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entraria no conteúdo do texto? Uma amiga de tão ansiosa chamou em paralelo uma das integrantes do grupo E disse a ela: quando é que

vocês vão falar do texto? Vocês vão perder pontos! Era uma sensação

estranha... O que estávamos fazendo? Olhei para o professor, ele estava

firmemente olhando a chuva. Estava uma chuva de lado, aquela que

batia como se fosse para lavar o vidro da janela. Era como se aqueles

fios de água que cruzavam desordenadamente entrassem nas suas

ideias. Toda a aula mexia com todos. O tempo acabou e fomos para

casa. Na semana seguinte, o professor iniciou a aula dizendo que a

apresentação o acompanhava naqueles dias. Que estava impressionado

pelo grupo que fazia a opção de não entrar em explicações infinitas

sobre o texto. E apostava que era capaz de pensar, conversar e agir com

o texto. Mas que por alguns momentos, todo o movimento de

estranhamento da aula o fazia perguntar se o grupo havia lido o texto...

Ora professor, a intervenção estrangeira da aula nos retirou tanto de nós

mesmos que por vezes duvidamos da nossa capacidade de entrar em

caminhos outros. Talvez, nós não estávamos tão preparados para

sermos estrangeiros. E há preparação para isso? Precisávamos

caminhar com os pensamentos e adentrar na desordem da chuva. Será?

Tendo como inspiração os estudos de Jacques Rancière sobre a emancipação intelectual e igualdade de inteligências para pensar apostas de percursos formativos e de pesquisa com ensinos e ciências naturais em um curso de Pedagogia, busquei diferentes trabalhos do campo da educação em ciências que já estabeleceram diálogos com diferentes noções desenvolvidas por Rancière. A ideia não é, ao resgatar esses estudos, realizar uma revisão bibliográfica de autores da educação em ciências que se apropriam do pensamento de Rancière. Ou, pelo menos, não me filiar estritamente a uma ideia de revisão bibliográfica comumente atribuída a essa atividade: a pretensão de uma discussão que se deseja totalizante das produções acadêmicas como expressão do que é, de fato, discutido na área. Assim, também, não pretendo, na escolha dos estudos, sistematizar a partir de períodos delimitados ou classificações de periódicos mais ou menos qualificados compondo um

mapeamento/panorama da comunidade acadêmica no sentido de revelar a realidade do que se produz sobre o objeto investigado. Não desejo situar o que foi e o que não foi produzido na relação do campo da educação em ciências com o pensamento de Jacques Rancière para então demarcar um território em que meu estudo ocupará. A tentativa de retomar esses estudos é compor reflexões com artigos em periódicos, apresentações em congressos, capítulos de livros dos quais tive contato ao longo do desenvolvimento do doutorado. A não neutra seleção desses estudos arrisca algumas conversas como formas de criar pensamentos com ensinos e ciências naturais. E que caminham com as muitas vontades desta pesquisa. Uma observação é que não me detive em delimitar, na seleção intencional, os temas dos estudos relacionados à formação de professores, o objeto de pesquisa mais central desta tese. Há trabalhos de diversas perspectivas e temas que circulam o campo da educação em ciências, como, por exemplo, a educação ambiental e a divulgação e comunicação científica.

Os primeiros trabalhos são do professor Jesse Bazzul (2013, 2015) que, a partir das noções de igualdade, política e dissenso de Rancière, apresenta reflexões teóricas com o campo da educação em ciências. Para Bazzul (2013), Rancière pode oferecer aos educadores em ciências exemplos de possibilidades de uma política emancipatória e subjetiva, desenvolvendo novos espaços pedagógicos. A proposta da igualdade de inteligências desconstrói a noção que parte de relações desiguais na escolarização em que os professores sabem o conhecimento e a distância desse ao aluno ignorante, enquanto o aluno está sempre do lado da incapacidade, do não conhecimento. Segundo o pesquisador, essa desconstrução resistiria à contínua necessidade em definir “o que é ciência” ou “o que deveria ser aprendido em ciências” para abrir caminhos para educadores que se dedicam a desnaturalizar hierarquias tradicionais na educação em ciências. A igualdade radical como uma abordagem também tem o potencial de permitir uma reavaliação crítica da ciência como um discurso carregado de julgamento de valor, permitindo que as vozes de aprendizes em ciências sejam expostas. (Bazzul, 2013, p.250, tradução nossa). Para o autor, o movimento em direção à igualdade de inteligência na educação em ciências é um momento para reformular compromissos pedagógicos, promovendo novas possibilidades de relações políticas com a educação científica. Em outro trabalho, o autor retoma a discussão política ao pensar relações entre educação em ciências e democracia (BAZZUL, 2015). O objetivo é fornecer uma base teórica para uma concepção mais politizada de cidadania no ensino de ciências usando a filosofia política de Jacques Rancière. O autor aposta na noção de dissenso do

filósofo, em diferença a uma cidadania consensual como princípio democrático. O dissenso produz democracia enquanto contestação do que era considerado bom senso, fissurando certezas. A cidadania como um movimento no sensível, ao invés de manter o status quo, mantém possibilidades políticas e o potencial para a mudança. (BAZZUL, 2015, p.3, tradução nossa). As noções de Rancière de política e dissenso podem lançar as bases para pensar uma cidadania que desafia o que é considerado naturalizado. Em educação em ciências, isso significaria repensar a forma como abordamos questões sociais e políticas, onde prevalece, tradicionalmente, a busca de consensos e movimentos de pouca intervenção com os estudantes.

Pellejero (2009) nos lembra que para Rancière a política aparece não como o exercício ou luta pelo poder, mas como certa reconfiguração dos dados e dos problemas em um espaço político, isto é, como

(...) o enquadramento de uma esfera específica da experiência, de objetos comuns, e de sujeitos de reconhecida capacidade para designar esses objetos e discutir sobre os mesmos. O político é o conflito sobre a própria existência dessa esfera, a realidade desses objetos comuns e a capacidade desses sujeitos (RANCIÈRE, 2005).

Assim, educadores em ciências podem pensar na promoção de cidadania politizada em práticas que perturbem uma naturalização de quem pode pensar, criar, inventar, intervir com as ciências. É nessa discussão que Dias e Rodrigues (2014, p.139) questionam: De quais outros modos podemos nos aproximar da imensidão de mundos que povoam, habitam os objetos, as coisas, os corpos, as imagens, palavras e sons sem projetar sobre eles as formas já conhecidas, as falas repetidas, as vidas já vividas? As autoras se aventuram em estudos que convocam imagens, literaturas, sons para pensar divulgação, comunicação, educação, arte, mudanças climáticas e ciências. Para isso, estabelecem conversas com a noção de dissenso de Rancière desenhando escritas em comunicação- educação dissensual,

(...) suspendendo temporariamente certos juízos; gerando curiosidade, atenção, hesitação, provocando pequenas falhas no automatismo dos hábitos de pensamento e de percepção. Acolhendo a incerteza, a indeterminação, a imprevisibilidade, criando afetos de efeitos indeterminados (...) (p.152).

Nessas escritas, as autoras perturbam um modo hegemônico de pensamento com as ciências, fugindo de escritas pedagógicas para as quais são necessárias explicações, causa e efeito, transmissão, reconciliação com um sentido pressuposto, um sentido já dado. As escritas querem desafiar o leitor, confundir sentidos, provocar interrogações, deslocar o que

A madrugada se abria em luz vacilante. Para Lóri a atmosfera era de milagre. Ela havia atingido o impossível de si mesma.

Clarice Lispector, uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, 1998, p.159.

é visível, sensível e enunciável, querem produzir ficções. Segundo as autoras, a ficção para Rancière é o trabalho de produzir dissensos, mudar os modos de apresentação sensível e as formas de enunciação, os quadros, escalas ou ritmos, construindo novas relações entre a aparência e a realidade, o singular e o comum, o visível e seus sentidos. (p.141)

Outro trabalho, Salgado (2015), também recorre à noção de ficção em Jacques Rancière para pensar uma educação ambiental que explora, amplia e recria narrativas orais e imagéticas de moradoras e moradores do Sertão do Peri (Florianópolis-SC). A autora discute que o filósofo se distancia da dicotomia entre a razão dos fatos e a razão da ficção, diluindo as fronteiras entre o real e o ficcional. Para Rancière, tanto o real quanto o ficcional pertencem a um mesmo regime de pensamento. O real precisa ser ficcionado para ser pensado. (RANCIÈRE, 2005, p.58). Nessa impossibilidade de fronteiras entre o real e ficcional que a pesquisadora questionou a possibilidade de criar histórias com os moradores da região investigada. A aposta política de criar essas histórias foi através de fotografias criando subjetividades, (...) outros olhares, efetuando um rearranjo dos signos que se criaram a partir do dispositivo elaborado nesta pesquisa para ficcionar a atmosfera do Sertão do Peri (...) (SALGADO, 2015, p.5), permitindo pensar, inventar, intervir com outros Sertão do Peri.

Guimarães e Pereira (2015) investigam imagens midiáticas sobre a sustentabilidade e as maneiras de lidarmos com essas imagens em práticas pedagógicas. Os investigadores apontam que as imagens midiáticas de sustentabilidade antecipam uma lógica de pensamento em que o ambiente é um lugar planejado, controlado, definido e “verde”. E que o propósito da investigação é abrir outras lógicas de pensamento com as imagens, multiplicando-as. Os autores recorrem às noções de polícia e política em Jacques Rancière no desenho da investigação. A polícia, segundo o filósofo, é uma lógica que cerceia e coloca ordem no pensar, sentir e agir, distribuindo no espaço as formas de intervir com o mundo. Já a política é um deslocamento nessa distribuição da polícia, ela é uma alternativa à ordem do pensamento, uma resistência, contestação e ação em outro movimento com o espaço, com o visível e com o sensível. Nesse movimento político, os pesquisadores procuraram possibilidades de novas relações com as imagens de sustentabilidade, comumente associadas

a lógicas cerceadoras de pensamentos. Talvez, o exercício pedagógico de construir “cartografias afetivas” seja um ato político (...) que desestabiliza as imagens da sustentabilidade atreladas à pauta da economia “verde”. (GUIMARÃES e PEREIRA, 2015, P.76).

Por fim, aponto dois trabalhos que tem a noção de emancipação em Jacques Rancière como elemento central de suas investigações. Queiroz (2015), ao discutir a mediação em museus de ciências, recorreu à noção de emancipação para colocar o visitante na possibilidade de agir, aprender, ensinar, fazer arte e ciência. A autora remete ao espectador emancipado que deve sair de uma posição de apenas observador/receptor do espetáculo para um exercício próprio de pensamento. Já Otoide e Alsop (2015) investigaram suas próprias práticas como professores de ciências das séries iniciais do ensino fundamental inspirada por leituras e estudos da noção de igualdade de inteligências do livro O mestre ignorante. A prática educativa foi realizada com uma turma de uma escola do subúrbio da cidade de Ontario, Canadá, grade 6 (alunos de 10-11 anos), multilingual e multiétnica. Os autores descrevem as etapas de prática educativa: primeiro momento, algumas aulas explorando ideias sobre emancipação e aprendizagem com os estudantes; segundo momento, aulas com exercícios de escolha, leitura de textos com temas científicos (terra e espaço) e escrita (por exemplo, a produção de um jornal com ideias do que os alunos fazem, pensam, intervém com os conhecimentos); terceiro momento, aulas para expor, explorar e refletir com as produções e experiências de aprendizagens com os estudantes. Na pesquisa, os dados foram coletados por gravações das aulas e todo material de registro – escolha e produção de textos – dos alunos. Os investigadores discutem questões como: motivação para aprender e autoconsciência do processo de aprendizagem com os estudantes. Na discussão, apresentam que a prática vivenciada tem pouco haver com o aprendizado de conhecimentos científicos dominantes ao deslocar em sala de aula padronizações curriculares e hierarquias entre professores e alunos no ensino de ciências.

Experimentamos momentos que fomos capazes de sair de nós mesmos e dos discursos naturalizados que moldam nossas identidades e que diz o que conta como professores de ciências e investigadores (...). Temos lutado por caminhos de ensino, vontade e instabilidade dentro de um contexto de muita familiaridade. Nesses momentos, sugerimos que nos tornamos mestres ignorantes, vagando além do domínio do sensível e lutando para chegar a diferentes perspectivas de regras naturais e ordens de ensino e investigação científica. Nossa aventura foi conduzida através de um desejo compreender- nos melhor politicamente, ambos os professores de ciências e investigadores. (OTOIDE e ALSOP, 2105, p.246, tradução nossa).

Os trabalhos apresentados que estabelecem relações com o pensamento de Jacques Rancière e educação, comunicação, ciências apresentam diferentes apostas, práticas, pensamentos. Entendo que de alguma forma, seja no espaço educativo formal ou informal, seja um estudo de discussão predominantemente teórico ou de pensar com as experiências educativas cotidianas, esses trabalhos caminham para uma luta comum na política do pensamento. São trabalhos que a partir de ideias como dissenso, emancipação, igualdade de inteligências, ficção desejam deslocar lógicas de pensamento instituídas, naturalizadas e abrir para outras possibilidades de pensamentos como ação política. São com esses pensamentos que tentamos caminhar nos nossos exercícios de diluir discursos da “deficiência” em relações de ensinos e ciências da natureza no curso de pedagogia. Andaríamos como ponto de partida inspirados numa igualdade de inteligências. E que apostas de percursos formativos e de pesquisa acompanhariam essas tentativas de partir e seguir?

O estado de graça em que estava não era usado para nada. Era como se viesse apenas para que se soubesse que realmente se existia. Nesse estado, além da tranquila felicidade que se irradiava de pessoas lembradas e de coisas, havia uma lucidez que Lóri só chamava de leve porque na graça tudo era tão, tão leve (...) o que lhe acontecera era apenas o estado de graça de uma pessoa comum que de súbito se torna real, porque é comum e humana e reconhecível e tem olhos e ouvidos para ver e ouvir. As descobertas naquele estado eram indizíveis e incomunicáveis.

Clarice Lispector, uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, 1998, p.135.

Na busca de caminhos para percursos formativos e de pesquisa, fomos provocados a partilhar e escutar os modos singulares de viver com o mundo, buscando leituras, escritas, imagens e ciências nas nossas práticas cotidianas. Inspiramos como partida de nossos caminhos a igualdade de inteligências em que todos podem intervir, pensar, falar e inventar. E o disparador das atividades foi a leitura de textos literários compondo a formação de professores e a pesquisa em educação em ciências.

Dialogando com autores (OLIVEIRA e GERALDI, 2010) nas reflexões em que formas narrativas artísticas, como a literatura e as imagens, constituem diferentes formas de contar o mundo e potencializam múltiplas realidades constituídas na sociedade, tentamos estabelecer composições entre narrativas literárias e ciências na pesquisa e na formação docente. A tensão estava no que se passa quando estabelecemos composições entre literaturas e ciências. Uma terrível negociação? Um assombroso encaixe? Isso implica na não subordinação entre as áreas, mas num possível engendramento, encantamento, poesia que toca quando não se preocupa em afirmar

verdades, mas inventar modos... Existem espaços, trilhas ainda não percorridas. E apostamos em literaturas e pedagogias que infiltrassem ou sabotassem formas já conhecidas para ajudar a inventar outros modos e que ensinasse na medida em que cada um volte a si mesmo e aos outros. (LARROSA e SKLIAR, 2005).

Ao produzir, reviver e recriar as experiências formativas do curso de pedagogia para o presente e para a construção desta tese, a literatura catalisa exercícios de pensamento que rasuram formas homogêneas e essencialistas de compor a natureza com a educação em ciências. Esta pesquisa se propõe a pensar com essas experiências formativas de professores de ciências mediadas por leituras literárias, mas também a tese se inscreve em exercícios de

pesquisa que se inscrevem com a literatura. A tese apresenta, compõe, discute experimentações, mas também experimenta a literatura como um atravessamento cultural, como modo de abrir frestas outras nos modos de ver, sentir e pensar ensinos e ciências. Assim, essa aposta literária rende a este texto uma impossibilidade de separar o percurso formativo e o percurso de pesquisa.

Nesse momento de escrita da tese, percebo que as escolhas de alguns textos literários que nos acompanharam seguem caminhos que recorrem à palavra poética dentro de um mundo para então criar outro. São textos que apelam à natureza para então criar pensamentos com a natureza ou ainda inventar outras naturezas. São eles: o romance A varanda do Frangipani de Mia Couto (2007), o livro de contos A legião estrangeira de Clarice Lispector (1999), e os poemas de Manoel de Barros (2010a, 2010b). Como foi feito no início do capítulo com trechos da obra Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, aparecerão ao longo do texto citações em destaque das obras citadas que nos acompanharam. A ideia é de compor o jogo da pesquisa em que recorremos à linguagem poética com a natureza para então criar outras.

Fig.4 – A legião estrangeira de Clarice Lispector (1999), Poesia Completa e Memórias Inventadas, as infâncias de Manoel de Barros de Manoel de Barros (2010a, 2010b).

Notadamente, esta pesquisa centrou os esforços investigativos com as experiências de formação realizadas com a obra A varanda do frangipani durante as disciplinas Fundamentos Teórico-Metodológicos e Prática Escolar em Ciências I e II no ano de 2013. Esse destaque se dá porque o texto da obra foi quase todo lida durante as aulas do curso de pedagogia e as atividades desenvolvidas retomavam pensamentos com essa obra. Mia Couto, um escritor moçambicano de literatura portuguesa e biólogo, busca em boa parte de suas obras reinventar no presente as tradições, mitos, culturas africanas. Para isso, cria com a memória histórias que retomam um período pós-guerra de independência e guerra civil moçambicana. Um período de desolação e vulnerabilidade para as pessoas que residem no país pela dizimação da população e falta de esperança de futuro. É um período também de esquecimento das tradições e das culturas moçambicanas.

Na obra A varanda do frangipani, Mia Couto retoma esses elementos a partir de um narrador xipoco2, Ermelindo Mucanga, que morre às vésperas da independência de Moçambique. Ele era carpinteiro e morreu longe da sua terra de origem quando trabalhava na restauração da fortaleza de São Nicolau. Por isso, no seu sepultamento aos pés de uma frangipaneira, não foram seguidas as cerimônias e as tradições de seu povo Mucanga. Ele, então, tornou-se um xipoco, alma penada que vagueia sem destino. Ele não pode ascender a

As ondas te levarão e só terás destino num lugar onde não chega nenhum barco. Lá onde o mar é que desagua nos rios. Onde a palmeira é que se planta nas ondas, ganhando raiz em fundos corais. Te converterás num ser das águas e serás maior que qualquer viagem. Te digo eu, Nãozinha, a mulher-água. Tu serás aquele que sonha e não pergunta se é verdade. Serás aquele que ama e não quer saber se é o certo.

Mia Couto, A varanda do frangipani, 2007, p.11.

xicuembo3, espírito do antepassado, assim passando a viver nas profundezas da terra ao lado das raízes da frangipaneira com um animal de estimação, o kalakavuma4.

Após 20 anos da sua morte, quando a fortaleza havia se transformado em um asilo onde os velhos eram esquecidos, Ermelindo Mucanga ouve que querem fazer dele um herói de guerra nacional. Queriam revivê-lo, remexer seus ossos. Ele recorre ao kalakavuma sobre o que fazer pois não tinha interesse em se transformar em héroi. Segundo Mucanga o herói é como o santo, ninguém lhe ama de verdade, só se lembram dele em urgências pessoais e aflições nacionais. Ele tinha horror da ideia de o reviverem para festas, arrombas e tambores de festejos nacionais. A opção que o kalakavuma sugere a Mucanga é remorrer. O

pangolim arranjaria um corpo em que Mucanga poderia reviver, tornar à vida. Mas um corpo que já estaria à beira da morte. Assim, remorrendo e passando pelos rituais de seu povo, Macunga poderia ascender a xicuembo, conquistando a tranquilidade necessária do mundo dos mortos. O kalakavuma indica alguém que está por chegar à fortaleza de São Nicolau, o inspetor de polícia Izidine Naíta. O inspetor vai à fortaleza para investigar o estranho assassinato do diretor do asilo, Vasto Excelêncio. E era certo, segundo o pangolim, que em seis dias o inspetor seria morto. E Macunga remorreria junto o policial. Assim, Macunga se instalara no corpo do inspetor de polícia.

Ao longo da obra, as experiências relatadas pelo xipoco Mucanga no corpo de Naíta durante os seis dias são acompanhadas pelas vozes dos moradores do asilo. Grande