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Farei uma tentativa de escrever aquilo que experimentei e tinha contado apenas na fala Percorria um caminho todos os dias logo pela manhã.

Bem cedo. Durava 25, 30 minutos de caminhada. Era um caminho que

de tão repetido parece que... Parei de ouvi-lo. Não havia nada novo nas

subidas e descidas do caminho. Mas não era percurso inútil. Para além

de chegar ao local destinado, vinha cheia de pensamentos. Refazia a

agenda do dia. Da semana. Organizava a lista de compras do

supermercado. Retomava os assuntos de prova, trabalho e leituras. E

também temas do curso da igreja. Cantava. E pensava em coisas que

esqueço, que não digo ou que nem daria conta de dizer. Era eu comigo

mesma e, às vezes, com... outra de mim. Em uma descida, estava

ansiosa porque não tinha uma varanda na minha casa. Inventar? O que

faria? Já tinha tentado algumas coisas, mas a sensação é que estava

totalmente impossibilitada. Inquieta no caminho, deparei com uma

montanha de areia. Era nova no caminho. Fiquei olhando e fui embora.

No dia seguinte ela estava lá. E no outro. No outro. Outro. Eu tomava

de olho a areia de diferentes jeitos. Quando passava dela para mais

adiante não resistia de voltar o olhar. Ela continuava lá. Não se

contorcia para voltar o olhar para mim. Mas eu não desistia. Voltava o

olhar ao cruzarmos no caminho. Iluminada pelo sol, resolvi tocá-la com

as mãos. Nos meus dedos aqueles grãos de sílica. Impuros. Aquela

areia que é um desmanche de pedra. Fragmento. Rastro. Resto. E como

se pudesse segurar um só grão, ele não seria mais aquela montanha.

Podia ser muitas coisas. Podia criar muitas coisas. O grão inventava de

não ser areia. Peguei um pouco daqueles grãos para vocês. No dia

seguinte não estava mais lá. Foi deixar de ser areia em outro lugar.

Talvez esse caminho fosse a minha varanda... Termino essa escrita.

Não estou satisfeita. Por isso, professor, tome nota que tentei escrever.

Mas as palavras, não sei... Não dão conta de contar!

Uma das questões que dispararam a construção desta tese foi certo estranhamento ao discurso da comunidade de pesquisadores da educação em ciências sobre falta de conteúdo de ciências pelos docentes pedagogos, conforme descrevi no primeiro capítulo. Tenho recebido, em eventos que apresento o trabalho parcial da tese, questões como: “que resposta a sua pesquisa dá ao estranhamento do discurso da falta?” ou “A sua pesquisa consegue contrapor ou superar o discurso da falta de conteúdo dos professores?” e ainda “Você consegue demonstrar que os professores que foram formados nas práticas educativas analisadas na pesquisa sabem o conteúdo de ciências?”.

Todas essas questões são muito importantes para mim, pois, em princípio, elas movimentam algo que parece estar muito naturalizado atualmente no campo. E também porque o desenho da tese se propõe a pensar de maneira diferenciada a formação dos professores de ciências no curso de Pedagogia e isso implica em discutir afinal qual é a contribuição ou quais são os pensamentos que a tese oferece para essa questão. A resposta que tenho dado sem fechar a discussão é que a tese não dá resposta, não se contrapõe ou supera o discurso da falta. Tenho inclusive, após esses anos me dedicando ao tema, reiterado que o discurso da falta é legítimo em partes do campo da educação em ciências. Ele é uma possibilidade de pensamento, uma produção de sentido que se estabelece dentro de um regime de verdade ao qual a hierarquia/desigualdade de posições e de conhecimento é um dos fundamentos de partida às práticas educativas. O que tenho tencionado na discussão é a naturalidade que o discurso da falta do conteúdo de ciências pelo pedagogo tem dominado o campo da educação em ciências. Por exemplo, tive oportunidade de participar de um seminário sobre ensino de ciências nas séries iniciais do ensino fundamental durante o doutorado no qual uma professora especialista no tema apresentou suas ideias. No debate, levantei a questão sobre o discurso da falta, sobre o modo que vemos o professor pedagogo em relação ao ensino de ciências sempre em posição hierarquicamente inferior e desigual para então fazer a pergunta se ela, como especialista no tema, perceberia outras formas de abordar a questão. A resposta foi taxativa: Não! É fato! Está demonstrado que os pedagogos professores de ciências não sabem ciências! E essa não foi uma situação pontual ou isolada das quais eu vivenciei ao longo do doutorado. Foram muitos os momentos em que ao se falar dos pedagogos que ensinam ciências o discurso da falta, da ausência estava sempre presente. Meu incômodo com esse discurso é a maneira como o campo se fecha para a questão ao

assumir com tamanha naturalidade sem se questionar se poderíamos pensar outras formas de olhar para a relação do pedagogo com o ensino de ciências. Há de certa forma um roubo da possibilidade do sentido, pois o que está aí já está dado, é fato! Assim, o que tenho respondido aos colegas sobre a minha pesquisa é que ela não dá resposta à questão do discurso da falta. A leitura que esta tese se propõe não assume o discurso da falta como fato dado e por isso não há o desejo de contraposição ou de superação desse discurso. A pesquisa parte com um exercício de lançar outros olhares para a relação entre a formação do pedagogo e ensino de ciências. Olhares que não desejam se contrapor ou superar (dizer qual é o melhor ou pior caminho) uma falta pré-estabelecida, mas caminhar em outras percepções com outros modos de ser e de experimentar a vida. A perspectiva de formação de professores desta a tese recorre à linguagem para vibra-la e tentar mais uma vez movimentos de pensamento com as palavras e os verbos, a fim de expô-los para que eles possam começar de novo a significar e a falar com o mundo natural.

(...) esse exercício de pensamento se pratica sobre questões comuns que nos afetam e nos situam no cerne da experiência educacional que entendem como uma experiência que coloca alguém na posição de um “iniciador” ou “querer ser capaz de”, uma experiência que põe em cena uma “potência entusiasmada”. (MASSCHELEIN e SIMONS, 2014a, p.30).

A tese produz pensamentos com uma perspectiva de formação de professores que defende a cultura como sistema de significação e a leitura e produção literária como exercícios de narrar os movimentos culturais nos caminhos formativos trilhados. A cultura como um movimento que se abre para a diferença e não uma identidade a ser alcançada para superar uma já dada falta. A leitura e produção literária como intervenções com o pensamento e a invenção para narrar os movimentos partilhados em conjuntos de atividades em que nos expomos ao longo dos percursos formativos. Mas não uma narrativa que seja somente descritiva do vivido como uma sequência cronológica de dias, atividades e sequências de produções: textos, imagens. Ou ainda uma ativação da memória que deseja resgatar uma descrição completa de fatos. Mas narrativas que experimentam movimentos, sentidos, pensamentos, invenções com as experiências compartilhadas. De certa forma são narrativas ficcionais, inventivas, incompletas, incertas que potencializam pensamentos com a formação, ciências, ensinos, literaturas, pedagogias e que produzem outra forma de olhar para o processo formativo, fugindo de uma visão embrutecedora, nos termos de Rancière (2002), em que o discurso de falta e o objetivo educativo de superar essa falta já estão pré- definidos.

Você vai carregar água na peneira a vida toda. Você vai encher os vazios com as suas peraltagens. E algumas pessoas vão te amar por seus despropósitos.

O menino que carregava água na peneira, Manoel de Barros, 2010a, p.470.

Sabemos que é precisamente isso que define a visão embrutecedora do mundo: acreditar na realidade da desigualdade, imaginar que os superiores na sociedade são efetivamente superiores e que a sociedade estaria em perigo se fosse difundida, sobretudo nas classes mais baixas, a ideia de que essa superioridade é tão somente uma ficção convencionada. De fato, somente um emancipado pode escutar com tranquilidade que a ordem social é inteiramente convencional e, assim mesmo, obedecer escrupulosamente a seus superiores – que ele sabe seus iguais. Ele sabe o que pode esperar da ordem social e não causará aí muita confusão. Os embrutecidos nada têm a temer, mas eles jamais o saberão. (RANCIÈRE, 2002, p.151)

Esta investigação reinventou uma forma de olhar para a formação do pedagogo professor de ciências que se distancia do discurso da falta. Com esse olhar da investigação lancei pensamentos para a disciplina Fundamentos Teóricos e Metodológicos em Ciências I e II da Universidade Federal de Juiz de Fora diferentes daqueles que tinha no início da minha experiência como docente. Naquele momento entendia que a disciplina serviria a uma formação estrita do professor de ciências para as séries iniciais do ensino fundamental, compondo um bloco de disciplinas que se dedicam ao “ensino de...”. Esse bloco de disciplinas, destacadamente às disciplinas vinculadas às ciências exatas e naturais, possuía um imaginário que a contribuição formativa estaria vinculada a suprir as carências de conteúdo que os estudantes teriam sobre o campo das ciências e os instrumentalizando para as práticas de ensino. Assim, contribuindo fortemente para a diminuição do discurso da falta, da ausência dos estudantes do curso de Pedagogia.

Ao abandonar o discurso da falta e de que há uma mensagem única e verdadeira a ser comunicada no ensino de ciências, o exercício de construção desta tese abriu-se ao imprevisível, ao espaço poético do desconhecido, do inesperado, do risco e da invenção. A incerteza de pensar com a cultura, a leitura e a produção literária na formação de professores possibilitaram novos atravessamentos entre culturas, ensino de ciências e experiências formativas no curso de Pedagogia. O lugar ocupado por essas experiências na prática educativa abriu-se em atitudes de escuta, de partilhas e modos singulares como vivemos a vida e como contamos nossa forma de experimentar o mundo. Essas experiências deslocaram perspectivas naturalizadas e

homogêneas de uma suposta cultura científica, levando os estudantes, nos termos de Rancière, Masschelein e Simons, para fora, os expondo a coisas para o uso livre:

O e-ducando é alguém que está sendo levado para fora (que é o significado da palavra e-ducere latim), e, como consequência, alguém que é “exposto a coisas”. Similarmente, a professora na escola como espaço público não é uma guardiã do portão (falando em nome do lógos, batizando conformemente e repetindo sem parar que, sem sua orientação, os aprendizes estão perdidos). A professora é então uma e-ducadora, isto é, alguém que coloca algo em cima da mesa (e assim re-presentando o mundo no sentido arenditiano) e transformando o mundo em “coisas para o uso livre”. (MASSCHELEIN e SIMONS, 2014a, P.190-191).

Eis o que se deve fazer, sabendo-se que o conhecimento de Telêmaco ou de qualquer outra coisa é, por si mesmo, indiferente. O problema não é fazer sábios, mas elevar aqueles que se jugam inferiores em inteligência, fazê-los sair do charco em que se encontram abandonados: não o da ignorância, mas do desprezo de si, do desprezo em si da criatura razoável. O desafio é fazê- los homens emancipados e emancipadores. (RANCIÈRE, 2002, p.142).

Fig.16 - Imagem varanda 9

Para a questão “você consegue [com a pesquisa] demonstrar que os professores que foram formados nas práticas educativas analisadas sabem o conteúdo de ciências?” também não tenho resposta, pois esta investigação não estabelece uma análise dessa relação

alunos com o uma dada forma de produção do conhecimento científico. Para pensar nessa questão recorro a Masschelein e Simons (2014a) que discutem dois tipos de tradição de pesquisa pedagógica. Segundo os autores a primeira tradição de pesquisa pedagógica tem como objetivo produzir conhecimentos científicos verdadeiros sobre aspectos concretos da realidade a fim de aperfeiçoar a prática pedagógica com base em conhecimentos válidos. Esse aperfeiçoamento pode-se dar tanto na formação de pedagogos com uma base concreta de conhecimentos científicos ou ainda disponibilizar conhecimentos científicos válidos e relevantes (muitas vezes do ponto de vista do pesquisador) e seus modos e técnicas de ensino para a prática educativa. Nessa tradição, o pesquisador é o gerador e acumulador de conhecimento científico a fim de progredi-lo e transforma-lo constantemente. O pesquisador enquanto professor transmite os conhecimentos produzidos, oferecendo aos estudantes maneiras de trabalhar que simulam e estimulam a produção de conhecimento. Ele educa, instrui, dirige os outros da melhor maneira acessando a verdade baseada em e dirigida ao conhecimento.

Entendo que a questão do início do parágrafo anterior é colocada a partir dessa tradição de pesquisa. O questionamento demanda a esta investigação se ela dá uma resposta em relação ao aperfeiçoamento da formação de professores. O direcionamento da questão requer da investigação se ela contribui na garantia do acesso ou não a um conteúdo de ciências que é baseado e dirigido ao próprio conhecimento científico validado e relevante pelos princípios dessa tradição de pesquisa. E é por isso que não tenho resposta a essa questão, pois, a princípio, esta tese não desejou se filiar a essa tradição de pesquisa pedagógica.

A proposta de produção dos minicontos e das imagens-varanda como resultado de um processo investigativo, de um exercício de experimentar formas outras de pesquisa pedagógica buscou diálogos com uma segunda tradição de pesquisa explorada por Masschelein e Simons (2014a). Nessa tradição de pesquisa, que é considerada marginal pelos autores, o acesso à verdade não se dá apenas pela relação entre conhecimento e verdade, mas também uma relação entre ética e verdade no sentido que requer em primeiro lugar uma mudança na condição de existência do pesquisador. O pesquisador entra na pesquisa em um processo de transformação em que estando no presente e continuando a estar no presente está disposto a confrontar o que pensamos e o que dizemos com o que fazemos e com o que somos. O exercício da investigação trabalha continuamente em nós

A mesma razão me prende ali, na varanda do frangipani: me abasteço de infinito, me vou embriagando. Sim, eu sei o perigo do disso: quem confunde céu e água acaba por não distinguir vida e morte.

A confissão do velho português, A varanda do frangipani, Mia Couto, 2007, p.48.

mesmos, no que desejamos fazer, no que dizemos e no que desejamos dizer. Assim, essa tradição de pesquisa pedagógica não pretende argumentar ou demonstrar propostas que acumulem conhecimentos acerca do presente, nem criar uma ordem explicativa e determinar suas validades e limites, mas expressar pensamentos atentos e curiosos e falar a partir das experiências (e não sobre elas).

Aqui o planejamento, a redação e a leitura também podem ser exercícios preparatórios, mas têm objetivo de fazer coincidir pensamentos e ações, e de criar um estado de inspiração ou de incorporação da verdade. Aqui, exercer o conhecimento não significa aplicá-lo, senão incorporá-lo (...) Trata-se de um olhar agudo, e concentrado na realidade, no que acontece (hoje) no presente, e trata-se também de uma disponibilidade a não tomar como fato já preestabelecido quem somos ou o que fazemos. Neste caso, a reflexividade do pesquisador não está orientada nem pelo método nem pelas condições que validam a produção do conhecimento, mas é uma forma de pensar disposta a se expor a um saber desconhecido. (MASSCHELEIN e SIMONS, 2014a, p.70-72).

Esta investigação, aproximando dessa tradição de pesquisa pedagógica, caminhou com a ideia de pesquisa formativa para o próprio pesquisador e professor e para os próprios estudantes que participaram das experiências no curso de Pedagogia. A proposta de uma educação via contaminação literária atravessou a todos, pesquisador, professor e estudantes de forma indistinta nos percursos formativos e nos percursos de pesquisa. Essa contaminação literária nos confrontou a pensar e a produzir escritas criadoras de uma realidade deslocada em relação a uma realidade outorgada. Ela nos desafiou a duvidar e a se movimentar contra certa apreensão totalizante da vida pela linguagem e pelo efeito linear e contínuo da realidade. A palavra como o que se diz, ela é o vivido, é o percebido, é a experiência, é o corpo que se arremessa ao mundo e se expande em corpo outro, em vida outra. A leitura literária e a produção dos minicontos e imagens-varanda se deram por escritas fragmentadas abrindo uma poética móvel, heterogênea e dissonante.

Essas escritas literárias nos convocaram a entrar em um campo de ler aquilo que jamais foi escrito, nos termos de Walter Benjamin (1971), ou ainda de escrever aquilo que

jamais foi lido. Elas irromperam novos sentidos, uma construção de relações que não estão concedidas, uma leitura capaz de inscrever e sonhar varandas e ciências nos rastros formativos de professores de ciências no curso de Pedagogia. A literatura atravessou ao mesmo tempo um percurso formativo de professores e um percurso formativo de pesquisador em educação em ciências pulsando modos de percepção, aberturas inquietantes, sensíveis, inaudíveis do mundo. Incerteza que fez nascer poesia, restaurando a força da palavra inventiva na educação em ciências em uma pesquisa que imergiu nessa pulsão- ficção.

Era o dia do lugar do inútil na aula. Contamos que em um dos frascos