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Para Sánchez Vázquez (2006, p. 213), fazem parte do caráter “os traços que derivam de sua constituição orgânica (estrutura emocional, sistema nervoso etc.); contudo o caráter se forma, sobretudo, sob a influência do meio social e no decorrer da participação do indivíduo na vida social”. Portanto, o caráter é algo desenvolvido, dinâmico, modificável, é uma característica do ser humano que pode ser formada, deformada, por exemplo, na escola.

Concordamos com Sánchez Vázquez que o caráter seja formado socialmente. Mas quem forma esse caráter é a moral ou a ética? Conforme o pensamento deste autor, a moral, como já vimos, é o costume, a tradição de uma sociedade e é constituída por regras práticas que se referem às situações concretas. Já a ética estuda a moral, questiona-a, torna compreensível para o sujeito o porquê de sua maneira de agir. Deste modo, quando pensamos na formação do caráter na escola, a qual termo devemos nos referir? Se considerarmos a concepção do referido autor, pensamos que aos dois, pois a escola se utiliza, primeiramente, da moral, já que faz parte da sociedade e está repleta de regras e valores tradicionais (por isso é necessário ter cuidado com estes, uma vez que o professor mesmo sem ter consciência exerce influência moral sobre seus alunos). Em segundo lugar, a escola tem possibilidades de ensinar ética: as origens, as transformações, as razões dos princípios, normas e valores morais que fazem parte de sua vida.

No contexto escolar, a formação moral é possível devido à existência de múltiplas relações interpessoais que necessitam de regras para uma melhor aprendizagem cultural e convivência. Para a vivência em comum é imprescindível valores como o diálogo, a solidariedade e a cooperação que, por conseguinte, precisam ser trabalhados de forma mais intencionalizada do que está sendo – como apontam algumas pesquisas já citadas neste trabalho.

Em síntese, ao considerarmos a concepção de ética de Sánchez Vázquez (2006), podemos dizer que a escola tem poder social de formar moral e eticamente e,

conseqüentemente, é preciso planejar e sistematizar essa formação. Que valores nosso tempo histórico-social exige que sejam ressaltados, expandidos e valorizados? Cremos que todos aqueles que valorizam o homem e que colocam em prática nossos direitos universais. E como isso pode ser feito? De modo a respeitar a autonomia, a liberdade, a responsabilidade e a consciência dos alunos e, caso esses fatores ainda não estejam formados, é preciso despertá- los e educá-los humanamente.

Numa posição contrária a da intencionalidade e da sistematicidade para se pensar a ética e a experiência, Larrosa (2007, p. 28) defende que “a experiência não é o caminho até o objetivo previsto, até uma meta que se conhece de antemão, mas é uma abertura para o desconhecido, para o que não se pode antecipar nem ‘pré-ver’ nem ‘pré-dizer’”. A experiência, nesse sentido, tem os mesmos pressupostos que a literatura: romper com o automatismo, com aquilo que conhecemos e acreditamos. A diferença, talvez, seja que a literatura rompa por meio das palavras e o sujeito ético precisa ir além das palavras, precisa sofrer algumas ações e agir para que realmente se efetive alguma transformação ou melhoria na sociedade em que vive, ele pode, por exemplo, começar repensando e cambiando suas atitudes perante o preconceito.

A ética, segundo Larrosa (2004c), tem como pressuposto a utopia, a esperança, a crença numa vida mais digna, por outro lado, ela não acredita nas ilusões morais que, muitas vezes, são veiculadas; ela precisa duvidar de tudo que se diz verdadeiro e universalizante, como a boa consciência e a virtude exaltada. No entanto, não podemos nos deixar dominar pelo ceticismo, pois seu excesso, assim com a fé exacerbada, pode tornar o juízo impotente e inibir a moral. Em virtude disso, “a ética deve ser capaz de suportar a tensão entre fé e ceticismo” (LARROSA, 2004c, p. 202).

Nos escritos pesquisados de Larrosa não encontramos nenhuma referência à educação ética, apenas acerca da dificuldade ou, até mesmo, da impossibilidade da experiência. No entanto, como já dissemos no tópico anterior, acreditamos que a experiência ética seja possível por meio da estética – neste trabalho, especificamente mediante a literatura. Isso porque o homem constrói uma segunda natureza, por intermédio da educação e da cultura, que não é apenas ética (cria leis e costumes), mas também estética (produz uma realidade à qual chamamos arte). Essa segunda natureza é construída por um longo percurso “de aprendizagem, de experiência e prática, de geração a geração” (HERMANN, 2005, p. 10).

A educação influenciada pelo cristianismo, que buscou a excelência humana tendo como paradigma Deus, empenhou-se sempre na busca da perfeição marcada por um caráter único, que, por conseguinte, destitui toda idéia ou possibilidade de pluralidade, eliminando o

espaço da contingência. O Iluminismo é um exemplo disso, pois busca o comportamento correto, autônomo e livre que possa ser universalizável. Para tanto, pensa uma educação que pode ser precisamente planejada, como outra ciência qualquer, utilizando-se do saber como se fosse poder (no sentido de dominação).

A pluralidade do mundo atual, no entanto, não se submete ao caráter unitário, absoluto e universalizante da educação tradicional. De acordo Hermann (2001, p. 92), já não há mais uma idéia de aperfeiçoamento a qual o homem deve seguir, além disso, a autonomia do sujeito, enquanto centro da ação, é questionada. Portanto, surge a necessidade de novos fundamentos para a educação; fundamentos que considerem as diferenças e procurem a sensibilização para a vida em todos os seus aspectos.

Em nossa opinião, a obra artística pode ser utilizada como esse novo fundamento, difícil talvez de ser instituído na educação formal, mas que pode ser incentivado na educação informal, sobretudo no curso de formação de professores. Nesse contexto, os alunos podem escolher as obras que preferirem, o que é melhor, num momento em que julgar oportuno para sua própria formação. Acreditamos que o sujeito ético encontra na experiência estética momentos de imaginação que ampliam e conduzem sua formação. Esse tipo de experiência contribui, especialmente, “para desenvolver a sensibilidade para as diferenças de percepções ou de gosto [...], cria condição para o reconhecimento do outro, evitando os riscos de uniformização diante do universalismo” (HERMANN, 2005, p. 106).

Larrosa (2004c, p. 197) afirma que a ética é, “ao mesmo tempo, positiva e negativa, edificante e corrosiva, propositiva e crítica da moral, moral e desmoralizante”. Podemos dizer também que a ética é ao mesmo tempo racional e passional. Precisamos da razão para avaliar cada situação e decidir qual é a melhor maneira de agir e da paixão para poder considerar as pessoas envolvidas e sermos afetados, tanto por elas quanto por suas ações. Precisamos da razão para desenvolver nossa responsabilidade perante o mundo, e da paixão para desenvolver a sensibilidade e, aí sim, podermos nos relacionar com ele.

Em conformidade com o pensador espanhol Alfonso Lopez Quintás (2007a), a atualidade requer que haja uma instrução acerca de questões básicas da ética28 a fim de

manter e desenvolver a humanidade do homem. E essa somente pode realizar-se na medida em que os educandos sintam-se respeitados em sua liberdade e, ao mesmo tempo, dotados de normas de interpretação que os orientem nas diversas encruzilhadas da vida. Desse modo, a formação verdadeira consiste no poder de discernimento, que somente é alcançado se

28 Generosidade, respeito, colaboração, encontro, satisfação e alegria, entusiasmo – fatores necessários,

conhecemos as leis que regem o desenvolvimento da vida humana. Ora, tais leis são expressas em experiências intensamente vividas e desenvolvidas criativamente nas obras literárias.

A literatura supre a necessidade universal de fantasia manifestada pelo homem. Ao utilizar conjuntamente sua forma própria de organizar seus elementos (narrador, personagens, tempo, espaço, enredo, estilo), faz com que organizemos, igualmente, nossa visão de mundo. Ademais, a união da forma e do conteúdo gera um conhecimento inconsciente ou consciente que pode nos ajudar a discernir a realidade, contribuindo, dessa forma, para a humanização do leitor.

Enfim, em nossa opinião, compreender a moral é perceber porque certos comportamentos são convenientes, é entender o que é a vida e o que pode torná-la boa, é criar possibilidades de transformá-la conscientemente, ao menos, no que se refere à nossa própria conduta e caráter. Essa compreensão é essencial para uma vida ética pautada, sobretudo, na liberdade e no respeito mútuo. A literatura pode cumprir um papel significativo nesse itinerário, como veremos a seguir.