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3.2. Constituição formal de Doidinho

3.3.2. Carlos e os exercícios militares

Do capítulo 31 em diante, Carlos nos conta sua frustrante experiência com os exercícios militares, nos quais não “tinha jeito”, já que “não tinha segurança nas minhas direções” (REGO, 1969, p. 149). Devido a sua dificuldade, desconsiderada pelo professor, era humilhado publicamente pela palmatória, chamado de “trapalhão”, incapaz (“único que não aprende”), “doudo”, “insubordinado” que esgota a paciência do diretor, “genista de marca”, “palhaço”, “engraçado”, “babaquara”, o que tornava essa atividade ainda mais difícil. “Eram mais fácies as lições de Gramática. Decorava tudo com uma precisão de máquina. Começou assim o meu novo martírio. A minha incapacidade para certas compreensões se resolvia com castigos violentos” (REGO, 1969, p. 149).

Pelo fragmento acima, apreendemos a didática utilizada por Maciel: humilhação física e psicológica e “decoreba” das disciplinas, que exigia grande trabalho da memória dos alunos para, quando solicitados, serem pronunciadas como por papagaios, ou seja, sem compreender o que falavam. Cabe lembrar que a compreensão das informações lidas é primordial para o conhecimento, pois corresponde ao ato humano de pensar e relacionar informações, construindo um todo coerente que também serve de ponto de referência para outras informações. Decorar é trabalho desumano, de máquina, por exemplo, dos computadores que mantém na memória vários arquivos que somente terão sentido se manipulados por alguém.

O exercício militar envolve outro tipo de compreensão, além do mental, o corporal. Este para Carlos é mais complicado por não entender os silvos, confundir direita e esquerda.

No entanto, suas dificuldades não são solucionadas, uma vez que não tem oportunidade de refazer seus passos longe da humilhação ou do olhar irado e ameaçador do diretor, do sargento e dos colegas. Tal fato lhe proporciona o sentimento de inferioridade em meio aos colegas e de ser um “trambolho”. Entretanto, Carlos não se acomodava e, apesar do esforço que fazia (devido ao conhecimento da necessidade de se modificar para se inserir no grupo), era tratado como incapaz e acreditava nisso questionando-se acerca do motivo de somente existir ele de errado, de ser um estorvo em meio a tanta disciplina. Queria ser como os outros, parecia tão fácil, no entanto, não conseguia, desorientava-se, não respondia prontamente às instruções do sargento. E Carlos se explica: “não sabia obedecer” (REGO, 1969, p. 150).

Percebemos que os gritos de marche, sentido, direita... volver, entre outros, não funcionavam como simples instruções para mover o corpo, mas o seu oposto: eram paralisantes, perturbadores, atordoantes; não funcionavam como algo persuasivo e orientador, mas dissuasivo e desorientador.45 E quando Carlos queria conversar sobre suas dificuldades era reprimido: “não quero conversas seu doudo. Não quero conversas” (REGO, 1969, p. 151). Maciel enfatizava a impossibilidade de se instaurar um diálogo – que para ele não era nada, já que só ele era o professor, o modelo superior, o único com direito à voz perante seus “subordinados”: uma autoridade autoritária, aspecto principal da abordagem tradicional de educação em voga na época histórica. Tal característica é bem perceptível na explicitação de Yves de La Taille (1999, p. 9):

[...] se a escola negar toda e qualquer capacidade de discernimento e singularidades intelectuais aos alunos, ela se arvora o direito de arbitrar indiscriminadamente sobre cada uma de suas condutas – eis o autoritarismo – e, em caso de fracasso por parte deles, longe de questionar suas pretensões e seus métodos, ela incrimina aqueles que “fogem da norma”: são indisciplinados, preguiçosos, retardados [...].

As “repreensões” de Maciel são acompanhadas de gritos que aniquilam a auto-estima dos alunos, impossibilitam a afetividade e dão ao professor a aparência de um “furacão”. Entretanto, para ele isso não era fúria,46 não era um descontrole das emoções que acontece com todos em determinados momentos, mas algo inerente a sua pedagogia. Os gritos eram, na maioria das vezes, acompanhados de pancadas com a palmatória, como mostra o fragmento:

45 “Ficava no meio dos outros como uma barata tonta” (Rego, 1969, p. 150).

46 – Mas não precisa esses gritos. Quem passa na rua vai pensar que você está furioso [voz de Emília].

– Que furioso que nada! Isto é um estabelecimento de ensino. Aqui se castigam os insubordinados... [voz de Maciel] (REGO, 1969, p. 151-2).

– Que conta é esta? Que história de 96 bolos é esta? – Estava contando os bolos que o senhor deu hoje.

– Contando os bolos? Pois bem, venha para cá, venha completar os cem. Venha, Seu Lira. (REGO, 1969, p. 153).

Apesar de todas as dificuldades que fizeram Carlos fugir com medo de alguns exercícios, ele tinha esperança e se perguntava: “por que seria que eu não dava para aquilo?” (REGO, 1969, p. 153). Encorajava-se. Se tentasse mais uma vez, poderia conseguir, pois era esforçado, capaz, não sentiria medo dos olhos vigilantes de Seu Maciel. Contudo, apesar do esforço, confundia-se com as ordens do sargento: qual era a esquerda e a direita? “Fracassou” e foi humilhado pelos risos da turma, “e o resto foi como sempre. Os mesmos bolos, os mesmos gritos” (REGO, 1969, p. 154). “Amedrontado”, Carlos se sentia um fracassado, a pior de todas as pessoas; além da humilhação física e psicológica, fora privado do seu grande divertimento educativo: o cinema. 47

Perante a rememoração de tanta violência advinda do professor, Carlos desabafa: “então aquele homem não compreendia que eu não dava para a cousa? Somente para sustentar os seus caprichos! Fazia-me inferior na frente dos outros, submetido às grosserias de um sargento, às risotas do colégio inteiro” (REGO, 1969, p. 158). Carlos começa a perceber que o problema não era ele; como pessoa tinha direito de errar, de não ser apto para certas atividades. Porque apanhar? Porque resolver as coisas com violência? Observamos que ela não promove os efeitos desejados: o acerto das atividades e a sujeição ao sargento; ao contrário, ela humilha, degrada, desumaniza, causa dor, sofrimento, angústia, inferioridade. São poucos os que têm força para não acreditar na própria incapacidade – que é nomeada por outros e depois, de tão repetida, se torna uma verdade para o próprio sujeito – e lutar por seu próprio espaço, mesmo que isso signifique fugir, abandonar essa sociedade dirigida por um déspota.

Percebemos que, em Doidinho, primeiro nasce certa revolta contra si mesmo, depois contra o opressor: “um ódio de morte me dominou contra o velho” (REGO, 1969, p. 159). Neste momento não é a sua esfera racional que fala; esta fora destruída (afinal era uma besta, incapaz), restando-lhe os instintos animalescos. Não podia continuar naquela situação injusta; afinal, por que apanhava? Já não sabia mais. Enviou uma carta a seu Tio Juca pedindo ajuda, mas ele não veio, talvez por ter exagerado um pouco, distorcendo a verdade e destruindo a verossimilhança dos fatos.

47 O cinema mostrava aos alunos outras culturas, paisagens, diferentes belezas e modos de comportamento –

aspectos que eram utilizados como argumentos nas conversas cotidianas. O cinema ainda era uma distração e uma brincadeira, nesta imitava-se os atores e investigava-se as falhas de verossimilhança.

Carlos apanhou novamente por não melhorar no último ensaio. Sua revolta cresceu: “velho ruim, o diretor. [...] Tomara que aquele diabo morresse” (REGO, 1969, p. 160). E planejou mentalmente sua vingança cruel enquanto aguardava o sono: envenenaria o mestre! Acordou com vergonha de seus pensamentos irados; analisou-os racionalmente. Podemos descrever sucintamente o ato moral, de acordo com a teoria de Sánchez Vázquez (2006) da seguinte forma: motivo (querer se sentir melhor), fim visado (acabar com o motivo de seu sofrimento), meio (matar o professor), conseqüência (pessoas inocentes, inimigas de Maciel, sendo acusadas), resultado (remorso pelo crime, dor por não poder se abrir e confessar).

Devido à natureza imoral do ato, Carlos o abole, pois seu caráter moral não permite e até se envergonha de ter imaginado tal ação – mesmo num momento irracional. Ele vê quão absurda e desumana é a violência contra o outro, mesmo que este seja seu algoz. O surgimento da autonomia moral de Carlos é mostrada pelo olhar que lhe envergonha. Este não é de outro, mas de si mesmo, pois o juízo de valor do que é o mal – a violência – está legitimado no seu íntimo. A legitimação de princípios e normas morais não pressupõe que não sentirá mais vergonha do olhar alheio, mas que isto acontecerá quando forem testemunhados atos considerados intimamente irrelevantes ou negativos (LA TAILLE, 1996, p. 13). Esta foi a última experiência narrada por Carlos e, antes dessa manifestação da autonomia moral, ele teve um árduo percurso, marcado, sobretudo, pela tirania do professor Maciel.