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Éramos adolescentes e estudávamos na mesma sala Conversávamos pouco, talvez, uma ou duas vezes na semana Mas tinha algo nele que,

nem sei o que, me interessava. Era dado a poucas palavras e a poucas

amigas e amigos. Estava no grupo dos alunos considerados medíocres

pela escola, não dava trabalho para os professores, mas também não era

aluno que se destacava nas notas, nos esportes ou em qualquer outra

coisa escolar. Podia cometer erros bobos de exercícios simples de

gramática, de contas básicas nos problemas de física, mas, por poucas

vezes, era o único a tirar nota total na difícil prova de inequações. Era

recorrente vê-lo sozinho na varanda no recreio. E com receio,

raramente, trocávamos algumas palavras. Um dia ele me disse que

sentia angústia e foi bom. Eu nem precisei dizer que também sentia.

Formávamos algo como uma cumplicidade de não saber. Falávamos

coisas entre nós, era um deleite de expormos medrosos, observadores e

infelizes. Tinha palavras que evitávamos. Outras aprofundávamos

muito o sentido. E ainda algumas que nem sendo ditas alcançariam

nossos pensamentos. O tempo passava confuso, amplo e fragmentado.

E, impacientes, não acontecia nada que fizesse nos compreendermos

completamente. O elusivo acontecimento no laboratório de ciências

serviu para caminharmos sem caminhos. A professora pediu para

fazermos grupos. Num movimento quase natural, ele ficava de fora.

Então, dessa vez, o convidei para ficar no grupo comigo e outros

colegas. A proposta era trazer materiais na aula seguinte para montar

um modelo de célula. Gel, tampa de caneta, peão de jogo de tabuleiro,

feijões, terrário, bolinha de pingue-pongue, lã, massa de modelar e

muitos outros objetos. Num movimento pouco surpreendente o modelo

foi tomando corpo a uma filiação provável. O terrário virou membrana

celular, o gel, citoplasma, a bola de pingue-pongue, núcleo celular, os

grãos de feijão, mitocôndrias, os peões de jogos de tabuleiro, centríolos.

Acompanhado da montagem, um roteiro a ser seguido e respondido. O

grupo ia cumprindo a tarefa. Ele pouco participava, mas fingia bem

para não ser alvo da professora. Quando tudo parecia ter acabado, ele

tomou atenção profunda ao modelo construído. A voz da professora nos

alertando para que não esquecêssemos para prova que o retículo

endoplasmático liso é responsável pela produção de lipídeos partilhava

minha atenção ao olhar atento e cuidadoso dele para o modelo. Foi

então que levantando da cadeira e arregaçando a manga da camisa ele,

lentamente, levou sua mão para dentro do modelo de célula. Seus

valentes dedos penetravam e revolviam aquele material, transbordando

citoplasma. Acompanhava um riso nem alto nem baixo. Uma risada

prestes a gargalhar de dentro dele. E embaralhava toda perfeição

distinta e homogênea do modelo pré-definido. Também entramos

naquilo que não sabíamos bem o que era. Cada um, com suas mãos,

perfurava o modelo e gargalhava por dentro. Com o fluido percorrendo

nossos corpos a aula tomava fim. Já na porta do laboratório, percebi que

ele permanecera lá. Agora sentado. Com a mão riscava outros

movimentos no gel. Mas o que me chamou atenção foi seu olhar. Um

olhar angustiado para fora, sedento por algo não nominável. Fui embora

e ele ficou lá. Não sei até quando...

Lopes e Macedo (2011) trilhando pela superfície da cultura para pensar o currículo, apontam outra perspectiva da cultura denominada como um sistema de significação. Esse ponto de vista dialoga com as vertentes pós-estruturalistas dos estudos

culturais que desnaturalizam a ideia de universalidade, de essencialidade da cultura de uma forma mais incisiva que as perspectivas do multiculturalismo. O desenho da cultura não se situa mais em uma delimitação, filiação de sentido ou ainda mescla de sentidos constituídos concorrentes. A perspectiva destacada dos estudos culturais pensa a cultura como o espaço e tempo em movimentos de produção de sentidos. Não há um sentido em si nos contornos da cultura, mas dinâmicas de jogos de linguagem de saber e poder que abrem significações. A centralidade da cultura nos estudos culturais amplia as possibilidades de significação das práticas educativas, enfatizando a atenção às dinâmicas de construção, negociação e de aprender sentidos, por vezes imaginados como naturais ou essenciais, nas pedagogias que circulam em diversos âmbitos (BONIN et al, 2016). Cabe ainda ressaltar que essa perspectiva se ocupa de maneira privilegiada com a formação das subjetividades engendradas pelos modos de vida contemporâneos que modelam corpos e mentes (WORTMANN et al, 2015, p.39). O sujeito não é um ser que a partir de seu contexto usa a linguagem definindo sentidos às suas experiências, mas o sujeito aqui também é uma invenção da linguagem.

Alguns trabalhos acadêmicos que relacionam educação, ciências, culturas, literaturas apostam nessa perspectiva da cultura como sistema de significação. Por exemplo, em Guimarães (2014) o autor, ao ser questionado qual seria o lugar da cultura no ensino de biologia, tenta discutir como somos afetados nas maneiras de pensar o ensino de biologia a partir de provocações pela cultura e pelos artefatos que nos chegam por todos os lados, entre eles a literatura. Os artefatos não seriam vistos apenas como produtos de consumo que ditam ou influenciam a ocupar determinados sentidos, mas também como provocadores de afetos, memórias, narrativas. O autor retoma uma série de escritas, pedaços de anotações, rabiscos de materiais trabalhados em processos formativos de professores de biologia. E assim, os reinventa em um dispositivo com uma série de “regras” entremeadas pela cultura, experimentando sentimentos e sensações produzidas com os saberes tecidos nos cotidianos dos processos formativos e que participam dos modos de ver o mundo natural. O trabalho explora a noção da cultura não pelo funcionamento da uma cultura que contextualize e torne práticas pedagógicas mais significativas aos conteúdos escolares ou ainda que a cultura fosse um conjunto de conhecimentos teóricos em que as práticas educativas pudessem se fundar. A cultura, escapando de qualquer perspectiva essencialista, se aproxima de dinâmicas em que

Ele fremia suavemente, sem latir. Ela olhava-o sob os cabelos, fascinada, séria. Quanto tempo se passara? Um grande soluço sacudiu-a desafinado. Ele nem sequer tremeu. Também ela passou por cima do soluço e continuou a fitá- lo. (...) Que foi que se disseram? Não se sabe. Sabe-se apenas que se comunicaram rapidamente, pois não havia tempo. Sabe-se também que sem se falar eles se pediam. Pediam-se com urgência, com o encabulamento, surpreendidos. (...) Eles se fitavam profundos, entregues, ausentes de Grajaú.

Tentação, A legião estrangeira, Clarice Lispector, 1999, p.62.

as práticas educativas reinventam sentidos com a cultura, ocupando outros lugares, outros pensamentos, outras experimentações.

A cultura funcionou no ensaio como atravessando a docência, às vezes perfurando, outras tocando delicadamente corpos, olhos, sensibilidades. Ela foi convocada para embaralhar, sacudir, sujar, contaminar aulas. Ela não ocupou, nos argumentos que escrevi, um lugar, nem privilegiado, nem minoritário no ensino de biologia. Ela esteve, ao longo do texto, ressoando nos versos, nas sobras, nas frestas, nos silêncios, nos enunciados, nos pensamentos. A cultura, acredito eu, invade nossas aulas, sem que percebamos muitas vezes. Ela nos inunda e nos faz sujeitos-mundo. Com ela, e através dela, nossos modos de viver são tecidos e, também, nossas aulas podem ser se criar repletas de biologias e de culturas amalgamadas. (GUIMARÃES, 2014, p.99)

Ao ser convidada para o Simpósio “Escola e Memória, quando a cultura faz a diferença” para o XIV ENDIPE, Encontro Nacional de Didática e Prática de Ensino, Chaves (2013) faz uma tentativa de reescrever memórias docentes, familiares, escolares, de pesquisadora para pensar em possibilidades de

significação de um eu social. Para isso a autora convoca uma citação de Nietzsche e um poema de Alberto Caeiro em que a faz pensar que para explorar outras experiências estéticas, outros sentidos com a memória, não se deve incorporar unicamente uma ideia de cultura que delimite aquilo que constitui no tempo o sujeito, de certa noção de identidade cultural. Mas podemos trilhar em outras formas de pensar a cultura, por exemplo, como tempo de disputas pelo poder da significação em um mundo aberto que (...) nos convida a inventarmos formas de ser infiéis àquelas com as quais fomos significados, rotulados, aprisionados, enquanto, também aprisionamos

(...) (CHAVES, 2013, p.38). A autora destaca a escola como um lugar atravessado pela cultura que muitas vezes produz uma diferença festiva e caricaturada de uma pluralidade cultural que deseja marcar de forma representativa uma suposta cultura verdadeira. Diante disso, o trabalho aposta em um movimento da escola com a cultura que produz outras

diferenças como um lugar de encontro, confronto, questionamento e experimentação de diferentes formas de ser e representar a diversidade humana.

Ao nos inventarmos andarilhos em apostas de percursos formativos de professores de ciências no curso de pedagogia, a noção de cultura como um sistema de significação foi a que mais fomos nos aproximando, ou pelo menos tentando se aproximar. Foi com essa perspectiva que o trabalho com o romance A varanda do frangipani se iniciou, desencadeando também uma perspectiva de investigação para esta pesquisa. Nos percursos buscamos afastar e desnaturalizar formas mais essencialistas das culturas formativas que desejam fixar significados: a pedagoga que não sabe ciências naturais ou ainda a ideia de um conhecimento escolar fundado numa cultura científica universal. Ao pensar a cultura em processos significação e não como uma verdade pré-estabelecida a ser alcançada na formação de professores, procuramos possibilidades de conhecimentos em espaços para pensar, questionar, experimentar e reinventar a vida. A cultura como sistema de significação fluido que está sempre a se constituir em pensamentos com o mundo natural ao longo de toda a vida. A proposta era criar os nossos percursos formativos com uma compreensão de cultura como aquilo mesmo que permite a experiência do pensamento. E narrar, expor, questionar, negociar e estar atentos aos nossos pensamentos.

Nessa investigação, o saber não está dirigido a compreender (melhor), mas a esculpir, isto é, a fazer uma incisão ou uma inscrição concreta no corpo que transforme o que somos e como vivemos. Essa investigação diferencia-se por sua preocupação com o presente e com a nossa relação com ele; uma preocupação em estar presente no presente, que é outra maneira de dizer que sua principal preocupação é prestar atenção. Estar atento é uma atitude limite cujo objetivo não é delimitar o presente (mediante julgamento), mas expor as próprias limitação e expor-se a elas. Assim, caminhar é um exercício que envolve uma atitude limite que nos pode mudar, não aumentando, porém, a conscientização, mas sim a atenção. (MASSCHELEIN e SIMONS, 2014a, p.47).

Pudera eu para sempre residir em líquida matéria de espraiar, rio em estuário, mar em infinito.

A confissão de Nãozinha, A varanda do frangipani, Mia Couto, p.81.

CAPÍTULO 3