealização traz limites às tentativas de encontrar rotas de fuga ao modelo opressor de ter que ser "o melhor em tudo" que só se reflete, evidentemente, na projeção financeira e na capacidade de consumir452. A capacidade de invenção de uma autonomia de vida guiada pelo consumo é cada vez mais a fonte primordial do próprio capitalismo globalizado e da democracia liberal.

Com efeito, não parece injustificável associar a euforia do tecnocapitalismo (e suas estratégias de diluição pelos corpos e mentes) com a democracia como "a mais cega e mais delirante das alucinações, ou até mesmo a uma hipocrisia cada vez mais gritante, em sua retórica formal ou jurídica dos direitos humanos"453. O projeto liberal para realmente ser tido como o último passo da história precisaria dar conta, necessariamente, de todas as contradições produzidas por ele próprio, tais como o desemprego e a fome, a imposição torturante do desejo de autorrealização pelo consumo referido acima, os trabalhos escravos ou análogos à escravidão, o problema migratório dos refugiados e apátridas bem como do tráfico de pessoas, as guerras econômicas legitimadas pelo direito internacional, o endividamento externo dos países subdesenvolvidos economicamente, indústria e o comércio de armas (inclusive as atômicas) como inscrição em pesquisa científica tida como "legal",454 além de tantos e tantos outros exemplos que poderiam permanecer sendo citados à exaustão455. Para Fukuyama, a solução para tais problemas passa pelo ideal regulador - portanto, uma abstração calculável e dogmática diante de todo o mal contido no mundo456.

Retomando o passo, as implicações destacadas acima remontariam que o principal problema da proposta de Fukuyama, e a crítica aqui podendo ser estendida também aos demais autores de tipo tradição da tolerância (apesar de todas as suas divisórias), está exatamente na falta de radicalidade, ou para fugir dessa palavra que remonta a raiz, logo a

origem, o desejo de origem, um pensamento carente de acontecibilidade457.

Já que conduzi, mais uma vez, a discussão para o terreno do acontecimento, é necessário precisar o que esse déficit de acontecibilidade representa para a filosofia política contemporânea. Enquanto o neo-evangelho pregado pelo liberalismo do fim da história só

452 Ibidem, p. 103.

453 DERRIDA, Jacques. Espectros de Marx. O Estado da dívida, o trabalho do luto e a nova Internacional. Rio

de Janeiro: Relume, 1994, p. 111.

454 Ibidem, p. 112-115.

455 Mesmo não podendo aqui aprofundar, poderíamos tranquilamente trazer a questão do extermínio de animais

que, sem ser necessário argumentar, guarda estreitíssima relação com o capitalismo.

456 DERRIDA, op. cit, p. 118-119.

457 DERRIDA, Jacques. Espectros de Marx. O Estado da dívida, o trabalho do luto e a nova Internacional. Rio de

144 consegue tratar do político a partir de um campo bem demarcado de escolhas livres, o pensamento que reivindica o acontecimento parte de outra estrutura. Qual seria então o papel legado a todos nós hoje nessa reivindicação por uma democracia do acontecimento? O objetivo do político por vir deve ser o de resistir à dominação pública e privada na qual a democracia encontra-se hoje submetida, pois perde-se, absolutamente, seu objetivo quando esta é utilizada como ferramenta ideológica do liberalismo-especulativo-tolerante. Alguém que se propõe a de fato reinventar a democracia só será digno dessa tarefa se assumir o compromisso de desalojá-la incessantemente de sua zona de conforto. Assumir o compromisso radical de deslocar o foco de compreensão da democracia de sua via formalista e pacificadora e jogá-la, de fato, no mundo da vida; nem que para isso seja necessária certa dose de violência criadora, na forma de resistência, em nome de uma verdadeira liberdade. Liberdade, nos termos aqui expostos, não se dá na dinâmica de uma escolha livre entre duas ou mais opções dentro de um conjunto prévio de possibilidades, como trata o neo-evangelho de Fukuyama. Uma escolha efetivamente livre é aquela que revolucionariamente rompe com o próprio conjunto prévio de possibilidades (desconstruindo o contínuo da história) e instaura o acontecimento.

A atitude livre, com base nessa nova dinâmica, se dá no próprio ato de modificação da cadeia de conjuntos preordenada, não sucumbindo à ordem forçada do horizonte da política liberal estabelecida, e optando pela escolha radical "impossível"458. É a disposição em pensar- se a política revolucionária como uma "experiência do impossível". A ideia perturbadora de "impossibilidade" é o que permite pensar a insurgência de uma verdadeira liberdade - uma liberdade que permita escolher, entre a "situação A" e a "situação B" - a não-escolha de nenhuma das opções, ou seja, a reivindicação por um por vir político absolutamente inusitado, pois tudo aquilo que é previsível não pode ser tido como um acontecimento, conforme aqui insistentemente tentei sustentar. A "experiência do impossível condiciona a acontecibilidade do acontecimento"459.

Mas qual pensamento poderia dar conta desse anseio pelo acontecimento? Retornar ao marxismo ou aos marxismos ou ao até mesmo daquilo que ainda se é possível inventar a respeito dessa palavra poderia dar conta da grandiosidade dessa reivindicação impossível? Há espaço para se pensar o acontecimento sem incorrer no empirismo grosseiro não atento à questão do fundamento ou ao ideal regulador produzido pela calculabilidade do direito?

458 ŽIŽEK, Slavoj. O amor impiedoso (ou: sobre a crença). São Paulo: Autêntica, 2012, p. 179.

459 DERRIDA, Jacques. Uma certa possibilidade impossível de dizer o acontecimento.Transformação: Revista

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