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LER AQUILO QUE JAMAIS FOI ESCRITO

Uso as palavras para compor meus silêncios. Não gosto das palavras fatigadas de informar. Dou mais respeito às que vivem de barriga no chão tipo água pedra sapo Entendo bem o sotaque das águas Dou respeito às coisas desimportantes e aos seres desimportantes

Prezo os insetos mais que os aviões Prezo a velocidade das tartarugas mais que a dos mísseis. Tenho em mim um atraso de nascença. Eu fui aparelhado para gostar de passarinhos. Tenho abundância de ser feliz por isso. Meu quintal é maior do que o mundo. (...)

Manoel de Barros, Memórias Inventadas: as infâncias de Manoel de Barros, p.47.

Fig.15 - Imagem varanda 8

Neste quarto e último capítulo da tese resgato as questões centrais que dispararam o desenho e o desejo desta investigação, a saber: a leitura literária como abertura em movimentos de percepção do mundo natural nas práticas educativas da formação de professores de ciências, com destaque ao curso de Pedagogia; a invenção da linguagem em textos e imagens como exercícios da prática e da pesquisa em educação em ciências.

Foi nos encontros com os textos literários que como leitor, professor e pesquisador, indistintamente, eu procurei delinear um caminho de pesquisa. Algumas dessas leituras vieram antes mesmo das experiências educativas que são reinventadas nesta

pesquisa, como alguns poemas de Manoel de Barros, alguns textos de Mia Couto e alguns contos de Clarice Lispector. Outras vieram ao longo das práticas formativas de professores no curso de Pedagogia, como os textos-imagens de Cao Guimarães, David Hockney, Magritte. E outras ainda no processo de construção desta pesquisa, por exemplo, o contato que tive com os textos da autora Marina Colasanti e que contribuiu na composição da investigação. Muitos outros textos literários que não foram incorporados ao desenho da pesquisa também contribuíram de alguma forma para pensar o mundo natural nas práticas formativa de professores de ciências. Mundo natural que é sempre produzido, fabricado, criado e reinventado pelos atravessamentos culturais, pelas sensações e pela inventividade da linguagem.

Gostaria de apresentar brevemente um desses textos literários que conheci ao longo do doutorado e que me ajudou a dar força à proposta investigativa dos minicontos e das imagens-varanda. É o romance O vendedor de passados do autor angolano José Eduardo Agualusa. A história do romance percorre a Angola do período pós-guerra civil em que a emergente burguesia angolana é próspera e possui um bom futuro assegurado. No entanto, falta a essa burguesia um bom passado devido ao período de guerra. É necessário apagar um passado, temática muito próxima ao enredo do romance A varanda do Frangipani de Mia Couto. No romance angolano, o protagonista, Félix Ventura, possui um trabalho de genealogista da burguesia emergente. Félix vende passados, construindo genealogias e assegurando memórias felizes, antepassados belos e bem sucedidos, ancestrais ilustres. No desenrolar da história Félix faz a genealogia de um estrangeiro que se torna então José Buchmann. O diferente nesse caso é que José Buchmann vai ao encontro imprevisível com o seu passado inventado. É aí que o inesperado emerge quando o passado inventado irrompe o presente afetando os personagens. Imprevisível também é o narrador da história, uma lagartixa que habita o escritório de Félix Ventura, e que ao longo do romance também reinventa sua genealogia de vidas passadas.

Nesse cenário, Agualusa escreve alguns capítulos intitulados sonhos que atravessam todo o livro contabilizando seis sonhos. São sonhos da lagartixa que intercalam a narrativa do romance. Nos sonhos, a lagartixa resgata uma série de devaneios que compõem uma genealogia fragmentada, tanto sua como dos outros personagens. Os sonhos são narrativas descontínuas que jogam com a questão do real, do verossímil. Rompe fronteira como uma mistura, fusão ou indefinição entre real e sonho que promove toda uma

Era um viver que eu não pagava de antemão com o sofrimento da espera, fome que nasce quando a boca já está perto da comida. (...) Ninguém falou mal de ninguém porque ninguém falou bem de ninguém. Era reunião de colheita, e fez-se trégua. Comíamos. Como uma horda de seres vivos, cobríamos gradualmente a terra. Ocupados como quem lavra a existência, e planta, e colhe, e mata, e vive, e morre, e come. Comi com a honestidade de quem não engana o que come: comi aquela comida e não o seu nome. A repartição dos pães, A legião estrangeira, Clarice Lispector, 1999, p.31. reinvenção da memória. De modo que os sonhos produzem memórias vividas ou inventadas que por vezes nos revelam trechos de certa realidade, adentrando nos desejos, medos, angústias e lembranças dos personagens. E, por vezes, esses sonhos nos prendem numa busca incessante de entender ou talvez de não entender o que é verossímil no O Vendedor de passados. Os sonhos da lagartixa desmontam uma imagem de realidade no exercício de narrar uma história. E, pela minha leitura, são exatamente esses sonhos que potencializam a escrita literária de Agualusa ao tirar as

palavras de seu lugar de apresentação do mundo para convocar o leitor a produzir pensamentos com a obra. Nesse contexto a própria lagartixa narradora revela sua perspectiva dentro de seus sonhos dissonantes: “Os meus sonhos são, quase sempre, mais verossímeis do que a realidade.” (AGUALUSA, 2004, pg. 50).

Essa imagem dos sonhos no romance de Agualusa me marcou na leitura do livro. E me fez pensar na proposta, já em produção, dos minicontos e das imagens- varanda no sentido de que os textos e imagens fruto desta pesquisa pudessem funcionar como os sonhos da lagartixa.

Assim, a literatura em sua potência ficcional agiu nesta pesquisa como formas de movimentar a palavra, deslocar sentidos já representados tanto das práticas formativas de professores quanto das práticas de pesquisa em educação em ciências. Como um sonho da lagartixa, o exercício literário dos minicontos e das imagens-varanda atravessam a tese em narrativas descontínuas. Eles recorrem a uma perspectiva difusa do real nos termos de Jacques Rancière (2005) que é preciso ficcionalizar o real para pensa-lo. É na reinvenção das varandas como um sonho que a literatura compõe os pensamentos e convoca o leitor da tese a pensar e experimentar movimentos de percepção com a formação de professores de ciências em um curso de Pedagogia.

Farei uma tentativa de escrever aquilo que experimentei e tinha contado